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HISTORIA

DA ORIGEM

ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO

EM

PORTUGAL

POR

A. HERCULANO

Decima edição definitiva conforme com as edições da vida do autor dirigida por

DAVID LOPES

Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

TOxMO III E índice

LIVRARIA BERTRAND

LISBOA

LIVRARIA FRANCISCO ALVES

RIO DE JANEIRO S. PAUI.O BELO UORIZONTE

HISTORIA

DA ORIGEM

ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO

EM

HISTORIA

DA ORIGEM

E

ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO

EM

PORTUGAL

POR

A. HERCULANO

Decima edição definitiva conforme com as edições da vida do autor dirigida por

DAVID LOPES

Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

TOMO III

LIVRARIA BERTRAND

73 Rua Garrett, - 75

LISBOA

LIVRARIA FRANCISCO ALVES

RIO DE JANEIRO S. PAULO BELO HORISONTE

rOMPOSTO E IMPRKSSO NA IMPRENSA PORTUG AI.-BRASIL Rua da Alegria, •^o í-fTSPQA

LIVRO Vlí

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LIVRO VII

Multiplicação das Inquisições pelo reino. Vanta- gens dos christãos-novos em Roma. Enviatura do núncio Lippomano coadjutor de Bergamo. Ins- trucções singulares. A corte de D. João m. Estado moral e económico do reino naquella epo- cha. Cartas verdadeiras ou suppostas do cardeal da Silva e dos agentes dos christãos-novos appre- hendidas no Alemt3Jo. Prohibição ao núncio de transpor a fronteira. Francisco Botelho man- dado a Roma com as cartas apprehendidas, e ten- tativas de mediação de Carlos v. Explicações do papa, e missão extraordinária de Pier Domenico a Portugal. O núncio admittido no reino. Mo- tivos para nova mudança de politica na cúria. A Inquisição estabelecida em Roma. Desvanta- gens dos christãos-novos e difficuldades que se lhes suscitam. Perseguição do procurador dos he- breus Diogo Fernandes Neto. —Situação embara- çada de D. Miguel da Silva. Negociações ulte- riores. Caracter vergonhoso dessas negociações. Os hebreus portugueses preparam-se para ten- tar um esforço extremo contra a Inquisição.

o HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Ao passo que occorriam os successos nar- rados no fim do livro antecedente, successos que obrigavam o governo português a man- dar sair de Roma os seus embaixadores, a Inquisição, fortificada pela nomeiação do in- fante D. Henrique para seu chefe, e pela si- tuação vantajosa em que as negociações de D. Pedro Mascarenhas a haviam collocado, manifestava, emfim, a sua feroz energia, con- tida até ahi pelo caracter moderado do bispo de Ceuta e de uma parte dos membros do conselho geral, mas, talvez, ainda mais pelo problemático da sua existência futura. Assen- tada agora em bases mais solidas, as instan- cias inferiores daquella terrível instituição íam- se multiplicando, e seis tribunais da fé, suc- cessivamente creados, levavam a perseguição e o terror a todos os ângulos do reino. Era o principal a Inquisição de Lisboa, tendo á sua frente João de Mello, o mais resoluto adver- sário dos christãos-novos e que se podia con- siderar como o chefe verdadeiro dos inquisi- dores. A de Évora dominava pelo Alemtejo e pelo Algarve. A' de Coimbra deu-se jurisdic- ção nesta diocese e na da Guarda, ao passo que ficou pertencendo á do Porto, não a respectiva diocese, mas também o arcebis- pado de Braga. A auctoridade do inquisidor

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 9

de Lamego estendeu-se a todo aquelle bis- pado e ao de Viseu. Finalmente, em Tiiomar, o hieronymita Fr. António de Lisboa, refor- mador da ordem de Christo, assumindo de seu motu-proprio as funcções inquisitoriaes, foi confirmado no cargo pelo infante, estabe- lecendo-se assim no isento da ordem um tri- bunal particular. Cada uma das Inquisições de Hespanha pesava sobre uma extensão de terri- tório não inferior á área de Portugal; e todavia este paiz, que retardara por algum tempo as scenas de atroz perseguição de que era theatro, havia tanto, o resto da Península, via a final sextuplicados no seu seio, em proporções dos outros reinos da Hespanha, os instrumentos e recursos da intolerância religiosa (1).

(1) Annotaliones Criminum et Excessuum inqui- sitor. : Symm., vol. 32, í'. 257. Sousa (De Orig. In- quisitionis) menciona as tres Inquisições de Évo- ra, Lisboa e Coimbra, provavelmente porque foram unicamente estas que ficaram subsistindo. Numa vida ms. de Fr. António de Lisboa, da Livraria do mosteiro de Beiem, hoje em poder de pessoa parti cular, vem mencionados os documentos relativos ao estabelecimento da transitória Inquisição de Tho- mar pelos annos de 1541, e a memoria do primeiro auto-de-te alli celebrado nos princípios de 1543. A de Lamego foi ordenada nos fins de 1542, como se deduz do documento da Gav. 2. M 1, N.° 39, no

10 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Deixaremos para mais tarde o quadro das violências de todo o género que assignalaram os primeiros annos do longo periodo durante o qual o infante D. Henrique exerceu o cargo de supremo inquisidor. Esse quadro, no qual poderemos resumir em breve espaço multi- plicados horrores, dar-nos-ha uma idéa per- feita do estado moral daquella epocha, e do que é a alliança do fanatismo e do poder absoluto, ambos livres para exercerem acção iliimitada. Antes de satisfazer nesta parte a curiosidade do leitor, pede a boa ordem que sigamos as phases da lucta em Roma desde que nella interveiu o cardeal da Silva, inter- venção, a que em parte se deveu, talvez, a re- crudescência de barbaridades que, durante os annos de 1542 a 1544, assignalaram o proce- dimento da Inquisição.

Vimos que, em resultado da porfiosa insis- tência de Christovam de Sousa, Paulo iii con- viera em sobrestar na enviatura do núncio e accedera com os cardeaes influtntes á idéa de mandar um commissario sem caracter di-

Arch. Nac. A do Porto existia por esta epocha, segundo se de uma carta do bispo Fr. Balthasar Limpo a elrei, datada de 20 de outubro de 1542, no C. Chronol., P. 1, M. 72, N.*» 144, no mesmo Arcliivo.

Historia da inquisição 11

plomatico examinar os actos dos inquisidores. Com a retirada do embaixador, e continuando as diligencias dos christãos novos, protegidos por D- Miguel da Silva, essa idéa devia ser e foi abandonada para se voltar ú anterior de- cisão sobre a enviatura de um núncio. Pêro ou Pier Domenico, o agente ordinário d'elrei, homem perfeitamente conhecedor das cousas de Roma, suscitava os embaraços que a in- ferioridade da sua situação lhe consentia op- por aos esforços dos conversos. Tinha-o ha- bilitado o infante D. Henrique com informa- ções acerca dos crimes religiosos perpetrados em Portugal, que, no entender delle, legitima- vam a severidade da Inquisição. Estes crimes, verdadeiros ou suppostos, eram apresentados com um caracter de plausibilidade que devia fazer vacillar os ânimos. Naquelles tempos, ainda as delações de quaesquer presos acerca dos seus companheiros de crime ou d'intbr- tunio, delações ordinariamente feitas entre atrozes tractos, e bem assim as confissões extorquidas dos réus nas polés e nos potros se consideravam como meios de achar a ver- dade ou para melhor dizer, de condemnar com apparencias plausiveis o individuo mentalmente condemnado pelos seus juizes. A Inquisição recorrera largamente a este ar-

12 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

bitrio. Por isso podia allegar em seu abono que a recrudescência da perseguição fora san- ctificada pelos resultados, visto que não era pelas denuncias e testemunhos de chris- tãos-velhos que se mostrava a existência em larga escala da heresia judaica, mas sim pe- los depoimentos e confissões dos próprios christãos-novos encarcerados. Esses depoi- mentos e confissões tinham aclarado myste- rios abomináveis, exactamente aquelles que eram necessários para se absolverem os fu- rores da intolerância. Gitava-se como exemplo um sapateiro de Setúbal, que, declarando- se Messias, soubera imbair com falsos milagres muitos christãos-novos, levando homens dis- tinctos por saber ou riqueza a seguirem-no e a adorarem-no. Apontavam-se outros que, re- vestidos do caracter de prophetas, recondu- ziam ás crenças do mosaismo grande numero de christãos-novos com prédicas feitas em assembléas occultas; e o mais era que os herpes da ruim doutrina começavam também a lavrar pelos christãos-velhos. A audácia dos judeus ia tão longe, que na própria capital se descubriu uma synagoga (1). Era, estribado

(1) Carta do Inf. D. Henrique a P. Domenico de 10 de fever. de 1542. na Gav. 2, M. 2, N.o 54.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 13

nestes factos de que dera conhecimento ao papa e aos cardeaes influentes, que Pier Do- menico tentara com arte demorar o restabe- lecimento da nunciatura em Portugal ou, pelo menos, fazer modificar as instrucções que se houvessem de dar acerca da Inquisição ao futuro representante pontifício (1).

A enviatura deste era, porém, uma resolu- ção tomada definitivamente. O fim ostensivo daquella missão consistia em tractar os as- sumptos relativos á futura reunião do concilio geral ; mas, na realidade, a matéria principal delia versava sobre a questão do bispo de Viseu e acerca das queixas dos christãos- novos (2). Luiz Lippomano, bispo metonense e coadjutor de Bergamo, fora o personagem escolhido para tão difficil encargo. O credito em que o papa dizia tê-lo era o de homem pio, instruído e modesto (3j ; mas a opinião do embaixador Christovam de Sousa estava longe de lhe ser favorável. A escolha de Luiz Lippomano fora feita residindo elle ainda em

(1) C. de P. Domenico a eirei de 23 de março de 1542, na G. 2, M. 1, N.° 33.

(2) Instrucção ou Memoria na Collecç. de Mss. de S. Vicente, vol. 3, p. 137, Arch. Nac.

(3) C. de P. Domenico a elrei de 23 de março cit.

14 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Roma, e o leitor estará lembrado de que, se- gundo a confissão do próprio Paulo iii, o bispo coadjutor de Bergamo ajustara rece- ber em Portugal uma pensão dos christãos- novos (1). Assim, nas faces cavadas, nos ade- manes devotos, nas exterioridades austeras do prelado italiano, Christovam de Sousa não via senão a taboleta ridicula de um hypo- crita (2). Não cessavam de insistir na sua partida os agentes dos conversos, tanto por- que nelle tinham confiança, como porque o papa lhes promettera (ao mesmo tempo que negociava o contrario com Christovam de Sousa) mandar cumprir pelo novo núncio a bulia declaratória, que Capodiferro não po- sera em execução, e bem assim expedir outra em que se abrogassem perpetuamente os con- fiscos nos crimes d'heresia, dando-se a Luiz Lippomano poderes sufficientes para que as

(Ij Vide ante T. 2, p. 352.

(2) «segundo sua disposição e magreza '^do nún- cio) porque sua profissão é de austinente e religio- so, e quasi amostra trazer as filaterias acostuma- das dos religiosos da lei velha nas fímbrias das vestes. . . deste Núncio ter as mãos de Esaú e a voz de Jacob». C. de Chnstov. de Sousa a elrei, de Lyão de Franra, 13 de abril do 1542, G. 2, M. 5, N.o 41.

HISrORIA DA INQUISIÇÃO 15

resoluções da sancta não fossem mais uma vez illudidas (1).

O novo núncio partiu, de feito, de Roma, no melado de junho de 1542, mas sem trazer* as duas bulias promettidas, com o pretexto de que as formulas da chancellaria, indispensá- veis para a expedição daquelles diplomas, re- tardariam a sua partida, aliás tão urgente (2). As causas verdadeiras eram, porém, outras: eram não a consideração dos factos nar- rados na correspondência do infante inquisi- dor-mór com Pier Domenico, factos que este não cessava de representar ao papa, acompa- nhados de largas ponderações, mas também e principalmente a situação delicada em que se achava a corte de Roma para com D. João m. O modo como o embaixador português se havia despedido ; o silencio com que respon- dera na audiência final a todas as tentativas de Paulo ni para o excitar a uma daquellas

(Ij Memoriale, na Symm., vol. 31, íbl. 59 v. eseg.

(2) Ibid. O testemunho do Memoriale é preciso. Todavia o breve de crença do núncio dirigido a elrei é de 29 de outubro de 1542 (M. 23 de Bulias N.° 58), talvez porque se expediu directamente de- pois da partida do bispo coadjutor. O breve recom- menJando-o ao infante D. Duarte é de maio desse auno. M. 25 de Bui. N. 45.

16 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

scenas violentas a que estava affeito da parte dos ministros portugueses quando occorriam negócios graves; a inutilidade das caricias a que depois recorrera para o mover a dar ou pedir explicações ; tudo fizera viva impressão no animo do papa, inquieto com a resolução extrema que tomara o rei de Portugal (1). Estas circumstancias impunham á cúria ro- mana uma prudente reserva e exigiam não vulgar astúcia no coadjutor de Bergamo, para o qual se redigiram instrucções amplas, que lhe servissem de guia no desempenho da sua missão. Os apontamentos para essas instruc- ções, que ainda existem, são um dos monu- mentos mais importantes para conhecermos a epocha de D. João iii, a sua corte, os per- sonagens mais influentes nella, muitos indi- vidues notáveis do paiz naquella conjunctura e, finalmente, a politica de Roma. Escriptas para se conservarem secretas e redigidas com o intuito de illustrarem ao mesmo tempo o papa e o núncio, não se deve suppor que na

(1) A audiência de despedida do embaixador Christovam de Sousa vem miudamente reíerida numa carta do mesmo embaixador a elrei de 10 de março de 1542 (ultima escripta por elle de Roma), na G. 2, M. 5, N.° 27.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO l7

sua redacção houvesse idéa de illudir alguém. A verdade era o que em semelhante papel convinha sobretudo, e não é de crer que a corte mais astuta da Europa se enganasse na appreciação dos homens e dos factos, que tanto lhe importava avaliar exactamente. Resumi- mos, por isso, aqui a matéria daquelles apon- tamentos, que por certo devem excitar a cu- riosidade do leitor (1).

Depois de se narrarem a origem e os pro- gressos da monarchia portuguesa, em har- monia com as idéas históricas daquelle tem- po, indicavam-se os favores e benefícios re- cebidos da sancta pela coroa de Portugal, e particularmente as abundantes fontes de ri- queza que possuia o clero deste paiz, fontes

(1) Imprimiu-se em Inglaterra neste século, mas sem data de logar nem de anno, uma versão portu- guesa das instrucções ao bispo coadjutor de Ber- gamo, as quaes se dizem tiradas de uma bibliotheca de Florença. É rarissima esta publicação, de que vimos um exemplar. O texto de que nos servimos é a copia do original inserida na Symmicta, vol. 12, i'o\. 19, e seg. O seu titulo é Instruzione piena delle cose di Portogallo ín tempo dei re Gio. III data a Monsignore Coadjutore dl Bergamo, nunzio apos- tólico in quel regno, per ordine di papa Paulo III Foi tirada do códice do Vaticano 829.

TOMO m ^

18 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

que os papas mais de uma vez tinham em grande parte feito derivar para o fisco. Re- cordava-se o antigo feudo á igreja de Roma e, até, se explicava pelo favor da cúria a glo- riosa revolução do mestre d'Aviz, que, bas- tardo e membro de uma ordem religiosa, não teria podido sem esse favor obter a coroa, e deixá-la a um herdeiro legitimo. Assim se ha- bilitava o núncio para invocar conveniente- mente antigos direitos e um dever, porven- tura, mais restricto, o da gratidão. As instruc- ções referiam- se depois aos individuos prin- cipaes com quem o bispo de Bergamo tinha de tractar e ao estado das cousas que em Portugal podiam interessar á corte de Roma. O infante inquisidor-mór dizia-se-lhe ahi apesar da sua vontade á apostólica, re- presentava um tal papel de sanctimonia, que, para se conservar em caracter, teria de se mostrar obediente, bom ou mau grado seu. Convinha, pois, obrigá-lo, misturando- se a as- pereza com a brandura (uma vez que o papa não quizesse privá-lo da dignidade de inqui- sidor-mór), a tirar dispensa de idade, a pedir absolvição do passado e a rever e ractificar depois os processos findos, cousa que se re- putava indispensável á dignidade do ponti- fice. Qualificava-se o infante D. Luiz como ho-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 19

mem violento, que influía assas nos conselhos d'elrei seu irmão pela audácia com que inter- vinha nos negócios públicos. Tanto elle como o infante D. Henrique queriam ser tractados com tanto acatamento como elrei. As infor- mações acerca da rainha D. Gatharina repre- sentavam-na como não menos ambiciosa de influencia politica do que D. Luiz, ambição que ella sabia conciliar com os extremos da devoção. Desenhando-se o caracter dos prin- cipaes prelados, descrevia-se o arcebispo de Lisboa, capellão-mór e parente d'elrei, como um velho fidalgo de boa Índole, bem morige- rado e timido, a quem o soberano concedia a honra da sua intimidade. O prelado de Coim- bra, talvez o mais antigo bispo da igreja ca- tholica, passava por homem honrado, vivendo inteiramente íóra da corte, e era fácil de do- brar pelo temor da sancta sé. O da Guarda, pessoa de vida, menosprezava Roma, mas não tinha importância alguma, porque tam- bém vivia affastado da corte. O do Porto, frade carmelita e confessor da rainha, mos- trava-se inimigo da cúria romana, falando contra ella nas conversações e até no púlpito. Apesar, porém, dessas ostentações e do seu valimento, passava por muito medroso. O de Lamego, frade loio e inquisidor na Beira, era

20 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

um individuo de curta capacidade e de me- diocre instrucção, porém, não de Índole. Dos frades influentes no paço falavam as ins- trucções com mais individuação. A idéa que na cúria se fazia do futuro bispo de Coimbra, Fr. João Soares, então simples augustiniano, anteriormente vimos qual fosse (1). Se- guiam-se na appreciação dos informantes ou- tros dous augustinianos, Fr. Francisco de Villa-franca e Fr. Luiz de Montoia, ambos castelhanos e pregadores de voga, sobretudo o Villa-franca. O Montoia passava por homem de vida mais ajustada que o Villa-franca, mas este dominava-o inteiramente. Gosavam am- bos de grandes créditos para com o rei e pessoas poderosas. Outro frade, Fr. Jeronymo de Padilha (2), dominicano hespanhol, influia na corte de Portugal. Era homem de letras e pregador, mas amigo de novidades e audaz. Practicara violências como reformador dos dominicanos, desobedecendo aos mandados

(1) Vide ante T. 2, pag. 244.

(2) Nas instrucções que vamos aproveitando Frei Jeronymo é chamado constantemente il Padeglier; mas este não podia ser senão Fr. Jeronymo de Pa- dilha. Sobre todos estes frades veja-se o Dial. v. de Mariz (Reinado de D. João iii, ad finem).

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 21

apostólicos, peio que fora excommungado ; mas continuara a exercer o seu ministério, com desprezo das censuras. No meio, final- mente, destes prelados e regulares, mais ou menos mundanos, distinguia-se um hierony- mita valenciano, cuja vida passava por imma- culada, e cuja austera franqueza no confessio- nário era proverbial, fossem quaes fossem os penitentes, cousa observavam as instrucções rara entre frades. Confessor d'elrei, fora dispensado daquelle espinhoso ministério, por não ter querido absolvê-lo uma vez, inconve- niente cuja repetição D. João iii evitara, con- fiando d ahi avante o cuidado da própria sal- vação á consciência mais larga de Fr. João Soares.

Dos fidalgos, dous havia, contra os quaes cumpria que se premunisse o novo núncio. Eram elles o conde de Vimioso e o conde da Castanheira, D. António de Athayde, principal valido do rei. A idéa que acerca de D. Antó- nio se inculcava a Luiz Lippomano consistia em que devia considerá-lo como um perverso com mascara de sancto, meio hypocrita pelo qual se tornava acceito aos frades que de con- tinuo rodeiavam elrei. Por intervenção destes, tanto elle como o Vimioso tinham adquirido muitos bens ecclesiasticos. Era uma circums-

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tancia essa que os reduziria á obediência, quando o núncio quizesse fazer-se respeitar por elles.

Naqueiia espécie de revista politica e moral falava-se largamente dos tribunaes superio- res, cuja auctoridade se exaggerava, e contra cuja existência cumpria que o núncio mos- trasse firmeza. Citavam-se as leis do reino contrarias á liberdade ecciesiastica e aos câ- nones, e indicava-se como exemplo dos abu- sos intoleráveis que se practicavam na admi- nistração da justiça o serem obrigados os ec- clesiasticos exemptos da jurisdicção ordinária a responder perante um juiz secular, o corre- gedor da corte, de sorte que os clérigos obs- curos ficavam gosando do seu foro, emquanto os privilegiados, os que eram eximidos por bulias pontifícias da jurisdicção do respectivo diocesano, se achavcm obrigados a Lagar pe- rante os magistrados civis (inimigos naturaes dos padres) e sem appelação para o papa. Ao mesmo tempo, esses juizes eram com- mendadores e cavalleiros das ordens milita- res, pertencendo, em rigor, por semelhante titulo, ao corpo ecclesiastico, e todavia jul- gando em causas crimes contra as disposi- ções canónicas. O próprio foro clerical se ha- via tornado uma cousa van. Quando nelle se

HISTORIA OA INQUISIÇÃO 23

resolvia algum negocio contra a vontade do rei, expedia-se uma dessas chamadas cartas de camará, pela qual o pobre ministro eccle- siastico era mandado vir á corte falar com sua alteza sobre matérias de seu serviço. Mas o rei nunca lhe falava nem o despedia, de modo que muitos ahi consumiam sua fazenda ou ahi morriam, sem chegarem a conclusão alguma, sorte que esperava igualmente a quaesquer membros da clerezia que manti- vessem as immunidades, desobedecendo aos juizes leigos. Se queriam escapar a essa cruel servidão, cumpria aos primeiros revogar as próprias decisões; aos segundos sujeitar-se. A Mesa da Consciência, então instituída, era um novo escândalo que surgia. Greado como corpo consultivo para o monarcha saber quaes graças tinha em consciência obrigação de conceder ou de negar, tornara-se desde logo em tribunal, tribunal onde se quebravam todos os foros do clero e se dispunha, em contra- venção das leis da igreja e das resoluções pontifícias, das cousas ecclesiasticas. Outros excessos do governo português que feriam a auctoridade da apostólica eram o ter aban- donado aos mussulmanos Çafim e Azamor, o enviar por conta própria ao Oriente carrega- ções de bronze, que os príncipes infiéis con-

24 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

vertiam em artilheria, e o haver celebrado, conforme se dizia, paz com os turcos, para manter a qual se lhes pagariam páreas no va- lor de cem mil ducados annuaes, tendo-se in- cluido nos benefícios da convenção dos esta- dos de Carlos v, mas omittindo-se os do pontífice, agora que a sua situação era mais critica, e isto sem dar conta de cousa alguma á apostólica, de quem aliás se impetrara permissão para se poder negociar com a Tur- quia.

O estado politico e económico de Portugal naquela epocha é descripto na minuta das instrucções ao bispo de Bergamo com as mais sombrias cores (1). A realidade dos fac- tos era que o paiz se achava reduzido a taes termos, que se podia dizer quasi exhausto de forças. O rei, além de estar pobríssimo, com uma enorme divida publica dentro e fora do reino, e de ser obrigado a pagar avultadíssi- mos juros, era detestado pelo povo e ainda

(1) Este quadro acha-se quasl no fim das instruc- ções, mas alii mesmo se nota que queílo che si do- vera dir prima si dirá per ultimo. Resumindo-as, não seguimos as instrucyões senão quanto a subs- tancia das idéas, e não quanto á sucessão delias, por ser em extremo desordenada.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 25

mais pela nobreza ; não porque fosse de Índole, mas em razão dos conselhos que lhe davam e das obras que faziam os que o ro- deia vam. As questões com França, por causa das navegações e conquistas e de alguns ne- gócios de familia, em que andava envolvido o imperador Carlos v, toldavam tristemente os horisontes da politica externa, a ponto que ameaçavam Portugal da ultima ruina. Isto, que os homens de bem e sisudos previam e temiam, não mostrava prevê-Io nem temê-lo elrei. O seu systema era não recuar diante de nenhuma consideração, nem perigo, e oppor a tudo vãos discursos, pensando aterrar com bravatas os adversários. Esse deplorável sys- tema não era, porém, senão o resultado das suggestões dos que o cercavam. Indicava-se por isso ao bispo coadjutor a necessidade de desprezar todos os feros da corte de Lisboa nas questões em que convinha mostrar ener- gia, e nesta parte appelava-se para o teste- munho dos núncios passados. Roma tinha, de mais, a seu favor três circunstancias : um clero numeroso, a Índole fanática da plebe, e a própria hypocrisia do governo. Sobre o modo de tirar vantagem destes diversos elementos é assas curioso um paragrapho das instruc- ções : «Elrei e seus irmãos dizia-se ahi ,

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quer o facto provenha dos frades, com quem tractam de continuo e de cujas letras e cons- ciência se fiam, quer de alguns malvados com quem se aconselham, nunca mostraram boa vontade ás cousas de Roma. Não deixam por isso de pô-la nas nuvens, quando oblem al- guma concessão, para fazerem respeitar esta. Diz-se que a razão principal porque repugnam á nunciatura é porque nunca lhes faltam bons desejos de usurpar a jurisdicção ecclesiastica, não tanto para se apoderarem dos bens da igreja, como para mandarem em tudo, pondo e tirando prelados e preladas das corporações regulares, segundo as suas conveniências, chamando os clérigos aos tribunaes civis, com outras exorbitâncias análogas. Todavia não ha a menor duvida de que se podem oppor barreiras a estes desconcertos, vista a osten- tação que fazem de não procederem senão por conselho de religiosos, e por serviço de Deus e de sua sanctidade (1), e attenta a Índole do povo português, tão obediente á apostólica e tão religioso, com o qual seria arriscado

(1) Quem está habituado á linguagem devota dos documentos officiaes e correspondências diplomá- ticas do governo de D. João iii não pôde deixar de reconhecer a exacção destas observações.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 27

gracejar em taes matérias. Com estes dous elementos, havendo núncio devidamente auc- torisado, o governo ver-se-ha constrangido a seguir o bom caminho, salvo se os que ro- deiam o soberano perceberem que lhes têem medo, porque nesse caso usurparão a Roma tudo o que poderem, emquanto lh'o tolera- rem. O que é certo é que a nobreza e grande parte do povo não podem de modo algum desembaraçar-se das mãos da cúria romana nem moverem-se independentes delia ; porque quasi todos, ou por commendas, ou por be- nefícios, ou por bens emprazados, ou por pa- rentes clérigos, comem redditos ecclesiasticos com bulias e provisões pontifícias, sem as quaes ninguém se julga seguro, do que po- dem dar testemunho os núncios anteriores e a Penitenciaria, não havendo a mais pequena duvida sobre qualquer objecto, acerca da qual não requeiram provimentos e despachos da chancellaria apostólica».

Appreciados assim os factos, o redactor da- quelles apontamentos tirava-lhes as conse- quências practicas. Supposta a decadência do paiz, a habilidade consistia em aproveitar as circumstancias para da própria miséria pu- blica extrahir ouro. Os alvitres eram muitos, e delles indicaremos os que parecem mais

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notáveis. Os commendadores das ordens mi- litares dentro de oito mezes depois de provi- dos eram obrigados a tirar breves de confir- mação e a pagar os emolumentos da camará apostólica. A maior parte delles não o tinham feito, e as rendas de todo esse tempo perten- ciam por direito á santa sé. Era uma mina para explorar que valia mais de cem mil es- cudos. A união de rendimentos de igrejas ás commendas da ordem de Christo, em tempo d'elrei D. Manuel, fora concedida com a limi- tação de não excederem esses rendimentos, distrahidos da sua legitima applicação, a vinte mil ducados, e todavia excediam agora a oitenta mil. Querendo o papa revogar aquella união, o clero hierarchico pagaria uma com- posição avultadíssima, e não querendo senão reduzir as cousas aos termos da concessão primitiva, ainda assim o clero curado paga- ria uma grossa quantia ao papa. Lembrava-se também que se poderia conceder aos clérigos a faculdade absoluta de testarem pagando uns tantos por cento á camará apostólica. Era cousa de render muito dinheiro; porque se removeriam os inconvenientes e questões que se levantavam sobre as heranças dos eccle- siasticos, e assim os herdeiros soffreriam de boa vontade o encargo para evitarem deman-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 29

das e vexames do fisco. Sendo enorme pec- cado subministrar ou vender aos infiéis ar- mas ou munições para hostilisarem os chris- lâos, e tendo a igreja fulminado terriveis cen- suras contra qualquer trafico de tal ordem, sendo também certo que a exportação de bronze para o Oriente, feita por conta da co- roa de Portugal, dera em resultado haver principes asiáticos que tinham mais nume- rosa artilheria do que o próprio imperador ou que elrei de França, era evidente que des- tas circumstancias se aufeririam extraordi- nários proventos, se fossem habilmente apro- veitadas. O negocio do bronze era assas im- portante para a coroa portuguesa, e o damno que delle provinha ao christianismo grandis- simo e indubitável. O perdão quanto ao pas- sado não se podia vender barato, e um gran- de mal para a igreja catholica não se podia auctorisar por insignificante preço Era ne- cessário que saísse cara á corte de Lisboa a remissão da culpa commettida, e não menos o habilitar-se para continuar num commercio peccammoso, que assim se transformaria em excellente veniaga para a cúria. Outro alvi- tre se offerecia como de não menor interesse. Havendo em Portugal muitos prasos eccle- siasticos em vidas, e desejando vivamente

30 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

OS empbyteutas, ou colonos convertê-los em íateosins perpétuos, o núncio devia ser aucto- risado para essa conversão. Concedendo- se, o colono pagaria de bom grado qualquer taxa que se lhe exigisse pelo beneficio. Se, porém, o individuo ou corporação a quem o prédio pertencesse se opposesse a isso, também se podia negar a conversão, conforme o que rendesse mais; porque os directos senhorios não deveriam obter de graça a certeza de consolidarem o dominio útil no fim das vi- das em que andasse o praso. Affigurava-se este negocio ao redactor das instrucções como de grande vulto; mas recommendava-se ao núncio que fizesse ruído com elle, e que fosse tractando das questões de conversão ou não conversão ao passo que se fossem susci- tando, acaso porque se devia temer a justa intervenção do poder civil num objecto que tão gravemente podia influir na propriedade territorial.

Taes eram as astúcias, conforme se pensava na cúria romana, com que ainda se tirariam grossas sommas de um povo exhausto. Não particularisamos diversas advertências de me- nos substancia feitas ao núncio sobre o modo da sua entrada, sobre o seu futuro procedi- mento em Portugal e sobre outras matérias.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 31

O que fíca dicto basta para mostrar a idéa que se fazia em Roma deste paiz, e quaes as intenções e os desejos da cúria pontifícia acerca delle. A parte das instrucções relativas aos christãos-novos é o que particularmente nos interessa e que vamos extractar. Ahi acharemos os últimos toques do triste quadro, desenhado neste notável documento, na deca- dência moral e material a que, naquella epo- cha de profunda corrupção, se tinha geral- mente chegado.

Na opinião do redactor dos apontamentos. o núncio devia trazer a bulia declaratória pro- mettida aos christãos-novos, sobre cujo con- teúdo não se podia admittir mais controvér- sias, visto que não continha na essência senão o que, depois de vivos e longos debates, a corte de Portugal acceitara por órgão do seu ministro D. Pedro Mascarenhas. Cumpria que o núncio a intimasse ao infante D. Henrique sem pedir beneplácito régio, nem dar o mo- tivo porque se demorara a sua expedição, e respondendo a todas as objecções «que era aquella a resolução definitiva de sua sancti- dade, e que podiam requerer-lhe directamente se quizessem». Da publicação solemne da bulia é que devia abster-se, embora os medro- sos conversos insistissem nisso, porque seme-

B2 HISTORIA Da inquisição

Ihante acto de nada lhes servia, e era afíron- tar elrej e seus irmãos ante o povo. Passar certidões delia a lodos os que as quizessem para a poderem invocar onde lhes conviesse, eis o que unicamente importava, para que se não podesse proceder contra elles senão na forma da nova bulia. As instrucções accres- centavam.

«Elrei, segando se diz, tem muito a peito este negocio dos ciiristãos- novos, e tanto elle como o infante D. Henrique desejariam bem que não iiouvesse quem acerca disso lhes tomasse contas. Se acharem meio de vergar o animo do núncio, não deixarão de o tentar Por isso convém que este e lhes fale com resolução, e que leve poderes para suspender e até para abrogar a Inquisição, mostrando esses pode- res a quem lhe parecer e provando aos inte- ressados na existência delia que em suas mãos está dar cabo de uma cousa que tanto estimam. Cumpre lambem que saiba o núncio ser voz constante que o infante D. Luiz é um furioso (1) em manter o novo tribunal e em fazer que elle seja severíssimo, porque o im- perador assim lh'o ordenou positivamente.

(1) É molto arrabiato.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 33

Tem este para isso varias razões. A principal é temer que, reprimida a Inquisição portu- guesa, venha o exemplo a ser fatal para a hespanhola. A outra razão que move o impe- rador é que, estabelecida em Portugal a In- quisição, perdem essa acolheita os castelhanos perseguidos, e por tal modo, tanto estes como os portugueses se refugiarão, aqui ou acolá, em terras do império ou delle dependentes, havendo em Flandres um grande numero de foragidos, que abrem as bolças quando assim é preciso.»

Taes vinham a ser em summa as matérias mais interessantes contidas nas instrucções preparadas para o bispo coadjutor de Ber- gamo. Delias resulta que o procedimento da cúria era determinado pelo desejo de manter a própria influencia e de auferir os maiores lucros, embora ignóbeis, ainda das mais po- bres e opprimidas nações catholicas. Quanto a Portugal, o que se deduz de tão singular documento é que, apesar da linguagem altiva do monarcha nas suas relações diplomáticas, o paiz chegara a extrema decadência e fra- queza e que, apesar das manifestações exter- nas de devoção exaggerada e de zelo feroz pela pureza das crenças, a corrupção era pro- funda e grande a hypocrisia. Podia haver um

TOMO II! 3

34 HISTORIA DA IXQUISIÇÃO

OU outro ponto menos correcto na exposição dos factos em que as instrucções se estriba- vam, mas a appreciação geral delles era exacta. Não escrevendo a historia do reinado de D. João ni, mal poderiamos, na verdade, colligir aqui todos os vestígios que nos res- tam da irremediável decadência moral e ma- terial do paiz naquella triste epocha, decadên- cia que explica sobejamente o próximo termo que teve a nossa independência. Entretanto, para que o leitor possa ajuizar se a cúria ro- mana estava bem informada, mencionaremos vários factos caracteristicos dessa miséria económica e dessa perversão de costumes de que em Roma esperavam tirar tão assignala- das vantagens.

noutros togares temos tido occasião de alludir ás dificuldades da fazenda publica na epocha de D. João ni e á administração económica do remo. As actas das cortes de 1525 e 1535 dão grande luz sobre este as- sumpto. Algumas notas estatísticas, relativas a annos posteriores, esclarecem-nos ainda melhor a tal respeito. São essas notas do conde da Castanheira, vedor da fazenda, e por isso homem especialmente habilitado para appreciar a situação do erário. A divida pu- blica era em 1534 de mais de dous milhões,

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 35

somma avultadíssima, numa epocha em que o orçamento ordinário da receita e despesa não chegava talvez annualmente a um milhão de cruzados (1). Levantavam-se empréstimos por todos os modos, e, como noutro logar dissemos (2), o juro do dinheiro negociado em Flandres subia em 1537 a cento e vinte mil cruzados (3). Em 15-43 a divida estran- geira era proximamente igual a toda a divida publica de 1534 (4). Os juros vencidos daquel- les empréstimos tinliam sido tão exorbitantes que a sua importância excedia o capital. Cal- culava-os o feitor português de Flandres em 25 por cento ao anno, termo médio, de modo que a divida dobrava em cada quatro annos (5). Para alliviar, até onde fosse possivel, estes intoleráveis encargos pediu elrei nas cortes d'Almeirim de 1544 duzentos mil cruzados ao terceiro estado, o qual offereceu cincoenta mil (6). Recorria depois aos empréstimos indi-

(1) Sousa, Annaes, Memor. e Doe., p 385.

(2) Vide ante T. 2, p. 211.

(3) Sousa, ibid. p. 401.

(4) Ibid. p. 409 e seg.

(5) Ibid. p. 410 6 417

(6) Ibid. p. 417. Memor de Litter. da Acad, T. 2, p. 1G2.

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viduaes. Para isso, mandava escrever cartas ás pessoas abastadas do reino, significando a cada uma com quanto desejava que concor- resse (1). Estes convites do fundador da In- quisição não eram de desattender, e a gene- rosidade devia tornar-se virtude assas com- mum, embora a agricultura, o commercio e a industria padecessem com essa absorpção de capitães. As cousas haviam chegado a termos, ainda antes de 1542, que as pessoas sisudas e experientes quasi de todo desanimavam. Nunca de memoria d'homens tinha sido tão profunda a desorganisação da fazenda publi- ca. Nem o rei, nem os súbditos podiam com os encargos, e era fácil prever que cada vez menos poderiam com elles. Desde que se encetara o caminho ruinoso dos empréstimos, nunca mais se abandonara, e o estado quasi que exclusivamente vivia desse expediente. Gomo as necessidades cresciam, tractou-se de vender padrões de juro, isto é, de ajunctar a divida permanente interna á externa, e, apesar da resistência do conde da Castanhei- ra, venderam-se iilimitadamente titulos de di- vida publica. Parou-se quando deixou de

(1) Sousa, ibid. p. 412 e 413.

HISTORIA DA ISQUISIÇÃO 37

haver quem comprasse. O próprio vedor da fazenda achava que não restavam recursos, nem sequer na ahenação das jurisdicções, isto é, dos direitos magestaticos, pela simples razão de faltar quem tivesse dinheiro para dar por ellas. Mas os empréstimos feitos fora do paiz também não tardariam a cessar, na opi- nião do conde da Castanheira, e ainda tarda- riam menos, mostrando-se que o rei de Por- tugal não cuidava em reduzir as despesas, ou em crear novos recursos para a manutenção do estado (1).

Vê-se, pois, que as idéas recebidas na cúria romana acerca da situação económica do povo português não eram inexactas. O conceito que se pôde formar do estado moral do paiz á vista das instrucções dirigidas ao novo núncio não é menos seguro. A dissolução dos costu- mes associava-se a miséria e á fraqueza, cubrindo-se com as formulas de uma religio- sidade fervente, como a pobreza e a debili- dade se encubriam sob as apparencias do esplendor e sob a linguagem altiva da omni- potência. De muitos testemunhos dessa triste verdade, escolheremos dous que nos parecem

(1) Carta do conde de Castanheira a elrei: Ibid. p. 45G.

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acima de toda a suspeita. Serão o de D. João iii e o do carmelita Fr. Francisco da Conceição, frade português, homem de letras e consultor do concilio de Trento, na conjunctura em que este fizera temporariamente assento em Bolo- nha. Tomou o carmelita a seu cargo informar os padres do concilio do estado moral e reli- gioso da sua pátria, para que a assembléa geral dos pastores acudisse com remédio aos males que deplorava. Era necessário para isso expô-los sem disfarce. Foi o que fez numa es- pécie de consulta que chegou até nós e que se pôde considerar como confirmação e com- plemento do quadro que resulta dos documen- tos officiaes do próprio D. João iii,

Involvido de continuo em questões eccle- siasticas, e sobretudo em questões fradescas, e deixando, como acabámos de ver, caminhar o estado á ultima ruina, o rei de Portugal en- tretinha-se, nos intervallos de descanço que lhe concediam as matérias da Inquisição, em pensar na creação de novas sés, na translação de mosteiros de ordem para ordem, na refor- mação, fundação ou suppressão de outros, em introduzir frades na jerarchia ecclesiastica, em intervir nas luctas de ambição sobre pre- lazias monásticas e em todos os demais ne- gócios desta espécie, muitas vezes inferiores

HISTORIA DA ÍMQUISÍÇÃO 39

aos cuidados próprios de um rei. A mesma reforma da universidade, idéa generosa o grande a principio, descera ás proporções de uma intriga de claustro, sobretudo desde a entrada dos jesuitas no reino. As questões ecclesiasticas tornavam por isso a enviatura de Roma a mais trabalhosa de todas e volu- mosissima a correspondência com os minis- tros e agentes naquella corte. Quem quizesse ceifar por entre o dos archivos a immensa seara de vergonhas e misérias que se dilata por essa correspondência cansaria talvez no meio de tão repugnante lavor. Para o nosso intuito basta que aproveitemos alguns factos que sobejamente indicam a decadência moral e religiosa daquella deplorável epocha.

Se acreditarmos D. João in ou os que fala- vam em seu nome, a immoralidade pullulava por toda a parte, sobretudo entre o clero, e especialmente entre o regular, que elle tanto favorecia. Os ecclesiasticos, por exemplo, da vasta diocesse de Braga eram um typo aca- bado de dissolução. Os parochos abandona- vam as suas igrejas, e o povo não recebia a necessária educação religiosa, faltando castigo para tantos desconcertos (1). Os mosteiros

(l) Collecção de correspondências e papeis origi-

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offereciam os mesmos documentos de pro- funda corrupção, distinguindo -se entre elies o de Longovares, da ordem de Santo Agosti- nho, e os de Ceiça e Tarouca, da ordem de Cister (1), ou antes nenhum dos mosteiros cistercienses se distinguia ; porque em todos elies os abusos eram intoleráveis. Os abba- des, que, segundo a regra, occupavam o cargo vitaliciamente, faziam recordar no seu modo de viver os devassos barões da idade média. A opulência manifestavam-na em custosas e nédias cavalgaduras, em aves e cães de caça e numa numerosa clientela, completando al- guns essa existência de luxo com mancebas e filhos, que mantinham á custa do mosteiro. Viviam os monges pelo mesmo estylo, na crápula e na bruteza, servindo muitas vezes como criados do abbade, de modo que, na opinião d'elrei, não havia na ordem de Cister senão ignorantes e devassos (2). Os conven-

naes do reinado de D. Joào iii, pertencente ao sr. A. J. Moreira, Qaaderno 19 (Informações para se eri- girem as sés de Miranda e Leiria).

(1) Ibid. (Informações para se mudarem ou anne- xarem os mosteiros de Ceiça, Tarouca, Longovares, S. Fins de Friestas, etc).

(2) «Do que se segue em os ditos moesteiros (de Bernardos) nom aver religiosos homens de bem e

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los de freiras não se achavam em melhor es- tado, sendo o de Chellas, o de Semide e ou- tros theatro de contínuos escândalos (2). A historia de Lorvão e da sua abbadessa, D. Philippa d'Eça, é um dos quadros mais cara- cteristicos daquella epocha. Lorvão contava então cento e setenta freiras, entre professas, noviças e conversas. A familia d'Eça prepon- derava alli. Delia eram tiradas sempre, havia sessenta annos, as abbadessas, e outros tan- tos havia que a dissolução era completa em Lorvão. Das freiras então actuaes uma parte nascera no mosteiro. Suas mães, não não se envergonhavam de as crear no claustro e para o claustro, mas ahi mantinham também seus filhos do sexo masculino. D. Philippa era uma dessas bastardas, fiel ás tradições maternas. Andava ausente quando falleceu D. Margarida d'Eça, a ultima abbadessa. Aquel- las que tinham vivido em verdes annos com D. Philippa e que contavam com a sua indul-

de boa religiam, e serem lodos ignorantes e homens de pouco saber». Correspondência Orig. de Baltha- sar de Faria, f. 196 (Carta d'elrei de 21 de agosto de 1546), na Biblioth. da Ajuda

(2) Carta deirei a B. de Fana de 6 de setembro de 1515: Ibid. f. 138

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gencia chamaram- na e elegeram-na succes- sora de D. Margarida, estando esta moribun- da. Queria elrei substituir a nova prelada por uma freira de Arouca ; mas oppôs-se a par- cialidade da eleita. Seguiu-se uma longa de- manda em Portugal e em Roma, demanda cheia de estranhas peripécias. Entre estas a mais singular foi o serem certa vez encontra- das D. Philippa e outra freira em casa de um clérigo de Coimbra, escondidas com a sua amante ordinária, que a justiça buscava. A penna recusa-se a descrever o estado em que todas três foram achadas (1). Taes eram as devassidões e os escândalos de que vamos encontrar memoria nos mais insuspeitos do- cumentos.

Mas se estes nos revelam o estado, não do clero hierarchico, mas também do mona- chismo português, as considerações offereci- das por Fr. Francisco da Conceição aos pa- dres de Trento têem um caracter de genera- lidade que abrange todas as classes, e desco- brem ulceras de diverso género, porém não menos asquerosas. Os bispos, com rarissimas excepções, nunca residiam nas suas dioceses,

(1) Cartas d'elrei ao mesmo de 19 de novembro de 1543 e de 9 de julho de 1546: Ibid f. 36 e 185.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 4-3

contentando-se com enviar para vigários geraes, cargo em que, por via de regra, eram providos aquelles que mais barato o faziam, embora delle fossem indignos. Os bispos do ultramar nem sequer curavam de semelhante formalidade, e essas regiões, mais ou menos remotas, estavam completamente privadas de pastores. Segundo affirmava o bom do car- melita, as superstições mulheris, sobretudo nos conventos e nas casas de fidalgas, eram monstruosas, além de outras relativas ao culto publico a que anteriormente alludimos (1). O sigillismo tinha- se introduzido em larga es- cala. Com o pretexto de ser para fins hones- tos e com permissão dos penitentes, os con- fessores revelavam os segredos da confissão Os abusos e misérias que se passavam nos púlpitos eram quotidianos. Pregadores, ha- via-os em nome, mas eram raros, na verda- deira accepção do termo, e esses poucos tra- ctados com desdém. O commum delles o que buscavam eram honras e dinheiro, lison- geiando as paixões do auditório. O povo igno- rava a religião, porque os oradores sagrados curavam de vans subtilezas. Um dos ma-

(1) Vide ante T. 1, p. 2.38.

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les que mais affligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solem- nidades do culto, com altissimo escândalo do povo. Augmentava-se desmesuradamente esse escândalo com o numero prodigioso e com a immoralidade daquelles que pertenciam ao clero por terem tomado ordens menores. Mui- tos tractavam de receber esse grau para se exemptarem da jurisdicção civil. Um dos abusos frequentes que estes taes commettiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processa- vam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunaes seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas. Mal- vados havia, que, aproveitando as declarações daquellas que lhes tinham sacrificado a ultima cousa que a mulher sacrifica, o pudor publi- co, as abandonavam depois, servindo-se da generosa confissão que lhes salvara a cabeça, para despedaçarem os laços sanctos, embora occultos, que os ligavam ás infelizes. Os ca- samentos clandestiftos que facilitavam taes

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horrores, e que eram vulgarissimos, produ- ziam ainda outros resultados não menos de- ploráveis. Negava-se não raro, depois, a exis- tência de um facto que se não podia provar, e o receio do rigor dos pães fazia com que muitas filhas acceitassem segundas núpcias pertencendo a outro homem. Ainda quando não chegavam a esta situação extrema, a ver- gonha e o temor produziam infanticidios em larga copia. Por outro lado, a difficuldade e o preço das dispensas para os consórcios entre parentes completavam a obra dos casamentos clandestinos. Inhabilitados por falta de recur- sos para legitimarem as uniões vedadas, não tendo animo para abandonarem a mulher que amavam e vergando debaixo do peso das censuras canónicas, muitos individuos calca- vam aos pés o sentimento religioso e adopta- vam uma espécie de atheismo brutal, esque- cendo todos os actos externos do culto.

Ha poucos annos que um livro admirá- vel (1) agitou profundamente os espiritos, des- crevendo a existência do escravo nos estados americanos. As scenas repugnantes ou dolo- rosas descriptas naquelle celebre livro pode-

(Ij Líacle Tom's Gabin, pela americana Beecker Stowe.

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riam ler sido collocadas no nosso paiz no meiado do século xvi com a mudança dos nomes dos personagens e dos logares, mas talvez com mais carregadas cores. A vida do escravo, se acreditarmos a narrativa do in- formador dos padres de Trento, era nessa epocha verdadeiramente horrível em Portugal. Mas um povo aífeito a ver tractar assim uma porção dos seus semelhantes deixaria de cor- romper-se e poderia conservar instinctos de nobreza e generosidade ? Os escravos mouros, e negros, além de outros trazidos de diversas regiões, aos quaes se ministrava o baptismo, não recebiam depois a minima educação reli- giosa. Fé não a tinham, ignorando completa- mente o credo e até a oração dominical, o que não procedia do desleixo de seus se- nhores, mas também da relaxação dos prela- dos. Era permittido entre elles o concubinato, misturando-se baptisados e não baptisados, e tolerando-se, até, essas relações illicitas en ire servos e pessoas livres. Os senhores favo- reciam esta dissolução para augmentarem o numero das crias, como quem promove o accrescimo de um rebanho. Os filhos de es- cravos até a terceira ou quarta geração (1),

(1) «In tertia etiam et quarta generatione» As fa-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 47

embora baptisados, eram marcados na cara com um ferro em braza para se poderem ven- der, e por isso as mães, desejosas de evitar o triste destino que esperava seus filhos, pro- curavam abortar ou commettiam outros cri- mes. Os maus tractos de seus donos, accu- mulando o ódio nos corações dos escravos, faziam com que estes ás vezes recusassem tenazmente o baptismo, que nenhum alUvio lhes trazia. De feito, nas crueldades que so- bre elles se exerciam não havia distincções. O castigo que ordinariamente lhes davam era queimá-los com tições accesos, ou com cera. toucinho ou outras matérias derretidas. Uma circumstancia aggravava o procedimento que se tinha com estes desgraçados. Boa parte delles nem eram captivos na guerra pelos por- tugueses, nem comprados por estes aos ven- cedores nas luctas entre as nações e tribus barbaras da Africa, da Ásia e da America; eram homens naturalmente livres, arrebata-

milias servas, principrlmente os pretos, índios e americanos, não podiam passar ainda da terceira ou quarta geração, atlenta a epocha dos descubri- mentos e conquistas. Dos captivos mouros da Ber- béria poucos podia haver, pela necessidade frequen- te de os trocar por captivos christãos.

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dos da pátria pelos navegadores, e trazidos a Portugal para serem submettidos a perpetua servidão. Finalmente, os consórcios legitimos entre as pessoas escravas e livres, consórcios assas frequentes, tornavam-se'para os senhores num meio de satisfazerem os mais baixos e ferozes instinctos de crueldade; de folgarem com o espectáculo das agonias mais pungen- tes do coração humano. Quando o livre que- ria remir a consorte captiva, oppunha-se o senhor, e não raro a pretensão dava origem a scenas de violência e de sangue, ou a ser vendida a pobre escrava para terras longín- quas, quebrando-se assim por um impio ca- pricho os laços sanctificados pela igreja (1). Tal era o estado da religião e da moral num paiz que se lançava nos extremos da intolerância e onde se pretendia conquistar o céu com as fogueiras da Inquisição; tal era o estado económico desse mesmo paiz, que ex- pulsava do seu seio ou assassinava judicial- mente os cidadãos mais activos, mais indus- triosos e mais ricos, destruindo um dos prin- cipaes elementos da prosperidade publica, ao passo que os desconcertos e prodigalidades

^1) Fr.F. a Conceptione, Annotatiunculae in Abu- sus, na Symmicta, vol. 2, f. 182 v.

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de um governo inepto sepultavam na vora- gem da usura todos os recursos do estado. A corte de Roma, que, nas suas relações offi- ciaes com a de Portugal, lisongeiava não raro as vaidades do rei e do reino, vê-se que sa- bia, nas suas notas secretas, appreciar devi- damente os méritos de um e as forças do outro. O leitor, porém, habilitado para avaliar a exacção das appreciações da cúria, igual- mente o fica para ajuizar acerca dos senti- mentos de lealdade, de desinteresse, e sobre- tudo de caridade christan, que serviam de norte á politica de Roma para com uma na- ção pobre e corrompida, que ella própria re- conhecia como supersticiosa e fanática, e pa- ra com um rei que reputava inhabil, e cuja força morai se reduzia, conforme ella affirma- va, a encubrir a extrema fraqueza debaixo das vans formulas de uma linguagem altiva. Se, como vimos, apesar da retirada dos agentes diplomáticos de Portugal, a corte de Roma nem por isso deixava de enviar a este paiz um núncio para conduzir os seus negó- cios pendentes, também, apesar daquella es- pécie de ruptura com o governo pontifício, D. João m não abandonava o campo aos con- versos na luta relativa ao tribunal da fé. Ao tempo em que se preparava a partida de Lip-

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pomano, o doutor BalLhasar de Faria, juiz da Casa da Supplicação, era enviado a Itália pa- ra tractar dos negócios da Inquisição, posto que sem o caracter de embaixador. Deviam ajudá-lo neste empenho, não o agente or- dinário Pier Domenico, mas também um cer- to mestre Jorge e Fr. Jeronymo de Padilha, que para os mesmos fins se achavam nessa conjunctura em Roma (1). Chegando alli na entrada de julho, encontrou o novo agente fá- cil accesso ao papa por intervenção de Pier Domenico e dos cardeaes que favoreciam as pretensões de D. João iii; mas nem por isso, durante mezes, adiantou cousa alguma na questão dos conversos. As audiências inúteis, as informações de cardeaes, os debates inter- mináveis com que sabiam em Roma dilatar a conclusão de qualquer negocio espinhoso ou desagradável para a cúria, conhece-os de so- bra o leitor. Todos esses embaraços torna-

(1) C. de P. Domenico a elrei de 27 de julho de 1542, G. 2, M. 5, N.» 17. Correspondência original d*eirei para Balthasar de Faria, f. 5 (na Bibliotheca da Ajuda): Carta de 20 de janeiro de 1543.— Da car- ta do Procurador dos Christãos-novos a Jorge Leão de 18 de maio de 1542 (G. 2, M. 2, N.o 51) se que Fr. Jeronymo de Padilha estava em Roma desde maio tractando do negocio da Inquisição.

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vam a situação de Balthasar de Faria dupií- cadamente difficil, visto que os ministros que o haviam precedido, revestidos do caracter de embaixadores, podiam empregar a íorça mo- ral que d'ahi lhes resultava para vencerem certos obstáculos e ardis, contra os quaes so- mente aproveitavam a decisão e a energia, ao passo que elle, investido de attribuições mais restrictas, estava longe de poder proceder com a altivez de que os seus antecessores, sobretudo D. Pedro de Mascarenhas, tinham sabido servir-se a propósito. Era essa uma das principaes vantagens que os conversos tinham tirado da quebra das relações diplo- máticas entre as cortes de Lisboa e de Roma. Entretanto, é certo que, apesar destas ap- parencias favoráveis para a causa dos judeus portugueses, e da protecção, sem duvida sin- cera, do cardeal da Silva, essa causa, que pa- recia ganhar terreno, ia em decadência, deca- dência cujos signaes vamos hoje encontrar nos documentos contemporâneos. Querer é, quasi sempre, poder: o que é excessivamen- te raro é o querer; e o erro vulgar consiste em confundir o desejar com o querer. O de- sejo mede os obstáculos: a vontade vence-os. D. João III queria a Inquisição: os seus con- selheiros queriam-na. Fosse cubica, fosse íá-

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natismo, a vontade do rei, accorde com a dos ministros, era immutavel, era fatal, como o são todas as vontades no seu máximo grau de energia. Assim é que se vence. Nesta si- tuação de animo, as balisas que distinguem o moral do immoral, o justo do injusto, a vir- tude do crime, a sanctidade da abominação, desapparecem aos olhos do espirito reconcen- trado num único pensamento, numa inabalá- vel tenção. Quando as cousas chegam a taes termos, pôde haver difficuldades, porém não ha impossíveis.

Os hebreus portugueses sentiam isto sem, talvez, o explicarem a si próprios. Do âmago do seu proceder, das suas intrigas e astúcias, dos sacrifícios que faziam para se melhora- rem na lucta, como que transsuda o desalen- to. Dir-se-hia que descortinavam no horisonte a victoria difinitiva dos adversários. Diante da recrudescência de rigor da parte da Inquisi- ção, em vez de se fortificarem unindo-se em concerto de intentos e de actos, desuniam-se vacillantes e medrosos, deixando escaceiar os recursos, negando-os, talvez, aos agentes en- carregados em Roma da defesa commum. Cada qual individualmente tractava de obter, muitas vezes por esses mesmos agentes, para si e para os seus, breves de protecção, que

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OS posessem a salvo da perseguição. A ex- periência do passado e as advertências da- quelles que em Roma lhos sollicitavam não podiam desenganá-los da inutilidade de laes diplomas, cujas provisões os inquisidores an- nullavam facilmente com as subtilezas e de- clinatorias jurídicas (1). O fanatismo, irritado pelos obstáculos que por tantos annos se ha- viam opposto ao seu decisivo triumpho, tinha, além desse, outro meio de tornar inúteis aquel- les breves de protecção, excitando a plebe, sempre feroz, a practicar contra as familias hebréas as scenas de violência e de anarchia que adiante iremos encontrar, e a que eram de certo preferíveis as perseguições legaes, em que ao menos se guardavam as formulas de um processo regular, e havia um symula- chro de justiça.

(1) Carta de 18 de maio de 1542 acima citada, na G. 2, M. 2, N.o 51. Esta carta, copia sem assignatura. era do procurador dos christãos-novos, Diogo Fer- nandes Neto, como consta das Instrucções sem data que se encontram no vol. 3 da Collecç. Ms. de S. Vicente, f. 136. Vejam-se também as cartas de P. Do- menico desse mesmo anno, G. 2, M. 2, N.® 53, e M. 5, N.° 17 e 38, e os breves de protecção a favor de vários judeus portugueses, no M. 17 de Bulias N.o 14. M. 25, N.« 14, M. 37, N.^ 49 etc., no Arch. Nac.

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A noticia da vinda do núncio, apesar dos esforços de Pier Domenico, no estado em que as cousas se achavam, e em opposição com os últimos accordos feitos em Roma antes da interrupção das relações diplomáticas, devia inquietar, e de feito inquietou vivamente a corte de Lisboa. Ou significava desprezo da enérgica demonstração de desgosto dada ao papa pela eleição do cardeal da Silva, ou le- vava á evidencia que Paulo ni, pondo de parte o próprio decoro como soberano, pensara em cumprir as promessas feitas aos christãos- novos, isto é, em oppor um firme antemural aos actos da Inquisição, o que parecia acabar de justificar a voz publica de que o coadjutor de Bergamo lhes vinha completamente ven- dido. Na verdade, a missão ostensiva do novo núncio era tractar com elrei matérias relati- vas á futura celebração do concilio geral ; mas esse pretexto não illudia ninguém, e to- dos sabiam, tanto em Roma como em Portu- gal, que Luiz Lippomano devia dedicar-se a negócios mais instantes (1).

(1) Na carta attribuida ao bispo de Viseu, resu- mida nas Instrucções sem data do vol. 3.° da Col- lecç. de S. Vicente, f. 137 v., diz-se que a missão do núncio relativa ao concilio era apenas um pretexto,

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Um facto, porém, succedido neste meio tempo, veio fixar definitivamente os ânimos acerca do procedimento que cumpria adoptar em relação ao enviado pontifício. Esse facto, semelhante á divindade do poeta romano saída da machina para trazer o desenlace da enre- dada tragedia, justificava a audaz resolução que se tomou naquella conjunctura. E não a justificava ; tornava-a indispensável. Esta opportunidade singular azo á suspeita de que o acontecimento fosse uma fabula inven- tada para servir aos intuitos da politica ; nem a suspeita de falsificação será temerária em relação a uma corte e a uma epocha em que até o assassinio occulto se reputava expe- diente permittido (1). É certo, porém, que os

e que o verdadeiro motivo da sua vinda era o ne- gocio do cardinalato do bispo. E' possivel; mas os documentos anteriormente citados provam de so- bejo que a matéria da Inquisição e dos ciiristãos- novos não havia influído menos naquella missão.

(1) Veja-se ante T. 2, p. 153, 168, 344. Além dos fa- ctos citados nesses logares, temos documento di- recto e irrefragavel de que o assassinio era um meio ordinário de governo na piedosa epocha de D. João III. Os homens que empregavam como instru- mento de administração o punhal do assassino não deviam hesitar demasiado em empregar a pena do

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documentos que nos restam a tal respeito não nos habilitam, nem para affirmar, nem para negar absolutamente a realidade do successo. Nos meiados de 1542 o juiz de fora de Ar- ronches apresentou-se na corte, trazendo com-

falsario para fins políticos. O documento a que nos referimos acha-se original no Corpo Chronol., P. 2.a, M. 162, Doe. 120, no archivo da Torre do Tombo. E* o seguinte :

«Francisco lobo eu elRei vos emvio muyto saudar e comfiamdo que farês o que de vós sespera vos qis por nas mãos cousa que tanto compre a meu se- ruyço o que semdo por vós acabado sempre serey lembrado do gramde seruyço que niso me fizestes: o que será de maneyra e com tanto Recado que por nynhua via se posa sospeitar donde foy feito, que doutra maneyra mays seria desseruiço que seruiço : e diguo que nesta nao que ora veyo da índia que está nas ilhas vinha domingos vaz piloto com bas- tiam Roiz seu sobrynho o qal domingos vaz fuy ora emformado que nam vem da india qa senam com vontade de me desseruyr por comselho de mui- tas pessoas que la ficam que eu muito desejo saber qem sam porque ele trás seus asynados e vontades por escrito pêra mylhor seguirem seu mao prepo- syto: e porque diso dele se nam tinha nynhua sos- peita ele teue maneyra que se deytou num navio que ya pêra as canárias pêra day se pasar a cas- telã : e por que eu sey que ele nam pode deyxar de ir ter a esa cidade de malegua ou por ay da Redor vos mamdo que tenhais tal maneyra que sejais de

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sigo uns maços de cartas, que assegurava ter apprehendido a um correio vindo de Flandres, e que pretendia pôr nas mãos d elrei. Porque esta apprehensão espontânea e não motivada ? Porque vir pessoalmente o magistrado entre-

sua vymda por esa terra sabedor, e sabemdo, elle seja morto, e custe o que custar, e com tanto aviso como se deue íaztr cousa de gramde meu segredo a qal feita ou nom feita nunca sairá de vos e fernam dalmeida que esta vos dará vos dará a mays em- formaçam e os synaes dele porque ele vay a via das canárias abucalo e a outras partes: e o que fer- nam dalmeida de vós ouver mister será prouido e lhe podes dar nesta parte imteiro credito, feita em Jisboa XXVI de abril antonio carneiro a fez 1530 Rey.

Sobrescrípto PoT elRei a Fr^» lobo cavai'"" de sua casa seu feitor em malegua.

Dyguo eu fernam dalmeyda escudeyro delRey noso senhor que he verdade que Receby de Fr^*' llobo feytor do dyto senhor cem cruzados e huum cauallo sellado e emfreado per virtude de huma carta dellRey noso senhor em que me mandaua fa- zer algumas cousas de seu seruygo e porque tudo Receby delle lhe dey este feyto e asynado per mim em mallaga a vynte e dous de Junho de myll e quy- nhentos e trynta um annos. Fernam dallmeyda.

A f. 186 L.» 2.« são lançados em despesa r viu rs. que deu a este fernão dalmeida-s-xxxvu v.c em di- nheiro e X V.C per um caualo que lhe comprou. Tem conhecimento do dito dinheiro.»

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gar a elrei maços de cartas cuja importância ignorava? As memorias daquelle tempo não nos revelam esse mysterio (1). Eram dous os maços : um dirigido a Nuno Henriques, mer- cador hebreu de Lisboa ; outro a mestre Jorge Leão, um dos homens mais influentes entre os christãos-novos. O primeiro maço, con- tendo uma carta do agente de Nuno Henri- ques em Flandres, encerrava algumas outras sem sobrescripto : no segundo encontrava-se uma carta de Diogo Fernandes Neto, e outra também sem sobrescripto. Tanto na do agente de Nuno Henriques, como na de Diogo Fer- nandes indicava-se de um modo obscuro a quem se deviam entregar as que não vinham sobrescriptas, mas na dirigida a mestre Jorge dizia o procurador dos christãos-novos que ao homem de Viseu se devia muito, porque o ajudava como bom amigo, e que se desse a sua mulher em mão própria a carta que vi-

(1) «aconteçeo dhi alguus dias que o juiz de fora da villa darronciíes trouxe a eJRei nosso senhor certos maços de cartas que dise que tomara a huú corrêo etc.» Instrucções na CoiJecção de S. Vi- cente, vol. 3, p. 135 V. Esta espécie d'Instrucções ou antes Memoria diplomática é o único monumento em que achamos assim particuJarisada a apprehen- são daquellas cartas.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 5^

nba inclusa (1). Abertos, não os maços, mas também as cinco cartas sem direcção, achou-se que estas eram em cifra. As pala- vras homem de Viseu fizeram crer que a mysteriosa correspondência fosse do cardeal da Silva. Podia ser subtil a suspeita : sensata não o era, visto que o antigo bispo de Viseu não deixara, por certo, em Portugal mulher legitima, á qual se entregasse uma carta sua. O que, porém, faz sobretudo duvidar se aquella correspondência e a sua apprehensão foram ou não um invento, uma comedia politica, é que se mandaram lançar pregões, annuncian- do o premio de três mil cruzados, somma então avultadissima, para quem lesse squel- las cifras. Appareceu um individuo que o al- cançou, e elrei pôde, emfim, certificar-se do seu conteúdo. Restam-nos centenares de do- cumentos dos quaes se quão frequente uso o governo português e os seus agentes fora

(1) Ibid. No extracto desta carta contido nas Ins- trucçôes ou Memoria diplomática a phrase é ambi- gua. O possessivo sua pôde referir- se tanto á mu- lher do homem de Viseu como á de Diogo Fernan- des. Da copia, porém, dessa carta que se acha por integra na G. 2, M. 2, N.o 51, se claramente que se refere á mulher do homem, de Viseu.

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do reino faziam deste meio de communicar cousas secretas. Os ministros de D. João iii deviam ser hábeis em decifrar documentos de tal ordem, e deviam-no ser principalmente el- les. Gomo esperar, portanto, não obstante es- ses ruidosos annuncios, que apparecesse um interprete obscuro mais hábil que os officiaes daquella arte divinatoria? Gomo appareceu, de feito, esse homem ? Gomo se esqueceu um meio simples e obvio, o de obrigar os dous christãos-novos aos quaes a correspondência vinha encarregada a declararem que indiví- duos eram aquelles a quem haviam de entre- gar as cifras, e depois apprehender estes, e empregar os meios efflcazes, a que então se costumava recorrer, para alcançar a versão das mysteriosas cartas? Ao menos esses a quem vinham dirigidas deviam saber lê-las. Os pregões lançados e o premio offerecido eram, na verdade, um luxo, singular para taes tempos, de publicidade e de bizarria.

Fosse como fosse, o conteúdo das cartas compromettia altamente o papa, o cardeal da Silva, o núncio que se esperava, e os chris- tãos-novos. Dir-se-hia serem feitas de propó- sito para as circumstancias. Pelo seu theor e estylo, era claramente auctor delias o bispo V isde 9u.Numa gabava-se da sua influencia

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na corte de Roma, e da resolução em que se estava de proceder contra elrei e contra o reino, por causa dos attentados commettidos acerca das cousas delle bispo-cardeal, o que se teria feito, se não fosse o receio de que se vingassem na pessoa do individuo a quem escrevia. Contava como os embaixadores ti- nham saído desorientados de Roma e deplo- rava que a dureza dos tempos não consen- tisse dar-se-lhes com um punhal pelos peitos, esperando todavia que os seus parentes em Portugal lhes recompensassem os bons ser- viços que lhe tinham feito a elle. Referia como o papa procurara, por diversas vias, fa- zer com que elrei se emendasse da irregula- ridade do seu procedimento e como respon- dera ás cartas do imperador^ que, em conse- quência das sol licitações do cunhado, lhe es- crevera sobre este assumpto. O núncio, man- dado então extraordinariamente áquelle sobe- rano, levava nesta parte instrucções taes que o cardeal da Silva esperava que Carlos v fosse o seu melhor protector, e com effeito este tinha promettido intervir a favor delle com elrei, não obstante o que, cumpria tor- nar propicio Luiz Sarmento, embaixador de Castella em Lisboa, como lh'o era o mar- quez de Aguiar em Roma, o que seria fácil.

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acenando-lhe com o bom despacho de certos negócios que corriam na cúria. Accrescen- tava que o principal objecto da vinda do bispo de Bergamo era a questão do bispado de Viseu. Por ser via segura, mandava a correspondência por intervenção de Nuno Henriques, a quem era infinitamente obri- gado e em cujos negócios trabalhava com todo o ardor, entendendo-se com Diogo Fernandes Neto. Tinha-se neste ponto feito quanto elle podia desejar. Triumpharia a justiça; nem a tal respeito havia de que du- vidar (1).

Se D. Miguel da Silva escreveu de feito aquellas cartas, cumpre confessar que, além de infeliz em lhe serem tomadas, o foi não menos na escolha dos assumptos. Se não era o seu intuito animar a pessoa a quem escre- via, a fim de que confiasse na sua influencia e fortuna, não se que necessidade, que ne- gocio importante o movera a tecer em cinco cartas de cifra o hymno da própria gloria. Dir-se-hia que pensara em redigir papeis

(1) CoUecção de S. Vicente, J. cit. Não aproveitá- mos dos extractos senão os pontos capitães, porque muitos daquelles extractos são apenas repetições das mesmas idéas por diverso modo.

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que, divulgados, irritassem contra elle o im- perador e os seus embaixadores em Lisboa e em Roma, que mostrassem que o papa era instrumento seu, que revelassem as instruc- ções occultas do núncio, e que, finalmente, provassem as relações intimas que elle tinha com os christãos-novos, cujo procurador pa- recia ser, mais que o próprio Fernandes Neto. Para um homem affeito ao mundo e envelhe- cido nos enredos da politica, o erro era de- masiado grosseiro.

A carta do agente dos christãos-novos para mestre Jorge Leão, debaixo de cujo sobres- cripto se diz ter sido encontrada uma das de cifra, completava as revelações acerca do núncio Lippomano. Delia constava que Diogo Fernandes se vira em grandes apuros, por falta de remessas de Lisboa, para dar ao bispo de Bergamo mil cruzados, sem os quaes não quizera ou não poderá partir de Roma. Annuaciava que por via delle escre- veria mais largamente aos chefes da nação. Deste personagem pendia o remédio de to- dos. Já se tinha expedido uma bulia para sus- pender os actos arbitrários da Inquisição, e a cúria romana promettera levar em conta o dinheiro que esta havia custado quando se expedisse a do perdão geral que os christãos-

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novos sollicitavam e que também lhes fora promettida. Neto enviava vários breves de exempção ou de perdão requeridos por di- versas famílias hebréas, mas asseverava que tudo isso era perdido, não porque os in- quisidores iiaviam de sophismá-los. mas também porque as providencias geraes, com que se contava, os tornariam inúteis. Es- tas providencias dependiam inteiramente da chegada do coadjutor de Bergamo a Por- tugal. Era nisto que estava cifrada a com- mum salvação; nisto via elle próprio o termo das angustias, trabalhos, e até das mais vis calumnias, de que em Roma estava sendo alvo (1).

Estas cartas assim apprehendidas, além de outras de vários christãos-novos, obtidas, igno- ramos como, pelo infante D. Luiz, e remetti- das por este a Santiquatro para as mostrar

(1) Carta de 18 de maio de 1542, oa G. 2, M. 2, N.o 51.

Esta carta, que é apenas uma copia, refere-se não a uma carta sem sobrescripto para a mu- lher do homem de Viseu, mas também aos breves de perdão para uns certos Pedro de Moreiro e Ma- ria Thomaz, o que tudo vinha juncto. Nas Instru- cções ou Memoria de S. Vicente diz-se apenas que se achou no maço uma das cartas sem sobrescripto.

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ao papa (1), justificavam qualquer procedi- mento enérgico da parte delrei. Obstar á en- trada do núncio pareceu desde logo urgente. Era este, pelo menos, o voto da maioria dos inquisidores e dos seus parciaes, e ainda os que viam nisso uma oífensa á sancta con- cordavam em que, embora se deixasse entrar o bispo de Bergamo, se lhe não consentisse usar do seu officio e jurisdicção (2). Despa- chou-se André Soares para Hespanha munido de uma carta d elrei para o novo núncio e de instrucções relativas ao assumpto, ao mesmo tempo que se escrevia a Francisco Pereira, ministro na corte do imperador, para que in- dagasse quando e por onde vinha Luiz Lip- pomano, e do que soubesse avisasse André Soares, que deveria parar em Valladolid para proceder a iguaes indagações (3). A carta ao bispo de Bergamo era assas succinta. Intima-

fl) Veja-se a carta de Francisco Botelho de 26 de dezembro de 1542, na G. 2, M. 1, N.o 49, que adiante havemos de aproveitar.

(2) Parecer dos letrados acerca da entrada do núncio Lippomano : CoJlecç. do Sr. Moreira, Quad. 11 in médio.

(3) Minutas das cartas ao núncio, e a Francisco Pereira, e das instrucções a André Soares, Ibjd. passim.

TOMO III &

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va-lhe elrei em termos moderados, mas fir- mes, que não proseguisse avante sem que re- cebesse novas ordens do papa, a quem elle escrevia sobre os inconvenientes da sua vin- da (1). Quanto ao resto, referia-se ás commu- nicações verbaes de André Soares. Nas ins- trucções dadas a este recommendava-se-lhe que assegurasse ao bispo de Bergamo, não em nome d'elrei, mas como cousa sua, que, se insistisse em seguir viagem, não o deixa- riam entrar e que, quando se apresentasse como simples mensageiro do papa, sem ca- racter de núncio, o fariam sair logo que re- vestisse este caracter ou practicasse o menor acto de jurisdicção (2). Teve o resultado que se desejava aquella missão, e Luiz Lippomano não se atreveu a transpor a fronteira de Por- tugal. Buscou, escrevendo a elrei, dobrar-lhe o animo ; mas elrei tinha tomado uma reso- lução definitiva, e todas as suas diligencias foram absolutamente baldadas (3).

(1) As minutas da carta ao núncio são duas, mas idênticas na substancia.

(2) Instrucções a André Soares: Ibid.

(3) Carta (l'elrei para Francisco Pessoa, tliesou- reiro do principe de Casteiia, de 1 1 de setembro de 1542, na G. 2, M. 9, N.^ 43, no Ardi. Nac.

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Entretanto Carlos v, a quem desagradavam estas discórdias do cunhado com o pontifice, mtervinha na contenda, e depois de tractar a matéria com o núncio em Gastella e com o próprio bispo de Bergamo, encarregou-se do papel de medianeiro. Não duvidava elrei de admittir o novo núncio, uma vez que se lhe prohibisse terminantemente conhecer dos ne- gócios da Inquisição ou dizer-lhe uma única palavra em favor do bispo de Viseu. Movia-o a recusar a Luiz Lippomano toda e qualquer ingerência nas matérias relativas ao tribunal da fé, não o que constava vir a soldo dos judeus, mas também o que se podia inferir do procedimento dos anteriores núncios, que, corrompidos por peitas, tantos males tinham causado. Enviando uma carta para o papa re- lativa áquelle assumpto, a qual devia ser apre- sentada a Paulo III pelo embaixador de Gas- tella, recommendava ao individuo que parti- cularmente fora encarregado de tractar o as- sumpto com o imperador que na mediação, a qual não acceitava mas até pedia, se não fizessem concessões algumas nos pontos em que estava resolvido a não ceder, e que se tra- ctasse a matéria com a possível brevidade ri h

Í3) Ibid.

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Estas cousas passavam no outono de 1542. Antes disso, em agosto, elrei despachara para Roma Francisco Botelho, não na qualidade de embaixador, mas como simples mandatá- rio. Ia encarregado de apresentar ao pontifice a correspondência tpprehendida aos christãos- novos e ao cardeal da Silva. A carta ao papa, que lhe servia de credencial, encerrava pou- cas linhas, e referia-se restrictamente ao fim especial daquella missão. A quem elrei escre- via com mais largueza era a Santiquatro. Nessa carta, porém, pedia-se expressamente ao cardeal que inteirasse o papa do seu con- teúdo. Era uma longa e sentida deploração do injusto e desamoravel procedimento de Paulo III para com o mais affectuoso filho da igreja, e do credito que se dava aos embus- tes dos inimigos do monarcha, ao passo que se descria das suas affirmativas, as quaes, emfim, estavam plenamente justificadas pelos escandalosos documentos que mandava pôr na presença do pontifice. Aos outros cardeaes que se mostravam mais ou menos favoráveis á corte de Portugal escreveu-se no mesmo sentido, fiíosto que mais resumidamente. As instrucçbes dadas a Francisco Botelho tinham por objecto fazer com que o papa ouvisse a leitura dos papeis de que elle era encarregado

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e que nunca devia largar de sua mão, levando transuraptos em italiano, de que se podiam tirar copias. Prohibiam-se-lhe quaesquer ex- plicações dadas em nome delrei, ordenava- se-lhe que se demorasse em Roma se o papa assim lho ordenasse. Nesta hypothese, nem cora elle, nem com o cardeal Farnese, nem com pessoa alguma debateria official- mente a questão da vinda do núncio, ou qual- quer matéria que se referisse a D INIiguel da Silva (com quem nunca devia avistar-se), sem que, comtudo, deixasse de falar energicamente naquelles assumptos como simples particular. Neste mesmo caracter, as mstrucções especi- ficavam o que lhe cumpria dizer, de maneira que não compromettesse a corte de Lisboa, e não se inferisse das suas palavras que havia intenção de ceder (1).

tLstas prevenções facilitavam a mediação do imperador e combinavam-se com ella. A carta que se dirigiu em nome delrei para ser entregue ao pontífice por mão do embaixador

(1) Às Instrucções a Francisco Botelho, as cartas para o papa, para Santiquatro e para diversos oar- deaes acham-se, parte em minutas, parte em copias do tempo, na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. ò aa fi- nem.

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hespanhol em Roma foi atientamente pen- sada e discutida (1). Cifrava-se em ponderar a rectidão e desinteresse com que a Inquisi- ção procedia, a oíTensa que se fizera ao rao- narcha e ao infante mquisidor-mór em man- dar um núncio a superintender nos actos do tribunal da fé, os effeitos desastrosos que ti- nha a profusão com que se concediam em Roma breves de exempção e de perdões aos christãos-novos que os sollicitavam, conces- sões cujo resultado era a contumácia dos réus presos e os crimes de judaismo que diaria- mente se perpetravam no reino, e que obri- gavam a Inquisição a proceder com dobrado rigor e vigilância. Mostrava-se, emfim, como as correspondências do agente dos chrisfãos- novos e as do cardeal da Silva, que por Fran- CISCO Botelho se tinham ievado ao conheci- mento de sua sanctidade, ao passo que reve- lavam grandes escândalos e justificavam o procedimento d^elrei para com o bispo de bergamo, tornavam cada vez mais sólidos os

(1) Veiam-se os apontamentos para esta carta na G. 2, M. 1, N.o 38, que foram regeitados, a minuta f^ita por letrados na mesma gaveta e maço N.*» 20 em CUJO verso se que não foi, e finalmente aquelJa que parece ter sido preferida, ahi juncta N." 19.

HISTORIA DA INÍQUISIÇÃO 71

fundamentos das supplicas dirigidas á sancta pela corte de Portugal por espaço de tan- tos aniios, e provaram a necessidade de se adoptar uma politica mais accorde com os in- tuitos do principe e com os interesses do christianismo (1).

Entretanto Francisco Botelho chegava a Ro- ma e obtinha em breve uma audiência de Pau- lo íii para apresentar os documentos de que era portador. Não parece que estes produzis- sem grande abalo no animo do pontifice, o qual dormitava emquanto o seu secretario os lia (2). Botelho fingiu não menor mdifferença e despediu-se apenas acabou a leitura. Foi o que fez impressão no papa, que, porventura, esperava uma dessas scenas violentas a que estava costumado com os ministros de Portu-

(1) Minuta na G. 2, M. 1, N.<> 19.

(2) (cas quaes lhe leu todas até ao cabo, e sua san- tidade tosquenejava ás vezes»: Carta de Francisco Botelho de 26 de dezembro de 1543 (aliás 1542j na O. 2, M. 1, n.o 49 e original na Collecç. do Sr. Mo- reira, Quad. 9 in médio. Posto que datada de 1543, é de 1542; por ser escripta a 26 de dezembro, e o anno do nascimento comegar então em dia de Natal. De outro modo, esta carta contradiria achronologia dos successos.

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gal. Vendo-0 disposto a sair, Paulo iii per- guntou-lhe se nada mais queria delle Res- pondeu friamente que elrei a nada mais o en- viava, e que, se havia tardado um pouco em desempenhar a missão e em voltar ao seu paiz, fora pelas difficuldades do transito e por um accidente que no caminho lhe sobreviera. Não pôde o papa occultar o seu despeito á vista daquella isenção. Mostrou-se altamente queixoso do obstáculo que se posera á entra- da do bispo de Bergamo em Portugal. Bote- lho replicou que desse negocio sabia apenas o que corria entre o vulgo. Dizia- se que o nún- cio era pago pelos christãos-novos, e tanto as cartas que elle trazia, como as que o infante D Luiz remettera a Santiquatro, provavam que as vozes do povo não eram infundadas. Destas ultimas cartas não tinha noticia o pa- pa. Averiguado o negocio, soube- se que o car- deal Farnese, a quem Santiquatro as entre- gara, se esquecera de as commuricar a seu avô. A resposta de Paulo iii foi uma larga apologia do bispo de Bergamo, cuja reputa- ção de virtude era, na verdade, grande em Roma, aííirmando que outrem por elle teria recebido essas sommas. Quanto aos fins com que o enviara, protestava que fora unicamente para tractar com elrei a matéria do futuro

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concilio (1). Alé que ponto era sincera esta aí- firmativa iníere-o o leitor da precedente nar- rativa.

Sem sair do seu papel de simples mensa- geiro, Francisco Botelho dirigiu-se depois aos diversos cardeaes para quem levava cartas d'elrei, mostrando a cada um delles os papeis apprehendidos. Diligenciou o papa sopitar o escândalo por intervenção de Santiquatro; mas Francisco Botelho atinha-se ás ordens que recebera e msinuava que, depois de dar conhecimento a cada cardeal em particular das cartas de D. Miguel, havia de apresenta las em pleno consistório. Tornava-se pois ne- cessário transigir. Pier Domenico era creatu- ro do rei de Portugal e inteiramente dedicado a elie, como seu agente ordinário em Roma. Foi por isso escolhido para enviado a D. João III e para levar conjunctamente ordens ao bis- po de Bergamo, retido em Castella, a fim de que se limitasse, entrando em Portugal, a tractar dos assumptos relativos á reunião do futuro concilio. O núncio devia depois disso voltar a Roma ou conter-se, ficando, nos limi- tes que elrei posesse á sua auctoridade (2).

íl) Ibid (2) Ibir].

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A missão de Pier Domenico aplanou todas as difficuldades. Tranquillisaram-se os ânimos com a segurança de que o núncio se absteria de intervir nas questões dos christãos-novos, e elrei pôde obter a certeza de que não se en- tabolariam negociações a respeito do cardeal da Silva. Deu-se por isso ordem para se per- mittir a entrada no reino ao bispo de Berga- mo, que, convidado por elrei, immediatamente se dirigiu a Portugal (1),

Mas esta nova mudança politica da corte de Roma na interminável questão dos hebreus portugueses não desdizia do caracter de to- das as phases anteriores. Como o calculo de interesses materiaes fora até ahi o encentivo ordinário do procedimento da cúria, o aban- dono da causa dos perseguidos não tinha agora por únicos motores, nem a mediação de Car- los V, nem a resolução enérgica de D. João III. Tractava-se também de outro assumpto, e é provável que considerações a elle relativas não fossem estranhas á escolha que se fizera para mandatário do pontifice de um homem que todos sabiam ser agente d'elrei em Ro- ma. Como vimos no livro antecedente, havia

(1) Instrucç, ou Memor. sem data na Collecç. de S. Vicente, vol. 3.», f. 139.

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muifo que o cardeal Farnese, neto do papa e seu ministro, pretendia, invocando direitos mais ou menos bem fundados, obter uma pen- são de três mil escudos de ouro nas rendas do mosteiro de Alcobaça. Não vem ao nosso intento historiar as causas desta pretensão e d'outras análogas, que de continuo havia a re- solver em relação a membros do sacro colle- gio. Todos os annos se viam conceder, au- gmentar, suspender mercês destas, com que se gravavam os redditos dos benefícios ec- clesiasticos. Como ao papa pertencia, alterna- tivamente com o poder civil, o provimento de alguns desses benefícios, ás vezes a conces- são de taes pensões era consequência da ces- são do direito da apostólica a provê-los, e da consolidação daquelle direito na coroa. A pretensão de Farnese pertencia a esta catego- ria. Outras vezes eram suppressões, annexa- ções ou divisões que o poder temporal queria fazer nos mesmos benefícios, a que não se podia verifícar sem intervensão do poder es- piritual, e em que Roma se não esquecia de tirar vantagens pecuniárias dos caprichos de um príncipe que a estes assumptos, não raro pueris, dedicava mais cuidados do que aos desconcertos de administração, que iam con- duzindo a total ruina a sociedade civil. Outras

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vezes, finalmente, eram mercês espontâneas com que, em circumstancias difficeis, se con- ciliavam na cúria as influencias adversas, se creavam novos amigos, se fortificava o animo dos antigos, e com que se destacavam diffi- culdades, não raro fabricadas justamente para terem este remédio. Da correspondência dos ministros portugueses juncto á apostólica mais de uma vez temos citado passagens que mostram como não eram as grossas som- mas despendidas pelos christãos-novos que faziam inclinar de tempos a tempos para o seu lado a benevolência de Roma: também esse eloquente meio da persuasão serve para explicar as repentinas severidades contra as suas culpas, pouco antes reputadas vans e calumniosas asserções. Correndo os papeis que nos restam dos nossos agentes diplomá- ticos juncto ao pontifice, essas citações pode- riam repetir-se ainda com mais frequência. D'algumas, até, resulta que individuos havia, a quem, em circumstancias apertadas, servia tudo, e cujo espirito illuminavam para seguir a boa causa, a causa da e do rei, quaesquer davidas de insignificante valia (1).

(1) Numa informação que parece da Jetra de Pier Domenico (CoUecç. do Sr. Moreira, Quad. 6, in prin-

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Irritado pelas offensas que temos narrado, e mostrando-se resolvido a usar de energia, único remédio cuja efficacia, para cohibir ex- cessos da cúria romana, está provada na his- toria, D. João III fizera experimentar a Farne- se que também nesta matéria das pensões não eram de desprezar os ímpetos do seu despeito. As diligencias do moço cardeal para obter aquella reserva, que dependia da sanc- ção regia, tinham cessado ou haviam sido infructuosos durante a interrupção das rela-

cipioj em que se indicam os meios de adquirir pro- tectores em Roma, fala-se do cardeal de Crescentiis como de um dos mais incorruptíveis. Entretanto accrescenta-se: «com muito pouca pensão se conten- tará, avendo opportunidade, ou com algúas pedras boas, ou bayxelinha, ou cama com aJgús panos. E com dous cavallos que lhe B de Faria deu quando foy pêra Bolonha com o papa o anno passado, em tempo fez muito para o porvir». Acerca do secreta- rio do papa, monsenhor Ardinghello, Itispo de Fos- sombrone. adverte-se aqui ; «Com pouco mays de luvas perfumadas se contentará, este e outro que aquy abayxo direy, e com húa pedra de L cruza- dos». A' Dataria chama-se neste papel botica fbote- gha, loja de venda) do datayro. Nuns apontamentos dados por Francisco Botelho depois da sua volta de Roma, sohre o modo de dirigir os negócios penden- tes (Ibid. Quad. 7 ad fin.j diz-se: «Parece-me quede-

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ções amigáveis entre as duas cortes. Removi- das, porém, as principaes causas dos recen- tes desgostos, Pier Domenico foi encarregado de sollicitar a resolução do negocio. Accedeu facilmente elrei, mas não sem recommendar vivamente ao enviado que ponderasse em Ro- ma quanto era necessário que quem preten- dia que se usasse de equidade e de be- nevolência em uns assumptos não devia esquecer-se dessa doutrina em relação a ou- tros (1).

ve S. A. de dar alguma cousa ao papa, que eu affir- mo que o tome, e também que com isso se façam melhor os negócios que com roupas de martas e muitas encavaJgaduras. E também alguma cousa a Durante e a Bernaldes de la Cruz e a Júlio, que são camareiros do papa e seus favorecidos. Assy o car- deal Puche que he pobre e bom homem e com que o papa foJgará. É muito servidor de S. A. E assy ao cardeal Teotino e a outros, segundo a calidade dos negócios forem, e quando for tempo para isso se fa- zer; que certo eu quizera antes para o que compre ao serviço de S. A. que houvesse ahi pensões depo- sitadas para isto, que dadas a ninguém em Ro- ma, podendo ser». As citações desta ordem pode- riam multiplicar-se prodigiosamente.

(1) Informazione che il re di Portogallo manda dire a S. Santitá per Pier Domenico, na Symmicta Lusit., T. 2, f. 202.

HISTORIA DA INÍQUISIÇÃO 79

Entre as instrucções, porém, dadas a Pier Domenico para falar em nome d'elrei ao papa, no seu regresso á cúria, avultavam sobretudo duas questões. Era uma a do castigo do car- deal da Silva, a outra a da substituição de um simples agente por um embaixador ex- traordinário, que a corte pontifícia mostrava desejos de ver de novo estabelecer alli. Quanto ao antigo bispo de Viseu, o que D. João ni exigia era que fosse expulso da capital do orbe catholico, não lhe consentindo o ponti- fice que tornasse a apparecer na sua presen- ça, sem que todavia, para o ter assim aífas- tado, lhe desse algum cargo fora de Roma, No caso de sua sanctidade não convir nisto, que attendesse ás deslealdades que eile com- mettera, tanto para obter o barrete cardinalí- cio, como nas suas intrigas com os judeus, felizmente descubertas pela apprehensão das cartas em cifra, e que mandasse proceder ju- dicialmente a um inquérito em Portugal, par- ticularmente em Viseu, para meter o bispo em processo; porque elrei estava certo de que o resultado seria uma punição ainda mais se- vera. Pelo que, porém, respeitava ao estabele- cimento da embaixada em Roma, devia Pier Domenico ponderar ao pontífice que, por isso mesmo que semelhante passo era uma de-

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monstração da perfeita harmonia que devia reinar entre as duas cortes, repugnava ao animo d'elrei enviar um embaixador extraor- dinário emquanto durassem discussões mais ou menos desagradáveis sobre os negócios pendentes, sendo a sua firme tenção fazê-lo assim, Jogo que o pontífice lhe desse acerca de tudo o mais a satisfação que fora dada acerca da missão do coadjutor de Bergamo (1). Se, em relação a estes dous pontos, D. João III se mostrava inflexivel num e re- servado no outro, buscava ao mesmo tempo encubrir as suas desconfianças com mostra de magnanimidade. As instrucções que Pier Domenico trouxera ao núncio eram que ape- nas entrasse em Portugal e desse conta ao monarcha do objecto especial da sua missão, voltasse a Roma, se elle o despedisse. Não só, porém, elrei permittia que ficasse, mas até que usasse dos poderes que trazia, salvo acerca das matérias especificadas numa nota que devia ser apresentada ao papa. Nessas restricções estava conforme o próprio núncio, cujo procedimento, posto que a sua v'Cí^i<leiicia em Portugal fosse ainda tão curta, elrei achava

(1) Ibii

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digno de elogio, ponderando os desgostos que se teriam evitado, se os anteriores núncios ti- vessem procedido do mesmo modo (1).

Assim asserenava uma discórdia que che- gara a entenebrecer profundamente os hori- sontes politicos entre as cortes de Lisboa e de Roma, mas esta serenidade era presagio infallivel de mais furiosa procella contra os christãos-novos. As matérias sobre que o núncio ficava inhibido de entender não podiam ser outras senão as que tocavam á Inquisição, ou pelo menos eram os actos dos inquisido- res o principal objecto que D. João iii devia forcejar por manter acima da inspecção e auctoridade do delegado pontifício. Na vinda, porém, do núncio, nos poderes que se lhe attribuiam acerca dos processos de heresia, na sua benevolência para com os perseguidos, comprada por custosos sacrifícios, consistia a principal, a quasi única esperança dos christãos-novos. Reduzido ao constrangimen- to, á nullidade, advertido pelo pontifico para sair de Portugal ao menor aceno d'elrei, e forçado por isso a curvar-se a todos os seus caprichos, Lippomano não podia de modo

(1) Ibid. Instrucç. ou Mem. sem datn na Collecr. de S. Vicente, vol. 3, f. lil.

TOMO III O

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algum satisfazer aos compromissos com que viera, se compromissos havia. Durante a sua legação, não lhe faltaram da parte de D. João iii os elogios de moderado e de honesto, e o leitor sabe avaliar a significação de taes elo- gios. Evidentemente o dinheiro despendido pelos agentes dos hebreus portugueses fora dinheiro perdido.

Uma circumstancia vinha entretanto aggra- var ainda mais as difíiculdades, a bem dizer insuperáveis, com que estes luctavam. Ce- dendo ás ponderações dos cardeaes Caraíía e Burgos, ambos dominicanos, Paulo iii tinha resolvido crear em Roma um tribunal supre- mo da Inquisição. Apadrinhava a idéa o chefe de uma nova congregação religiosa, que no berço dava signaes de immensa influencia que devia vir a exercer no mundo. As repre- sentações enérgicas de Ignacio de Loyola tinha resolvido o papa a favor do novo tribu- nal, e era este um dos factos de que poste- riormente os jesuitas mais se uíanavam. A bulia da creação expediu-se a 21 de junho de 1542, e Caraffa foi nomeiado com o cardeal de Burgos e mais quatro para exercerem as funcções supremas de inquisidores geraes. O mais activo de todos era Caraffa, que em breve levantou em Roma, á própria custa,

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edifício appropriado á lúgubre instituição, pondo á frente desta, como commissario geral, um theologo, Teófilo di Tropea, capaz de rea- lisar as suas idéas de intolerância (1). As opi- niões protestantes tinham coado na Itália, como por quasi toda a Europa, e era sobre- tudo a combater as heresias desta ordem que as inquisições italianas se dirigiam; mas o judaismo cahia também debaixo da sua al- çada, posto que a condição dos que seguiam a lei de Moysés fosse na Itália incomparavel- mente mais favorável do que em Portugal. Alli, aquelles que, nascidos e educados na re- ligião judaica, faziam delia profissão publica toda a sua vida, eram tolerados: d'ahi, porém, não se seguia que aos que tinham recebido o baptismo fosse licito judaisar occultamente, guardando no exterior as apparencias do chris- tianismo.

Desde o começo da lucta entre D. João m e uma parte dos seus súbditos, os procurado- res destes em Roma não combatiam a Inqui- sição pelos mesmos fundamentos que hoje a tornam odiosa aos olhos da philosophia; não controvertiam a legitimidade dos principios

(1) Ranke, Die Roemischen Paepste, 2 B. S. 298 u. f.

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em que a instituição se estribava; a tolerân- cia evangélica mal se comprehendia então, e invocá-la seria temeridade. O que todas as al- legações dos christãos-novos portugueses ten- diam a provar era que os inquisidores proce- diam injustamente, attribuindo-lhes um crime que não commettiam. Em muitos casos assim seria: em outros affirmavam uma falsidade. Não a razão o persuade, mas também os processos que nos restam provam ainda hoje que muitas das victimas da Inquisição tinham effectivamente judaisado. O que era horrivel e absurdo era a atrocidade das penas a que se condemnavam milhares de individues por actos de que deviam ser responsáveis pe- rante Deus. A compaixão que naturalmente inspira a sorte dos christãos-novos diminue, porém, de algum modo quando consideramos nelles esse conjuncto de abjecção e de perti- nácia próprio da sua raça. Os que nos cárce- res e nos tormentos, diante do espectáculo de morte aífrontosa, ousavam confessar sem ro- deios a sua crença inabalável no Deus de Moysés eram raros. Não dominava entre elles esse ardor profundo e indomável que exal- tava o animo dos primitivos martyres do christianismo, ardor que em epochas mais re- centes se reproduz na historia dos sectários

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protestantes, no fanatismo sombrio dos puri- tanos ou dos calvinistas, e que temos visto renascer ás vezes nos nossos dias pelo en- thusiasmo da liberdade. Perseguidos, perse- guidores e os que, abusando do poder espiri- tual, mercadejavam com uns e com outros, simulando ora hesitação, ora imparcialidade, tudo era baixo e vil. Por isso, quando encon- tramos no meio de tão profunda decadência moral um caracter crente, enérgico, sincero, não é fácil defendermo-nos de uma admiração irreflexiva, embora esse caracter seja o de um fanático. Ha epochas de tal corrupção, que, durante ellas, talvez o excesso do fanatismo possa, no meio da immoralidade triumphante, servir de escudo á nobreza e á dignidade das almas rijamente temperadas.

Era impossivel que em Roma não se conhe- cesse perfeitamente que grau de verdade havia nas allegações dos christãos-novos, e até que ponto se deviam acreditar as suas affirmati- vas a respeito da sinceridade do próprio chris- tianismo. Se acerca disso subsistissem algu- mas duvidas, a hedionda historia de Duarte da Paz bastava para desengano dos que ainda duvidassem. Segundo geralmente se dizia, o zelo de Diogo António, que o substituirá no encargo, não fora de melhor toque. As som-

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mas destinadas aos officiaes da cúria, para pagar as quaes havia sido devidamente habi- litado pelos seus commitentes, tinha-as con- vertido pela maior parte em próprio proveito, do que haviam resultado vergonhosas conten- das, e até a expedição de censuras canónicas, para se haverem dos interessados os emolu- mentos devidos (1). Provavelmente, Diogo António era da mesma eschola de Duarte da Paz. Diogo Fernandes Neto, que lhe succe- dera, parece ter procedido mais honestamente; mas a experiência dos hebreus portugueses quanto ao passado, a desconfiança, e uma eco- nomia mal cabida em taes circumstancias, além do desalento geral, punham o novo pro-

(1) «o Dioguo António, porque do que havia de repartir para suprimento e ajuda dos custos dalgus oficíaes de vossa santidade convertia a mor parte em seus guastos e usus próprios, foy delles revo- gado e procedeose por mandado de vossa santidade com censuras contra os que ca não queriam respon- der ao pagamento do que elle como seu procurador gastara». Minuta da carta de D. João iii ao papa que levou Simão da Veiga em 1545 e que adiante have- mos de aproveitar (Collecç. do Sr. Moreira, Quad. i ad fin.). Um breve original sobre este assumpto da- tado de 27 de outubro de 1540 acha-se no Maço 25 de Bulias N.*> 14, no Arch. Nac.

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curador, como anter-iormenle vimos, em con- Linuos embaraços, e a falta de recursos, como também vimos, crescia á medida que augmen- tavam as difficuldades. Uma imprudência de Diogo Fernandes, ou uma cilada habilmente armada acabou de inbabilitá-lo para desempe- nhar uma commissão que cada dia se tor- nava mais árdua.

Diogo Fernandes Neto foi accusado perante o papa de apóstata e judeu. Procedeu-se con- tra elle e saiu culpado. Prenderam-no. Cum- pria que fossem graves as demonstrações de judaismo dadas por esse homem, a quem a sua situação impunha o dever da circumspec- ção, para ser preso e processado num paiz onde se tolerava aos sectários da lei de Moysés a profissão publica das suas crenças. Dizia-se, até, que a fundação do supremo tri- bunal de em Roma tivera em parte por motivo o caso de Diogo Fernandes: ao menos tinham-no assim persuadido a D. João iii, que a isso alludia dous annos depois escrevendo ao papa (1). Sem fazer grande conceito do

(1) «o qual (Diogo Fernandes) perante vossa san- tidade culpado em manifesto judaismo, em parte toy causa Je vossa santidade na sua cidade de Roma instituir a santa Inquisição»: Minuta citada.

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christianismo de Fernandes Neto, occorre naturalmente ao espirito a suspeita de que o delicto do procurador dos christãos-novos fosse uma invenção habilmente dirigida para mutilisar os seus esforços e lançar o desfavor sobre uma causa quasi perdida. O cardeal de Burgos era um dos membros do sacro colle- gio com quem a corte de Portugal estava em melhores termos (1), e o cardeal de Burgos, foi um dos principaes propugnadores do estabelecimento da Inquisição em Roma. Quem pôde hoje dizer se elle, além dos impulsos do fanatismo, tinha algum motivo secreto que ajudasse a inclinar-lhe o animo para se associar aos intuitos do cardeal Garaffa? Vemos que Balthasar de Faria intervinha activamente, depois, no processo de Diogo Fernandes, e quando este, a troco de grossas peitas, chegou a obter permis- são de sair do cárcere, sob pretexto de uma grave enfermidade de olhos, o agen- te do governo português não poupou es- forços até o fazer voltar á masmorra em

(1) Entre os documentos que revelam o facto é decisiva a carta d'elrei a Balthasar de Faria de 20 de janeiro de 1543 fCorresp. Orig. de B. de Faria, f. 5, na Biblioth. da Ajuda).

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que jazia (1). Seria de admirar que esta per- seguição viesse de mais longe, e que os ho- mens que se deixavam corromper para darem temporariamente liberdade ao procurador dos christãos-novos fossem igualmente corrompi- dos para lh'a tirar duas vezes?

O successo tinha outras consequências. Não se queria por esse meio obter a van- tagem de annullar Diogo Fernandes. Balthasar de Faria ia mais longe. Os breves especiaes de protecção contra o ódio dos inquisidores, expedidos a favor de pessoas residentes em Portugal, deviam, na opinião delle, ser dero- gados, visto terem sido concedidos a instan- cias de um individuo cujo christianismo se

(1) ccDa prisam do procurador dos christãos-novos e de como sobcedeo este neguocio recebi muito pra- zer. E parece que em tudo o que quá e láa neJe se pasou quiz nosso senhor mostrar o que importava a seu serviço saber-se. E ouve por bem feito o que nisso fizestes e requerestesy>: Carta a B. de Faria de 20 de janeiro de 1543, 1. cit. «Que Diogo Fernandes fora solto se B. de Faria não fora. E comette-lhe grandes partidos Mas eu queria-o antes preso que solto» : Lembranças de Francisco Botelho acerca dos negócios de Roma na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 7 in médio. C. de B. de Faria a elrei de 15 de outubro de 1543, na G. 2, M. 5, N.o 43, no Arch. Nac.

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tornava mais que duvidoso, o que os envol- via no vicio de nuUidade. Neste ponto o agente de Portugal insistia com todo o vigor, estri- bado na opinião de vários membros do sacro coliegio, que eram do mesmo voto (1).

Tudo conspirava para a ruina dos chris- tãos-novos, por cujos interesses, depois da prisão de Fernandes Neto, podia comba- ter um homem assas importante para obter algum resultado dos seus esforços, o cardeal da Silva ; mas o cardeal da Silva tinha bas- tante que fazer em defender-se a si próprio. A vingança do rei devoto era persistente e implacável. Procurando todos os meios de acalmar a cólera de D. João iii, o papa man- dara offerecer por Pier Domenico o barrete cardinalício para o infante D. Henrique. Ape- sar, porém, do fanatismo ; apesar da afieição que tinha aos esplendores e pompas eccle- siasticas ; apesar, emfim, do desejo de satis- fazer a vaidade do irmão, D. João in rejeitara a offerta, encarregando o emissário de com- municar ao pontífice os fundamentos da re- jeição. Tinha, tempos antes, observava elle, sollicitado aquella graça da apostólica, e a

(1) G. a B, de Faria de 2U de janeiro de 1543, 1 cit.

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resposta havia sido, primeiro longo silencio, depois a eleição de D. Miguel da Silva. Para se chegar a um accordo sobre tal matéria a condição preliminar, que reputava indispensá- vel, era a punição do prelado português, do modo que a exigia (1).

A situação do antigo bispo de Viseu torna- va-se cada vez mais critica. O cardeal Far- nese, como ministro do avô, e um dos perso- nagens de maior vulto na corte pontifícia, protegia-o : mas Farnese tinha a peito a ques- tão dos três mil escudos de pensão em Por- tugal, que se podia considerar como resolvida depois de três annos de dilações e difficulda- des. Devia por isso proceder com arte. Por outro lado a situação económica de D. Miguel da Silva estava longe de ser prospera. Das rendas do bispado não recebia um ceitil desde que fora banido, e, ou que as liberalidades do papa não fossem para com elle demasiadas, ou que 03 seus poderosos parentes em Por- tugal receiassem o desagrado delrei minis- trando-lhe soccorros, é certo que elle se via em grandes apuros para manter as exteriori-

(1) Informazione cliví ú i-e di l-*ortugallo manda dire a S. S per P. Domenico, na Symmicta, T. 2, f. 207 V.

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dades da sua jerarchia, apuros que o iam ar- rastando ao abysmo de manifesta miséria. O dinheiro dos christãos-novos, esse tinha de ser repartido por muitos e numa proporção calculada, não em relação a quaesquer servi- ços pretéritos, mas sim ás maiores ou meno- res probabilidades de serviços futuros. Quan- to, pois, aos recursos pecuniários, diante dos olhos do cardeal da Silva os horisontes eram assas sombrios (1).

Embora custasse a Paulo iii desamparar um homem a quem imprudentemente elevara tão alto, as circumstancias obrigavam-no a ser circumspecto. Num consistório solemne, em que se tractava de oppor barreiras a ex- cessos de poder temporal practicados em França e em Hespanha com grave oífensa das liberdades ecclesiasticas, e em que de feito se adoptaram resoluções enérgicas, o papa tocou também no assumpto das rendas do bispado de Viseu, de que o rei de Portu- gal, por meios directos e indirectos, privava absolutamente o respectivo prelado; mas a queixa, apresentada frouxamente, não foi sub- mettida a uma votação definitiva. Apenas o

(1) Carta de B. de Faria a elrei de 15 de outubro í 1543, 1. cit.

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interessado o sustentou, evitando, todavia, accusar o soberano, e lançando toda a culpa dos vexames que padecia sobre os implacá- veis inimigos que tinha em Portugal. O pro- tector de D. Miguel, o cardeal Alexandre Far- nese, e seu primo o cardeal Santafiore guar- daram prudente silencio. Na verdade, uma ou outra voz menos auctorisada se levantou ahi a favor do perseguido prelado; mas, ponde- rando-se que seria justo pedir explicações a Balthasar de Faria antes de se adoptar qual- quer arbitrio, o consistório absteve-se de to- mar conclusão alguma sobre aquelle assum- pto (1).

Entretanto Balthasar de Faria, que não ces- sava de sollicitar do papa uma resolução con- forme com as instrucções que levara Pier Do- menico, avisado por Santiquatro do que se ti- nha passado no consistório secreto, redobrava de actividade. Como as celebres cartas em ci- fra ministravam as mais poderosas armas contra D. Miguel, e este se defendia dando-as como forjadas, exigia o papa que lhe fossem apresentados os originaes para proceder con- tra elle. Parecia razoável a exigência ; mas o agente português replicava que, sendo ellas

(1) Ibid.

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em cifra e não assignadas, os originaes de nada serviam, ou antes não existiam. Podia- se, porém, perguntar: se esses documentos não serviam para convencer o pontifice, como tinham servido para convencer o monarcha? E quem poderia dizer se era o rei, se era o bispo que falava verdade? Faria lembrou um arbitrio : Diogo Fernandes tinha sido de novo lançado nos cárceres da Inquisição : a carta em que se continha a de cifra era delle ; in- terrogado áquelle respeito diria se essa cifra era ou não do bispo cardeal (1). ignoramos se o alvitre foi acceito : o que sabemos é que o cardeal de Burgos tinha nos recessos do tribunal da meios- sufficientemente enérgi- cos para obter do preso qualquer verdade de que carecesse o serviço do rei de Portu- gal.

Mas o que, sobretudo, podia ser fatal, tanto para os christãos-novos como para o cardeal da Silva, era a solução de negociações que se abriram em Roma no decurso de 1542 e 1543. Corria uma por intervenção do cardeal de Burgos, outra pela de Farnese. A primeira era sobre a questão dos confiscos ; a segunda sobre a applicação das rendas do bispado de

(1) Ibíd.

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Viseu. Tinham decorrido sete annos dos dez em que pela bulia de 23 de maio de 1536 os bens dos réus de judaismo condemnados ao fogo, em vez de cahirem nas garras do fisco, passavam aos legi timos herdeiros dos justi- çados. Este allivio temporário concedido ás famílias da raça perseguida, que os christãos- novos accusavam os inquisidores de illudir mais ou menos indirectamente, e que D. João III recordava a cada momento como prova da religiosa pureza das suas intenções, embora houvesse sido estatuído pelo pontífice, aca- bava em 1546. Que se faria depois? De ac- cordo com o papa, o cardeal de Burgos pro- punha ordenar-se definitivamente a organísa- ção do tribunal da em conformidade com a que se lhe dera em Gastella, uma vez que por certo numero de annos metade dos bens confiscados aos christãos-novos revertesse em beneficio da cúria romana (1). Quanto ás ren- das do bispado de Viseu, o papa promettia alguma demonstração contra D. Miguel da Silva, se ao núncio fosse commettido tomar conta delias. Balthasar de Faria não estava

(1) Carta de D. João iii a B. de Faria de 20 de ja- neiro de 1543. na Corresp. de B. de F., f. 6, na Bi- blioth. da Ajuda.

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longe de admittir esse accordo, se punissem o bispo como elrei exigia; mas tão cruel pro- cedimento repugnava ao pontífice, que pro- pôs o arbítrio de pedir elle positivamente para o thesouro pontifício aquellas rendas, satisfa- zendo de algum modo os desejos do monar- cha. Posto que não se compromettesse a ob- ter d'elrei que acceitasse esta transacção, todavia o agente português promettia acon- selhá-la, logo que se desse ao seu monarcha uma satisfação condigna, e que as sommas que d'ahi proviessem servissem para a obra de S. Pedro e não para acudir ao banido pre- lado. Effectivamente, escrevendo a elrei sobre o assumpto, Balthasar de Faria insinuava a conveniência de satisfazer a cubica do papa debaixo das restricções propostas, visto elrei não poder appropriar-se daquellas rendas. «Disto accrescentava elle tirará vossa al- teza três resultados; vingar-se de D. Miguel, reduzindo- o a perpetua miséria, mostrar o seu desinteresse, e tirar dos deméritos desse ho- mem meios para serviço de Deus, conciliando ao mesmo tempo o animo do pontífice (1). Estas considerações não revelam senti-

(1) a de B. de Faria de 15 de outubro de 1543 1.,

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mentos extraordinariamente evangélicos no procurador da Inquisição, e persuadem que elle não reputava melhores os delrei a quem iisongeiava com a perspectiva de baixa e in- terminável vingança, disfarçada, segundo acre- ditava, debaixo do manto hypocrita de pia ge- nerosidade. Balthasar de Faria avaliava bem D. João III. Nas suas missivas para Roma ; nas suas representações ao pontifice, este príncipe nunca omittia ponderações sobre o immenso sacrifício que fizera á religião insti- tuindo o tribunal da fé. Perdia diariamente súbditos activos, industriosos, opulentos : em- pobrecia o presente e sacrificava o futuro. Nesta parte, as suas reflexões, longe de se- rem exaggeradas, ficavam muito áquem da verdade. Mas os seus intuitos, a dar-lhe cre- dito, eram exclusivamente religiosos. A cubica não o movia em cousa alguma, e a prova era a facilidade com que accedera a não se apro- veitar dos bens dos réus condemnados á morte por crime de heresia, bens que, em re- gra, deviam vir ao fisco. Se procurava reter á força no reino os christãos-novos abastados, e impedir que posessem em seguro as pró- prias riquezas, não era porque suspirasse pelo dia em que podesse confiscá-las; era unica- mente para os trazer ao bom caminho por es-

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ses meios indirectos de compulsão (1). Mas quando Roma lhe oíferecia satisfazer comple- tamente os seus desejos, habilitá-lo para sal- var todas as almas, e soltar todas as peias ao sanctos furores da Inquisição, a troco de lhe consentir que devorasse durante alguns annos metade dos despojos ensanguentados das victimas, o monarcha vacillou. Respon- dendo ao seu agente sobre este assumpto, re- commendava-lhe que mentisse ao cardeal de Burgos, dizendo-lhe que escrevera ao infante D. Henrique acerca desta proposta para a communicar a elle, e que o infante lhe res- pondera que elrei, não querendo tirar nenhum proveito material dos actos da Inquisição e tendo em mira o serviço de Deus, estava prompto a vir a um accordo. Recommendava, porém, instantemente a Balthasar de Faria que, a tractar-se disto, reduzisse a quota o mais que fosse possível á quarta parte ou ainda a menos e quanto ao praso, que nunca excedesse a seis annos (2).

(1) Vejam-se todas as cartas de D. João iii ao papa sobre assumpto e instrucçôes aos seus minis- tros em Roma, especialmente a carta mandada por Simão da Veiga em 1545.

(2) C. de D. João iii a B. de Faria de 20 de janeiro de 1543, 1. cit.

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Quando a hypocrisia e a cubica, em vez de luctarem a occultas no coração do homem, vem assim desmentir-se mutuamente nas pa- lavras que saem dos lábios ou que a mão es- tampa sobre o papel, a indignação expira ; porque o asco é possível onde a maldade humana se confunde com a imbecilidade pue- ril. Ha chagas que geram horror ; outras ha que geram tédio.

Assim tudo se combinava para a ultima ruina dos christãos-novos. A grande maioria do collegio dos cardeaes inclinava-se para o partido de D. João iii ; Santiquatro e Faria não dormiam, e Diogo Fernandes jazia de novo nas masmorras da Inquisição. O papa affastava de si D. Miguel, e fingia que come- çava a convencer- se de que elle era merece- dor de severo castigo. Esperava o resultado das suas ultimas propostas. Por outra parte. o orgulhoso prelado via-se reduzido a vender as alfaias mais necessárias, e quasi que subsistia das esmolas dos hebreus portugue- ses. Os seus numerosos credores sitiavam o pontifice, pedindo justiça contra elle (1). O pobre cardeal tornava-se naquella difficil con-

(1) C. de B. de Faria de 15 de outubro de 1543, 1. cit.

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junctura um bem débil alliado , porque a falta de dinheiro não era por certo o melhor titulo de consideração em Roma.

Em semelhante situação, quem não perde- ria a esperança? Não a perderam inteiramente os christãos-novos. Fiel aos caracteres que a distinguiram em todos os tempos, aquella raça tenaz ainda tentou uma vez renovar a lucta ; salvar-se por um supremo esforço, que, por incompleto, teve a sorte de todos os an- teriores. Numerosos, opulentos, engenhosos, illustrados, faltavam-lhes os dotes mais no- bres, o valor, o desapego da fortuna, o des- prezo da vida diante da tyrannia, o sentimento indomável da dignidade humana e a cons- ciência enérgica do próprio direito ; dotes em que mais de uma vez os opprimidos têem achado recursos para fazer recuar os seus oppressores. Com outros brios, os judeus portugueses teriam talvez padecido menos, e contraposto ao terror, que pretendiam incutir- Ihes, graves apprehensões que perturbassem as noites dos seus assassinos. Apesar das preoccupações populares, ainda quando es- magados, teriam ao menos conquistado nos supplicios a consideração e as sympathias que nunca faltam a desgraça nobremente sup- portada, sympathias que, mais tarde ou mais

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 101

cedo, fazem sui*gir das cinzas dos martyres os seus vingadores. A perseguição, que torna indomáveis os ânimos nobres, que os purifica e os eleva acima do vulgo nas epochas de profunda decadência, não os elevava a elles. A' mentira oppunham muitas vezes a mentira. á hypocrisia a hypocrisia, á corrupção a cor- rupção ; mas não era nestas artes ignóbeis que podiam levar vantagem aos seus adver- sários. Depois, Roma sabia calcular : as gros- sas sommas que elles podiam despender, e que despendiam de feito, era um ganho tran- sitório ; as pensões, que o rei de Portugal podia conceder, e concedia, eram permanen- tes e seguras. As graças temporárias, as de- monstrações passageiras de protecção e be- nevolência correspondiam ao transitório : ao permanente deviam corresponder concessões definitivas. A cúria romana buscava conciliar tudo ; o máximo lucro com a ponderação dos valores e com a mais alta probidade com- mercial no trafico das cousas sanctas.

LIVRO VIII

LIVRO VIII

Novos elementos de defesa preparados pelos agen- tes dos hebreus em Roma. Clamores públicos na cúria. Collecção de documentos contra a Inqui- sição. Memorial dirigido ao cardeal Farnese. Perseguição popular contra os christãos-novos. Quadro dos abusos e excessos dns diversas Inqui- sições de Portugal desde 1540 até 1544. Resolve-se o papa a intervir na questão do modo mais effi- caz. Escolha de um novo núncio para substituir o bispo de Bergamo. A corte de Lisboa, instruída das disposições da cúria romana, prepara-se para a contenda.

Resolvidos a tentar ura esforço supremo, os christãos-novos preparavara-se para o com- bate. Diogo Fernandes não podia por certo ser-lhes útil encerrado num cárcere ; mas ti- nham em Roma agentes seus, enviados das diversas terras do reino onde elles eram mais numerosos e ricos, como Porto, Coimbra, La- mego e Trancoso. Esses agentes começaram a espalhar dinheiro com tal profusão, que Bal-

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thasar de Faria desde logo receiou o compieto transtorno de um negocio que estava tão bem affigurado (1). Entre aquelles procuradores, o de Lamego, Jacome da Fonseca, parece ter sido encarregado do papel principal e de man- ter na cúria as relações geraes com os chefes da nação (2). A sede de ouro era tal naquella Babylonia de prostituição, que, quando o pe- rigo extremo constrangia os judeus portugue- ses a porem de parte a habitual parcimonia e serem amplamente generosos, o primeiro em- bate tornava-se, a bem dizer, irresistivel, e naquella situação apertada elles tinham com- prehendido que a parcimonia não era por certo o melhor instrumento de salvação (3).

(1) «temo que me ande vir arrombar, porque des- baratam o mundo com peitas»: G. de B. de Faria de 15 de outubro de 1543, 1. cit,

(2) C. d'elrei para B. de Faria de 4 de fevereiro de 1544 na Correspondência de B. de Faria, fl. 49, na Biblioth. da Ajuda.

(3) «he impossivel resistir ao suborno desta gen- te, porque exactíssima diligencia não basta : á mis- ter mão de Deus : os officiaes são muitos, e nesta terra é gram maravilha serem bõos: e a maior parte delles, da folhosa até o grou, promtos a tomar sem pejo quanto lhes dam: ora veja vossa alteza a impresam que faram nelles ciii^stãos-novos neces-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 107

Mas a immoralidade extrema, tnumphante naquella epocha, forcejava por guardar as ap- parencias religiosas. D'ahi nascia a necessi- dade de uma hypocrisia refinada. Nos docu- mentos d'então que chegaram até nós, e que não eram destinados á publicidade, podemos hoje descortinar em toda a sua hediondez a gangrena que lavrava nos ânimos ; mas a lin- guagem dos actos públicos ou officiaes era outra, e nunca, talvez, foi tão mesurada, tão pia, tão conforme á justiça ; nunca as formu- las exprimiram com tanta nitidez o sentimento da dignidade e do pudor, da uncção religiosa, do desejo de seguir os caminhos de Deus. Pôde a civilisação moderna mo ter feito os homens melhores . mas a hypocrisia, a mais vil das artes humanas, a amaldicçoada do Re- demptor, perdeu com ella quasi todo o seu preço, e hoje, em boa parte até para o vulgo, os ademanes edificativos do hypocrita, as suas palavras modestas, os seus piedosos ar- rebatamentos movem a riso ainda mais do que a indignação.

Comprar a benevolência da corte pontifícia

sitados, que naturalmente tem por officio peitai-' C. de B. de Faria a elrei de 18 de fevereiro de 15ii na G. 2, M. .5, N.» 19, no Arch. Nac

108 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

não bastava á gente da nação: cumpria tor- ná-la possível de facto, e para isso era indis- pensável subministrar novos motivos ou pre- textos a uma sexta ou septima mudança de politica na cúria, de modo que as mesmas apparencias de zelo evangélico e de sede de justiça que serviam agora á causa da Inqui- sição viessem a servir com plausibilidade con- tra ella. E, com eífeito, o procedimento dos procuradores dos christãos-novos parece ter sido dirigido por estas considerações.

Vimos anteriormente que, no meio do de- salento profundo dos hebreus portugueses, os mais opulentos entre elles, impellidos por um egoismo covarde e por uma economia extem- porânea, negavam recursos a Diogo Fernan- des para a defesa commum, ao passo que oífereciam grossas sommas para obter immu- nidades mdividuaes, que os mantivessem in- cólumes no meio da ruina geral. As observa- ções que Diogo Fernandes lhes fazia a este propósito eram por certo desinteressadas e sinceras. A união torná-los-hia mais fortes e as sommas distribuídas entre os funccionarios pontifícios para obter breves de protecção a favor desta ou daquella familia, breves a que aliás os inquisidores podiam desobedecer sem graves embaraços, seriam muito mais efíica-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 109

zes empregadas junctas para obter resoluções de caracter genérico, e que servissem, não para uma, mas para todas as occorrencias Em relação aos interesses de Roma, eram mais vantajosas estas concessões singulares, porque talvez lhe rendiam mais e porque a sua quebra, sendo um acto, a bem dizer, obs- curo, não debilitavo tanto a força moral da apostólica, ao passo que a desobediência a um acto de suprema auctoridade, a uma pro- videncia de grande vulto e de applicação uni- versal e permanente, obrigava o papa a man- ter essa providencia por interesse próprio, e em defesa de uma supremacia defendida sem- pre com ciúme pela cúria romana em todas as questões graves.

Entretanto é preciso confessar que as solli- citações particulares não deixavam de ter in- fluencia no resultado do empenho commum. Esses queixumes continuados mantinham vi- va em Roma a lembrança das perseguições que se faziam em Portugal, e por muito cor- ruptas que alli estivessem as consciências, os sentimentos de humanidade não estavam por certo mortos de todo. Na cúria devia haver mais de um individuo, não probo e virtuo- so, mas também assas esclarecido para desap- provar os actos de intolerante crueldade de

110 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

que em geral a Península era theatro, e a in- dignação destes homens, excitada diariamen- te pela narrativa de novos factos mais ou me- nos atrozes, auxiliava poderosamente os es- forços daquelles que favoreciam opprimidos, não por um sentimento de piedade ou de jus- tiça, mas sim pelos ignóbeis motivos que os documentos vem hoje revelar-nos.

Taes eram as circumstancias que parece terem movido os agentes dos christãos-novos a multiplicarem as sollicitações da Inquisição, emquanto colligiam miudamente os attentados e violências de que era victima a gente da nação, e todas as provas e documentos des- tes factos, que aliás seriam, em parte, incrí- veis sem provas. Diarimente appareciam pe- rante a cúria romana petições, sollicitando breves a favor dos réus, presos por ordem do tribunal da fé, nas quaes se apontavam fla- grantes injustiças e abusos intoleráveis, até contra as próprias disposições da bulia de 23 de maio de 1536, que estabelecera a Inquisi- ção em Portugal. Naquellas supplicas, os actos dos inquisidores eram representados com as mais negras cores, e por certo com grande exaggeração. Os esforços de Balthasai' de Fa- ria não se limitavam, porém, a neutralisar o effeito moral dessas violentas accusações. O

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 111

activo procurador da Inquisição buscava im- pedir por todos os modos que os sollicitados breves chegassem a expedir-se, tendo para isso de luctar ás vezes até com o cardeal Pa- risio, que acceitara outr ora a defesa dos chris- lãos-novos, e que numa situação mais elevada não abandonara os seus antigos clientes (1) A*quelles meios de excitar a piedade, e de dispor os ânimos a favor de uma causa quasi perdida, ajunctavam-se outros mais ruidosos. Nos iribunaes, nas estações publicas e nos próprios paços do pontifice appareciam em grupos os christãos novos portugueses que se achavam em Roma e, voz em grita, pe- diam protecção para seus pães, irmãos, pa- rentes e amigos, que judicialmente eram as- sassinados em Portugal. Um dia em que Fa- na acabava de obter do papa a suspensão de um breve que se ia expedir a favor de uma certa Margarida de Oliveira, o filho desta veio lançar- se aos pés de Paulo iii, pedindo justiça contra o agente do rei e da Inquisição, que forcejava por conduzir á fogueira aquela des- graçada. A vehemencia com que se exprimia o supplicante, que em tal conjunctura não pa-

1) ibid.

112 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

rece provavei reprenlasse uma farça, ultra- passou, como era natural, os termos de co- medimento. A sua linguagem foi tal, que, por ordem do pontifice, os guardas o arrastaram para fora da sala. Gommunicando este facto a elrei, Fana era de opinião que o impertinen- te sollicitador fosse mettido no porão de um navio apenas voltasse a Portugal e enviado para um presidio d' Africa (1).

Uma, porém, das mais fortes columnas dos christãos-novos nesta conjunctura era, como acima dissemos, o cardeal Parisio, a cujo vo- to dava peso o ser abalisado jurisconsulto, tanto nas matérias civis como nas canónicas, que ensinara em Pádua e em Bolonha. As suas consultas eram celebres na Itália e ha- viam-lhe grangeiado avultada fortuna (2). Era um adversário que mais convinha conciliar que combater. Faria empregou nisso a influen- cia do cardeal de Burgos e de outros perso- nagens. Tudo foi baldado; porque Parisio não disputava, mas proseguia no seu empenho. Em pleno consistório propôs que se conce- desse aos christãos-novos um perdão geral, e sem a opposição tenaz do cardeal DelMon-

(1) Ibid.

(2) Ciacconius, T. 3 (Paul. m.-xxxni), p. 667

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 113

te, talvez o tivesse alcançado (1). Suppondo que Parisio fosse pago pela gente da nação para taes demonstrações, poder- se-ha dizer que, como cardeal, as suas mãos eram mais puras do que as de outros membros do sacro collegio, mas cumpre confessar que elle não esquecera a probidade relativa do advogado, que, pouco escrupuloso quanto ao modo de tirar proveito das causas que defende, serve todavia com lealdade os que lhe pagam o pa- trocinio.

Ao tempo que estas cousas passavam oc- corriam factos que justificavam aos olhos da própria Roma os clamores alevantados no seio delia. O procedimento dos inquisidores podia ser ou não justificável á vista da bulia de 23 de maio; podia haver nos processos maiores ou menores irregularidades ou injus- tiças; podiam ser verdadeiros ou suppostos os actos de judaísmo que serviam de pretexto á recrudescência de perseguição; mas que es- ta era terrível, implacável, sabía-o toda a Itá- lia, porque via os seus effeitos. A emigração dos christãos-novos portugueses tinha tomado dimensões extraordinárias. Em maio de 1544

(1) a de B. de Faria a elrei de 18 (aliás 19) de fevereiro de 1544, G. 2, M. 5, N.» 32, no Arch. Nac. TOMO IH 8

114 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Balthasar de Fana avisava elrei de que havie chegado a Ragusa uma nau carregada de fu- gitivos (1). A Syria e a Turquia da Europa re- cebiam diariamente no seu seio familias por- tuguesas, que, á sombra da meia tolerância do islamismo, iam buscar essa mesma pouca liberdade religiosa que não achavam na pá- tria (2). Dez annos depois, na cidade de Ancona havia perto de três mil judeus portu- gueses ou oriundos de Portugal, parte dos quaes eram creanças nascidas em Itália, e cujos pães, por consequência, tinham abando- nado o paiz nesta epocha de mais feroz per- seguição, ou pouco anteriormente. Em Fer- rara e em Veneza era também grande o nu- mero delles (3). Muitos deviam acolher-se a outros pontos, onde, como temos visto no de-

li) C. de B. de Faria a elrei de 8 de maio de 1544, G. 2, M. 5, N.o 24

(2) Veja-se o § da carta de um certc Fr. António a elrei, escripta poucos annos depois, e que se refe- re a este facto: G. 2, M. 9, N." 44.

(3) C. de mestre Simão (jesuita) a D. João iii (1544) de Ancona, na G. 2, M. 5, N.o 31. Veja-se também a carta de Gaspar Barreiros publicada por Cunha (Hist. Ecclesiastica de Braga, P. 2, c. 81) documento suspeito, mas cuja narrativa é nesta parte assas plausivel.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 115

curso desta narrativa, haviam buscado re- fugio os seus perseguidos irmãos. A Inglater- ra, a França, mas sobretudo os Paizes-baixos fortaleciam a sua industria e o seu commer- cio com os elementos de riqueza que o inepto chefe de uma pequena e empobrecida monar- chia lançava fora com perseverança insensata. O dinheiro e os clamores dos christãos-no- vos, a sua expatriação sempre crescente, de que era testemunha a Europa inteira, e os do- cumentos que obtinham de Portugal em pro- va da tyrannia que sobre elles pesava não te- riam, porventura, bastado para lhes tornar fa- vorável ainda uma vez mais a corte de Roma, se a questão do bispo de Viseu, desse alliado que os esforços dos agentes de D. João iii parecia terem annulado, não viesse de novo influir desagradavelmente no animo do pontí- fice. Como vimos no fim do livro antecedente, Balthasar de Faria accedera até certo ponto a uma transacção em que a vingança do rei se conciliasse com a avidez da cúria; mas o papa entendeu que era mais conveniente es- crever ao núncio para que tractasse directa- mente o negocio com o rei, limitando-se a propor que a administração, tanto temporal como espiritual, da diocese de Viseu fosse confiada a eile núncio, recebendo as rendas

116 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

da mitra e de todos os benefícios que o bis- po-cardeal desfructara. Como, porém, Lippo- mano não manifestava a applicação que se havia de dar áquellas rendas, o rei declarou categoricamente que não se oppunha a que elle regesse espiritualmente o bispado, mas que, pelo que tocava aos rendimentos da mi- tra, a coroa continuaria a cobrá-los, conser- vando tudo em sequestro como até ahi, sem delles distrahir cousa alguma até ulterior des- tino. Era, todavia, por este lado que a questão tinha importância para o núncio, que, á vista da terminante resolução d'elrei, recusou en- carregar-se da administração espiritual (1). Fá- cil é de suppor o effeito que tal resolução produziria na corte de Roma, depois das li- songeiras esperanças que Balthasar de Faria deixara conceber ao papa. O desabrimento daquella resposta explica-se pela cegueira do ódio d'elrei contra D. Miguel; mas nem por isso é menos certo que ella fora essas incon- veniente numa conjunctura em que os chris- tãos-novos envidavam os últimos esforços na lucta com a Inquisição. A espécie de resenha ou memoria redigida

(1) InsLrucç. ou Memor. sem data no voJ. 3 da Collecç. Ms. de S. Vicente, f. 139.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 117

em Roma nesta epocha pelos agentes dos hebreus portugueses chegou até nós. Delia se que essa longa exposição de aggravos foi dirigida a um membro do sacro collegio as- sas poderoso para se obter por sua interven- ção um resultado favorável. Quem podia ser elle? A maioria dos cardeaes influentes in- clinava-se visivelmente para o partido de D. João III, e D. Miguel da Silva experi- mentara á própria custa, no consistório em que o seu negocio se debatera, quão dicisi- vas eram essas tendências. Farnese achara prudente guardar silencio naquella conjun- ctura, mostrando-se-lhe depois, se não adver- so, indiferente, nas conversações particulares com Balthasar de Faria, ao que o obrigava o negocio da pensão sobre as rendas de Al- cobaça, ainda não inteiramente terminado. Porém o neto de Paulo iii não o abandonara de todo, como os factos o provam. Assim, é de crer que os agentes dos christãos-novos, de quem D. Miguel dependia, procurassem por intervenção do infeliz prelado mover o animo do cardeal-ministro, e que a este fosse dirigida aquella extensa exposição. Alexandre Famese, vice-chanceller da igreja romana^ era o principal vulto politico, o personagem mais influente da cúria. Podia-se dizer que

118 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

não havia outro canal para fazer com que seu avô resolvesse os mais árduos negócios, nem Paulo III tinha outro canal por onde transmit- tisse aos principes da Europa as suas reso- luções ou desejos (1). Factos notáveis da vida do cardeal vice-chanceler provam que elle não hesitava em liberalisar aos judeus de qualquer parte do mundo a mais decisiva protecção quando delia necessitavam, e esses factos foram taes, que motivaram as amar- gas reprehensões de uma das mais nobres intelligencias daquelle tempo, o cardeal Sa- doleto (2). São fáceis de presuppor os meios que para obter tão alta protecção emprega- ria a raça proscripta.

O Memorial dos hebreus é uma narrativa documentada da perseguição feita em Portu- gal aos judeus desde a conversão violenta de 1493 até 1544. Esta narrativa importante, que mais de uma vez nos tem subministrado o

(1) «Quindecim totós annos quibus Paulus ponti- fex vixit, ecciesiam fere universam prudentissimè gubernavit (Farnesius) ; legationes apostolicae sedis aut ipse obivit, aut quibus voluit à pontiíice delatae. Ad pontificem atque à pontífice per ipsum Alexan- drum provinciarum et principum manabant nego- tia» : Ciacconius, T. 3 (Paul iii. i), p. 563.

(2) Ibid.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 119

fio para sairmos do dédalo de multiplicados documentos, deve ser lida com precaução, porque não é nem poderia ser imparcial. En- tretanto, é certo que ella se estriba não raro em instrumentos authenticos passados por magistrados e offlciaes públicos, que decerto não queriam favorecer a raça perseguida. Outras vezes a narrativa é plenamente con- firmada por documentos de diversa ordem, que ainda existem, e até ha factos em que a relação do Memorial é diminuta, acaso por- que se ignoravam já, pela distancia dos tem- pos, muitas particularidades que aífeiavam os successos. Tal é a noticia da carnificina de 1506. No que principalmente pecca essa es- pécie de manifesto é na exaggeração, não das cousas, mas do estylo, em que se não pou- param nem o excesso das metaphoras, nem o arrojo das hyperboles, e que antes se deve attribuir aos que ordenaram e redigiram o escripto, do que aos que para isso subminis- traram os precisos elementos (1).

(1) O titulo da memoria a que nos referimos e que muitas vezes temos citado é Memoriale por- rectum à noviter conversis Regni Portugaltiae con- tinens narrativam rerum tjestarum cirza eos a Re- gibus et Inquisitoribus illias Regni spatio 48 an-

120 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

O que se deduz da introducção do Memo- rial é que as providencias para mitigar os fu- rores da Inquisição, promettidas pela cúria e pagas pelos christãos-novos, não chegaram nunca a Portugal. A pensão arbitrada por elles ao bispo de Bergamo fora igualmente perdida. As circumstancias que precedente- mente descrevemos tinham suspendido indefi- nidamente a expedição das bulias relativas ao assumpto e traçado ao núncio uma senda de moderação, ou antes de mdifferença, de que

normn. Seguem-se ao memorial 44 apensos, con- tendo em parte instrumentos judiciaes sobre os fa- ctos mdicados naquella memoria, e narrativas es- peciaes em relação a actos dos inquisidores e a as- sumptos passados no interior da Inquisição, de que não era possível obter certidões. Parte dos annexos são destinados á discussão de vários pontos relati- vos á extensão da auctoridade do tribunal da fé, ás condições da sua existência, ás formulas dos pro- cessos, etc. Desde o numero 33 em diante os appen- sos referem-se principalmente ao periodo decorrido desde 1540 até 1544, e por isso são estes que apro- veitaremos aqui, bem como a correspondente nar- ração do Memorial. Este e os appendices formam os volumes 31 e 32 da Symmicta Lusitanica (vol. 38 e 39 da Collecção Geral vinda de Roma) na Biblio- theca da Ajuda. A copia foi tirada do Ms. 893 da Bi- bliotheca Borghesi.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 121

elle não se atrevera a sair. Abandonados in- ceiramente á mercê dos inquisidores, a perse- guição redobrou de violência, e os gritos dos que expiravam nas fogueiras respondiam em Portugal aos inúteis clamores que os agentes da raça perseguida alevantavam nos tribunaes de Roma (1).

Se acreditarmos o Memorial, e nesta parte a narrativa é altamente crivei, as familias da- queles que soUicitavam na cúria o favor do pontífice para seus afflictos irmãos eram alvo de uma perseguição systematica da parte dos inquisidores. Os que tomavam aquelle arris- cado empenho não se votavam a si a futu- ras e implacáveis vinganças; preparavam também o martyno de mulheres e de filhos, de pães e irmãos. De nada lhes servia soUici- tar e obter breves de exempção, ou em que se avocassem as causas dos réus presos a um tribunal de juizes apostólicos, nomeia- dos para esse fim. Se taes breves escapavam dos obstáculos que em Roma se punham á sua expedição, os inquisidores desprezavam- -nos ou sophismavam-nos. Apesar dos esfor-

(1) ocillorum sanguine mcrassatus et impin^iatus est regius furor. Heu! Deplorandum tempus!» Me- moriale, Symm., vol. 31, f. 60 v.

122 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ços de Balthasar de Faria tinha- se, por exem- plo, expedido uma nomeiação de juizes apos- tólicos ao celebre arcebispo do Funchal D. Martinho e ao núncio, para entenderem na causa de Margarida de Oliveira. O expe- diente que seu filho empregara para mover o pontifice não fora são; mas tornou-o inútil a desobediência dos inquisidores Então o papa avocou a causa á cúria, ordenando se lhe re- mettesse o processo original fechado e sella- do; mas esta resolução teve a mesma sorte da primeira, e a desgraçada viuva, carregada de annos e de enfermidades, esquecida no fundo de um cárcere, ahi acabou provavel- mente a sua dolorosa existência (1).

(1) Memoriale, i. cit. f. 62. O processo de Marga- rida de Oliveira, que ainda existe nos archivos da Inquisição de Lisboa N.» 2847 e 3911, prova que, nesta parte, a narrativa do memorial não não é exaggerada, mas até que é incompleta. A existência dos autos originaes nos archivos da Inquisição deixa logo ver o nenhum caso que os inquisidores fizeram da segunda resolução do papa. Appensos a elles en- contram-se o mandado avoca to rio do arcebispo do Funchal e a contestação do promotor da Inquisição, allegando que, tendo sido o procedimento dos inqui- sidores para com a justo e regular, o breve que nomeiava juizes extraordinários era sob e subrepti- cio. A desobediência dos inquisidores fundou-se,

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 123

Entretanto esta continua concessão de bre- ves para casos especiaes, concessão altamente rendosa para a cúria romana, não incom- modava Faria, mas também os membros da Inquisição, a quem esses breves, pelo menos, obrigavam ás vezes a proceder com certa cir- cumspecção, e a deixar apodrecer nas raas-

portanto, em dar por provado justamente o que es- tava em questão. O mais curioso daquelle processo (a que parece, por nos servimos de uma ptirase, vulgar, ter-se posto pedra em cima, porque não se acha concluído) é a matéria das testemuntias. As do libello foram seis, das quaes três de ouvida. A deu mais de cem em seu abono. Entre as testemu- nhas de defesa figuravam pessoas principaes, tanto da classe nobre como da burguesia. Dada a lista, interrogaram-se apenas algumas e parou o processo. Queixou-se a ré, e pediu que fossem ouvidas as ou- tras. A sua situação era horrivel. Tinha 74 annos e estava cuberta de chagas. O promotor impugnou o requerimento, allegando que aos juizes tocava ap- preciar o numero de testemunhas que eram neces- sárias para os esclarecer, fundamentando esta admi- rável doutrina com textos numerosos. Taes eram a justiça e a indulgência da Inquisição, ainda suppon- do a legitimidade da sua existência. A circumstan- cia de não figurar o núncio no mandado avocatorio mostra bem ou a timidez do bispo de Bergamo, ou a insignificância do papel que representava na corte de D. João iii.

124 HÍSTORIA DA INQUISIÇÃO

morras mais de um réu, que poderia ter ser- vido para dilatar o espectáculo de um auto-de- fé. As activas diligencias diplomáticas que se faziam em Roma para chegar a uma conclu- são definitiva nesta matéria não corriam com a rapidez desejada, e era preciso recorrer a remédios mais promptos. Procurou- se cor- romper com dadivas os procuradores dos christãos-novos para guardarem silencio, e com promessas mais avultadas, se quizessem retirar-se da cúria. Desenganados da ineffica- cia destes meios, recorriam ás ameaças (1), e essas ameaças eram, como vimos, tremen- das para os que tinham familia em Portugal ou desejavam voltar á pátria.

A estes escândalos, mais ou menos secre- tos, accresciam os escândalos públicos. Como se não bastassem a espoliação e o assassinio debaixo das formulas judiciaes, ás vezes o povo fanatisado revelava em manifestações, mais ou menos insolentes, a sua vontade contra essa parte da população votada ao ex- terminio, e os satellites da Inquisição julga- vam-se auctorisados para practicar publica- mente contra os réprobos da sociedade toda

(1) Ibid.

HISTORIA DA INOmSfÇÃO 125

a espécie de vexames e de ignominias. Pri- sões irregulares, esparicamentxDS, espoliações, insultos grosseiros repetiam-se cada dia: era a febre da intolerância que agitara a capital em 1506, diminuida na intensidade, mas es- tendendo-se largamente pelas provincias.

Um parte da população de Lamego era de christãos-novos. Foi nos fins de 1542, como noutro logar dissemos, que o supremo tribu- nal da estabeleceu alli uma delegação; mas no meiado do anno era sabido que esse facto não tardaria em verificar-se. O ódio dos christãos-velhos, as suas esperanças de scenas atrozes manifestaram-se logo. Resta-nos um monumento curioso da malevolencia popular contra a raça hebréa, o qual ao mesmo tempo é um spécimen dos pasquins daquelle tempo. Certo dia pela manhan appareceu affixado no pelourinho uma espécie de programma, obra de algum poeta popular, em que se delineava o modo como devia ser festejado o estabele- cimento do novo tribunal Os hebreus mais conspícuos da cidade eram distribuidos em dous grupos, um de instrumentiscas, outro de dançarinos, e a cada individuo se assignava o modo e o logar em que devia ir no auto, o que subministrava ao auctor occasião de al- ludir aos defeitos moraes ou physicos das di-

126 íllS'lX)HlA Da INQUlSíÇÂO

versas pei^sonagens, ao mesmo tempo que lhes distribuía generosamente as qualificações de «cães», de «marranos» e outras equivalen- tes, assegurando a uns que não seriam ainda queimados naquelle anno, a outros que breve- mente figurariam num auto-de-fé. Os primei- ros periodos do programma bastam para dar uma idéa da Índole daquella composição: «Demos a Deus mfindas graças por vermos em nossos dias tirar vingança desta raça ca- nina, herética e incrédula. Todos unidos en- toemos-lhe um cântico por tal beneficio, e guardemos bem guardadas quantas vides po- dermos ajunctar, porque talvez nos chegue a faltar lenha para o sacrifício. E visto que es- peramos aqui a sancta Inquisição, ordenemos uma invenção com que possamos recebê-la dignamente etc.» (1). Estes signaes de von- tade aterravam a gente da nação, que via nelles a expressão, não das idéas de um ou de outro individuo, mas das do vulgacho em geral. Assim o terror foi profundo em toda a comarca, apenas constou que um certo Gon-

(1) Não existe o original; o que transcrevemos aqui é a traducção da traducção latina, que se acha inserida no instrumento N.o 33, appenso ao Memo- riale, na Symm., vol. 32, foi. 192.

HISiTORIA DA TMQIJTSrCÀO 137

çalo Vaz fora nomeiafTo inquisidor. Houve quem iogo i agisse; m^s os mais ooràalos, ou que contavam com poderosas protecções de- ram o novo inquisidor por suspeito, represen- tando contra eile a elrei (1).

Triste recurso era, porém, dirigir supplicas ao chefe do estado. A insolência popular, nessa conjunctura, legitimava-se por actos do poder supremo, que não se pejava de pôr um esty- gma na fronte daquelles mesmos christãos- novos contra os quaes a Inquisição se absti- nha de proceder, prova indirecta, mas irresis- tivel, da regularidade do seu procedimento religioso. Pouco depois dos insultos de La- mego, expedia- se em Lisboa uma provisão á Casa dos Vinte-quatro, para que nenhum mestre ou official dos ofíicios mechanicos christão-novo podesse ser eleito Mestre, e or- denando-se expressamente ao Juiz do Povo que não o reconhecesse como tal, se fosse eleito. O rei ia mais ionge do que a Inquisi- ção (2).

O tribunal do Porto celebrara um auto-de-fé

(1) Carta do doutor Gonçalo Vaz a elrei, de 15 de janeiro de 1543, na G. 2, M. 1, N.° 39, no Arch. Nac.

(2) Instrumento N.® 35, appenso ao Memoriale, 1. cit. foi. 217.

128 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

nos princípios de 1543. Estas execuções, que parece deveriam excitar o terror e a piedade, serviam para irritar os ânimos contra os conversos. A fermentação manifestou-se logo em Barcellos. Um dia pela manhan todas as portas das casas habitadas por christãos-no- vos appareceram com letreiros brancos, em que se designava a sorte que devia tocar a cada um delles. Numas lia-se a palavra fo- gueira, noutras cárcere perpetuo, noutras sambenito, noutras cinsa, noutras, finalmente, queimado. Attribuia-se o insulto a alguns clé- rigos de ordens menores. As portas das habi- tações dos christãos-velhos tinham sido es- crupulosamente respeitadas. Os indivíduos a quem se applicavam aquellas sentenças fa- taes eram em grande parte mercadores hon- rados e pontuaes no cumprimento dos seus deveres civis e religiosos (1).

Mas estas demonstrações populares pouco valiam comparadas com as consequências dos extraordinários poderes de que os commissa- rios e esbirros da Inquisição estavam reves- tidos. As instrucções dadas aos magistrados e aos funccionarios civis e militares eram

(1) Instrumento N.*» 34, appenso ao Memoriale, 1. cit. foi. 197.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 129

taes, que bom ou mau grado seu, tinham de ser muitas vezes instrumentos desses homens obscuros, e não raro maus e devassos. Onde o mandado do inquisidor se apresentava to- dos curvavam a cabeça, Em 1543 as previ- sões malévolas do pasquim de Lamego ha- viam-se realisado: a Inquisição levara o ter- ror ao seio das famílias hebréas daquella comarca. Uma parte dessas famílias tinha-se retirado para Tras-os-Montes. A Inquisição não se esquecera, porém, delias. Um esbirro fora enviado a fazer alli varias prisões. A lista era secreta, e os magistrados civis reco- lhiam aos cárceres as pessoas que elle ver- balmente lhes indicava. Mais zeloso que os seus chefes, o esbirro ampliara a commissão que trouxera, e os inquisidores de Lamego tiveram, passado tempo, de mandar pôr em liberdade alguns individuo?, retidos por sup- postas ordens suas no castello de Villa- real (1).

Póde-se inferir daqui a que vexames fica- riam sujeitos aquelles cujos nomes realmente se achavam incluidos nas listas de proscri- pção dadas aos agentes ou familiares do tri- bunal da fé. Na conjunctura em que taes fac- tos se passavam em Vilia-real, a comarca de Miranda era theatro de scenas ainda mais

TOMO III 9

130 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

vergonhosas. Elias servem para provar que a suspensão temporária dos confiscos, de que se fazia tanto alarde, e que se invocava como alto documento de desinteresse, era verda- deira illusão, e que para reduzir á miséria as familias das suas victimas os inquisidores não careciam dessa pena absurda.

Um dos mais incansáveis Nembroths, dos mais rudes caçadores de homens, que a In- quisição teve nos primeiros tempos da sua existência foi um Francisco Gil. Este miserá- vel tinha começado a carreira dos seus cri- mes pelo assassinio do genro de um merca- dor honrado de Lisboa, assassinio perpetrado publicamente no meio da Rua-nova (2). Re- vestido do cargo de sollicitador do tribunal da fé, Francisco Gil foi enviado pelas provin- cias a descubrir os sectários occultos do ju- daismo. A empreza podia ser odiosa; mas não era nem arriscada nem difficil. O activo agente achou logo um methodo eflíicaz e sim-

(1) Instrumento N.^ 36, appíngio ao Memoriale, l cit. foi. 219 v.

(2) Excessus Inquisitorum Uliixbon. no appendice ao requerimento feito pelos christãos-novos a elrei, de que adiante havemos de falar: Symm., vol. 32, foi. 311.

HISTORIA HA l\Ol I?^ÍÇÂ^t l-*^!

pies de obter avultada colheita. Chegando a qualquer iogar onde residissem chrislãos-no- vos, mandava annunciar que em tal igreja se havia de fazer uma festa e procissão solemne. Corria o povo ao templo no dia assignalado. Cheia a igreja, clle mandava fechar as portas, e em nome da Inquisição intimava aos fiéis, debaixo das mais lerriveis excommunhões, que se no meio delles estavam alguns judeus occultos, os bons christãos lh'os indicas- sem (1). Então os desgraçados réprobos do povo eram mandados pôr á parte, e dalli con- duzidos para a cadeia, á ordem dos inquisi- dores (2^.

No seu gyro, o implacável commissario chegou a Miranda do Douro, e esse districto parece ter sido um dos que lhe subministra- ram mais abundante seara de extorsões e violências. Foram presos waquelia villa onze

(1) aquod quaecumque persona ibi cognoverit ckristianuni novum, ostendat illum.»: Ibid. foi. 312. E' evidentemente uma exaggeração de phrase. Gil não podia exigir que lhe indicassem os christãos- novos para os prender, mas sim os christãos-novos suspeitos de judaísmo. E' provável, todavia, que em muitas partes o fanatismo tornasse synonimas as duas expressões.

(2) Ibid

l.>2 HISTORIA DA ÍXQUíRíÇAO

individuos de ambos os sexos. Cada um delles devia pagar-lhe quato"'ze mil reaes, somma que o sollicitador da Inquisição calculava ser necessária para se transportarem ao logar onde, segundo as ordens do infante inquisi- dor geral, deviam ser retidos. Intimados ju- dicialmente para apromptarem o dinheiro, re- sistiram todos, menos um pobre velho que jazia gravemente enfermo. Mandaram se então inventariar e pôr em ai moeda os bens dos réus, e estes foram removidos do castello de Miranda para o de Algoso, situado num ermo, a meia légua da povoação deste nome. Gas- par Rodrigues, o velho enfermo, fora ahi ar- rematante das rendas reaes. O povo tinha-lhe vontade, e os christãos-novos diziam que esta mudança era calculada para accender mais contra elle e contra os seus companhei- ros de infortúnio a sanha popular. No castello de Miranda, construcção solida cingida por cinco torres alterosas, os simples ferrolhos dos alçapões do cárcere respondiam pela se- gurança dos presos: no de Algoso, ruina de antiga fortificação e longe do povoado, cum- pria collocar guardas que obstassem a qual- quer tentativa interna ou externa de evasão. As tropas concelheiras, únicas que então ha- via, foram chamadas para aquelle serviço, e

IIlSrOIÍIA DA INQUISIÇÃO loo

OS factos vieram confirmar as previsões da gente da nação. As injurias das sentinellas ferviam sobre os encarcerados, e os campo- neses mostravam pai'a com Gaspar liodri- gues a mesma dureza de coi'a(;ão que prova- velmente elle lhes mostrara como exactor de tributos. A sua vingança estendia-se, porém, aos innocentes. a peso de ouro obtinham os presos os objectos mais necessários á vi- da, o lume, a agua, os alimentos. Certo dia, os guardas accenderam em frente da prisão uma grande fogueira e lançaram dentro um cão que ficou reduzido a cinzas. Era, diziam elles, o que haviam de fazer aos judeus que guardavam, antes que d'alli saíssem. Entre estes havia uma Isabel Fernandes, mulher abastada, a quem Francisco Gil e o seu mei- rinho Pedro Borges tinham extorquido cem mil réis. a pretexto de despesas de transito. Sem cama, sem uma camisa para mudar, a desgraçada chorava noite e dia. O esbirro of- fereceu-lhe então, não confortos, mas até a liberdade, se quizesse perfilhá-lo. Recusou. Redobraram os maus tractos e carregaram-na de cadeias. Vencida pela miséria e pela amar- gura, a infeliz endoideceu. Aos presos que não lhe davam qualquer objecto que lhes pe- dia, trocava o malvado os grilhões por outros

llli HISTORIA DA INOUlSíÇAO

mais pesados, ou fazia-os descer a um logar profundo e húmido, onde os deixava mettidos na agua. Gaspar Rodrigues, ferido pelos ferros, leso de uma perna e a bem dizer semi- morto, passou por ambos os martyrios. Fran- cisco Gil accrescentava a estas barbaridades do seu meirinho uma singular extorsão : quando se lançavam ou augmentavam os gri- lhões aos presos, fazia-lhes pagar o custo del- les. A's pessoas que se dirigiam ao castello de Algoso para falar ás victimas, se acaso se demoravam mais tempo do que o permittido, impunha-lhes a muleta de vinte mil reaes, e mandava-as expulsar d'alli, quando não as en- carcerava (1). Acaso as suas instrucções eram estas, e talvez a muleta, fixada de antemão pelos inquisidores, não revertesse em seu be- neficio. Fosse o que fosse, o que succedia era que, ás vezes, a troco de alguns cruzados de peita, os colhidos na rede remiam a prisão e a muleta. O espirito, porém, de violência e de rapina dos dous agentes da Inquisição era tal, que elles próprios se tornavam não raro

(1) O documento que seguimos diz que Francisco Gil mulctava quem vinlia a Algoso, e que Ilie impu- nha a pena de desterro : é evidente que estas ex- [>ressões são exaggeradas.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 135

instrumentos indirectos da vingança das suas victimas. A rústica milicia da comarca de Mi- randa não desfructava gratuitamente o prazer de affrontar os presos de Algoso. Os lavra- dores tinham não de velar o castello, mas também de fazer roídas e velas, ora num ora noutro logar. Os indiciados de judaismo não se reduziam aos onze martyres transferidos para Algoso. As listas de réus eram exten- sas; as capturas multiplicavam-se; e os ha- bitantes de qualquer aldeia que não iam dor- mir juncto do meirinho e dos outros esbirros, quando ahi chegavam com algum preso, eram severamente mulctados (1).

Os inquisidores nomeiados para as duas dioceses de Viseu e Lamego, foram o bispo D. Agostinho Ribeiro, transferido de Angra para esta ultima sé, um clérigo, mancebo de trinta e dous annos, chamado Manuel de Al- mada, e o doutor Gonçalo Vaz, vizinho de Lamego. Se acreditarmos as memorias dos christâos-novos, memorias que aliás se refe-

(1) Instrumento N.° 37, appenso ao Memoriale, I. cit. foi. 228 V. e segg. Este documento curioso resu- mimo-lo, omitiindo algumas circumstancias que nos pareceram desnecessárias para o quadro geral da grande perseguição de 1540 a 1544.

13G HISTORIA DA INQUISIÇÃO

rem a factos naquella epocha geralmente sa- bidos, ou que se estribam nos poucos docu- mentos authenticos que com extrema difficul- dade podiam obter, e no testemunho, que nellas se invoca, de fidalgos e de membros do clero da mais elevada jerarchia ; segundo es- sas memorias, dizemos, os dous collegas do bispo eram dous homens abjectos. Apesar da sua idade juvenil e da sua profunda ignorân- cia, Almada tinha sido vigário capitular no arcebispado de Lisboa, e fora ahi o ílugello do próprio clero. As suas façanhas haviam soado em Roma, e uma das commissões que o núncio trazia era inquirir sobre esses factos, a que posera termo a eleição de novo ar- cebispo. Gonçalo Vaz era secular e bigamo. Uma das mulheres com quem se dizia casado tinha parentesco, mais ou menos remoto, com uma grande parte dos christãos-velhos de Lamego que maior rancor manifestavam con- tra a gente da nação, da qual clle também era encarniçado inimigo por demandas e ri- xas que tivera com indivíduos dessa origem. Os christãos-novos tinham immediatamente requerido a elrei e ao próprio infante D. Hen- rique contra aquella inconveniente escolha ; tinham invocado os mesmos motivos que na organisação judicial haviam aconselhado a

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 137

instituição dos juizes de fora. Tudo, porém, havia sido baldado. Não era a imparcialidade que se queria : era a persegui(}ão.

Revestidos de uma auctoridade que, em re- lação aos crimes de que lhes pertencia tomar conhecimento, não os tornava independen- tes de todos 03 funccionarios e magistrado^: civis, mas até convertia estes em instrumen- tos seus, os inquisidores de Lamego podiam satisfazer a salvo suas ruins paixões. O bispo parece ter sido o menos bárbaro, e por con- sequência o menos influente dos três com- missarios. Vaz e Almada dirigiam, a bem di- zer, tudo. Os cárceres eram, ás vezes, cárceres privados, nas residências dos inquisidores, e cada cárcere tinha apenas oito palmos em quadro. Os que delles saíam vinham, não raro, por tal modo inchados que não cabiam no vestuário. Artigos de suspeição, breves de exempção comprados em Roma, por alto pre- ço, allegações de innocencia, tudo era inútil. Os parentes dos presos que sollicitavam em nome destes eram repellidos : os procurado- res e advogados que se incumbiam da defesa dos réus incorriam desde logo no ódio dos inquisidores, embora fossem christãos-veihos e pessoas nobres. O escrivão do tribunal es- tava inhibido de dar instrumento aos culpa-

138 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

dos de cousa alguma, ao passo que a nenhum notário apostólico era licito receber qualquer declaração dos réus, sob pena de muletas e excummunhôes. Um, que se atreveu a ir inti- mar a Manuel d'Almada uma suspeição por parte de um dos presos, foi encarcerado e mulctado, sendo solto por grandes empenhos, mas com juramento de não tornar a involver- se em negócios da Inquisição. Alguns réus que insistiam em não os acceitar por juizes eram mandados para Lisboa. Velhos, mulhe- res honestas, donzellas pudibundas marcha- vam em levas para a capital, e esse largo transito convertia-se em dilatado martyrio. Os guardas que os conduziam eram parentes de Gonçalo Vaz, a cada um dos quaes os réus deviam pagar dous cruzados por dia. Entre- tanto o processo proseguia em Lamego, sem audiência dos interessados, tomando-se, con- forme se dizia, testemunhas que faziam officio de depor contra os suspeitos de judaísmo e pagas para isso. Duas entre estas tinham-se tornado distinctas naquella espécie de indus- tria. Eram marido e mulher. Correndo as ca- sas dos christãos-novos fintavam-nos como entendiam e, se duvidavam de pagar, amea- çavam-nos de ir depor contra elles. Gomo se isto não bastasse, o próprio bispo, do alto do

HISTORIA DA INOlHSiÇAó Dit'

púlpito, no meio das solemnidades religiosas, impunha aos fiéis como um dever vingarem a paixão de Christo indo dar testemunho con- tra os christãos-novos, entre os quaes, dizia o prelado, não havia um único bom. Ao mes- mo tempo, em monitorios pregados nas por- tas das igrejas, fulminava aquelles que diziam que os inquisidores practicavam injustiças, ou que havia testemunhas falsas. Os que as- sim falavam eram, no seu conceito, fautores dos herejes e dignos de severo castigo.

Prendiam-se alguns individuos antes de de- nunciados : depois é que se tractava de lhes achar culpa. Para isto recorria-se não raro aos escravos e creados, que, conduzidos ao tribunal, quando de bom grado não queriam accusar seus senhores, eram a isso compelli- dos pelo terror. Outras vezes chamavam-se inimigos rancorosos dos presos e lisongeia- vam-se com a perspectiva de tirarem, pelos seus depoimentos, completa vingança dos próprios aggravos. Até as confissões auricu- lares serviam para inspirar ás testemunhas o que deviam dizer, ao passo que se negavam papel e tincta aos encarcerados para commu- nicarem com as pessoas que se interessavam na sua sorte, e quando se tractava de actos judiciaes em que os réus tinham de escrever

140 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

alguma cousa, dava-se-lhes o papel numerado e rubricado pelo notário da Inquisição, exa- minando-se attentamente antes de se expedir. Apenas quaesquer christãos-novos entravam nos cárceres, o inquisidor Almada divertia-se em ir designar o sitio em que se devia erigir o cadafalso, indicando com prolixidade infer- nal quaes dos novos réus teriam de ser quei- mados. Em summa, as lyrannias e violências eram taes, que as pessoas mais conspicuas de Lamego e os próprios magistrados civis não podiam occultar a sua indignação. Os in- quisidores, porém, longe de recuar diante des- sas manifestações, respondiam com ameaças, lembrando-lhes que não estavam exemptos da sua jurisdicção (1).

Eram estes factos exaggerados? Naquelles em que o testemunho dos queixosos unica- mente os abona, a suspeita de que o fossem é legitima. Não assim nos que eram practi- cados á luz do sol ; porque seria absurdo que, mentindo, os conversos appelassem para o testemunho publico. Alguns ha também de cuja existência temos provas irrefragaveis : tal é o seguinte, que se passava em Lamego

(1) Excessus Inquisitorum Civitatis Lamacensis,

i. cit. íbl. 320 e segg.

HíSTORIA DA INQUISIÇÃO 141

naqviella conjunctiira. Um dos christãos-novos que alli primeiramente se prenderam foi o rendeiro do almoxarifado, Gabriel Furtado. Chegou o contador d'elrei para lhe tomar con- tas ; estava preso. Tinham-no fechado numa gaiola de ferro dentro de uma torre, e a gaiola recebia apenas a escaca luz de uma fresta de- fendida por duas grades também de ferro. Dar contas alli era impossivel. A requeri- mento do agente fiscal, Gabriel Furtado foi conduzido fora da prisão com guarda á vista, para ser ouvido. O rendeiro do almoxarifado devia, porque também lhe deviam. Natural- mente, os contribuintes tinham escrupulisado de pagar os direitos reaes a um judeu, a um hereje encarcerado pelos inquisidores. Ha mui- tas consciências timoratas assim. Não obs- tante, o agente achou uma solução á difficul- dade : os bens do preso chegavam para cubrir uma parte da divida ; mas faltava completar essa fácil solução. Sem apontamentos escri- ptos, incommimicavel, não podendo recorrer a ninguém para cobrar os impostos, com os bens em almoeda, e reduzido á mendicidade, como pagaria o desgraçado christão-novo o resto da própria divida? Recorreu-se a um arbítrio. Por graça do inquisidor Almada, um tincteíro, uma penna e seis folhas de papel,

142 iiiSToRiA Da inquisição

rubricadas pelo notário da Inquisição, acha- ram accesso á lobrega morada do hereje, e uma lista de devedores públicos, traçada por sim- ples reminiscências no meio da agonia moral, habilitaram o contador d'elrei para salvar, até a ultima mealha, os haveres de sua alteza (1). Se estas e outras scenas análogas se pas- savam na diocese de Lamego, não eram me- nos barbaras e oppressivas as que occoriam no resto do reino. A alçada da Inquisição de Coimbra estendia-se por todo este bispado e pelo da Guarda. Os commissarios eram o dominicano Fr. Bernardo da Cruz, bispo de S. Thomé e reitor da universidade, e o prior da coUegiada de Guimarães, Gomes Aííon- so (2). O bispo de S. Thomé tinha um génio irascivel e despótico, e detestava cordealmente os christãos-novos. Das suas luzes e da no- breza dos seus sentimentos póde-se fazer idéa por uma carta que delle nos resta, dirigida a D. João III depois da sua nomeia ção para in- quisidor, em resposta a outra, na qual elrei o consultava sobre o modo de organisar a In- quisição em Coimbra e de prover os cargos

(1) Instrumento N.o 39, 1. cit. foi. 247 v.

(2) Sousci, Aphorismi Inquisitor. (De Orig. Inqui-

sit.) p. 28.

niSTOPIA PA INOUISIÇÃO 143

de^a, Escri})ta num estylo deplorável, essa caria revela no bispo o não menos deplorável talento de cortezão abjecto. A acreditá-lo, a capacidade do principe, que não poderá apren- der os rudimentos da língua latina, nem os de sciencia alguma, excedia a de todas as in- telligencias do paiz reunidas. Propunha, a fim de se criarem recursos para as despesas do tribunal, se não os quizessem ir buscar aos rendimentos das mitras de Coimbra e da Guar- da, que fossem supprimidas algumas cadeiras da universidade, nomeiadamente de direito ro- mano, e reduzidos os salários das que ficassem subsistindo. Dir-se-liia que o instincto lhe torna- va odioso esse manancial inexgottavel da scien- cia do justo. Dos lentes,só achava um capaz de ser promotor da justiça; os mais eram ou estrangeiros, ou christãos-novos, ou desassi- sados. Para sollicitador entendia ser propriis- simo um offlcial de sapateiro de Coimbra, e para meirinho propunha um creado seu, o qual, aliás, elle continuaria a conservar em casa. O digno prelado affirmava fazer o sacrificio de o ceder para aquelle cargo, pelo gosto que tinha em servir a Deus e a sua alteza (1).

(1) Carta do bispo do S. Thoinc a elrei (sem data), G. '3, M. 8, N.-^e.

144 HISTORIA DA IXQUÍSIÇÃO

Não tardaram a manifestar-se os intuitos 'c bispo dominicano na perseguição contra ob christãos-novos. A bulia de 23 de maio de 1536 tinha mantido as disposições do breve de 12 de outubro de 1535 e da bulia de 7 de abril de 1533: todos os crimes de heresia an- teriores á data desse diploma ficavam can- cellados, e não era licito fazê-los reviver. An- nunciando, porém, o estabelecimento do tribu- nal de em Coimbra e intimando os fiéis a que viessem denunciar todos os delictos con- tra a religião de que tivessem conhecimento, o bispo de S. Thomé deixou de fixar a data além da qual esses delictos eram como se não existissem. Esta circumstancia engrossa- va desmesuradamente a lista dos réus, mui- tos dos quaes foram presos e processados por factos que se diziam practicados mais de dezeseis annos antes. Como se isto não bas- tasse, nos depoimentos de testemunhas omit- tia-se a distincção entre as de vista e de oi:- vida. Processos intentados civilmente contra essas testemunhas provaram depois que mui- tas doUas eram falsas, e que as declarações de outras se tinham viciado. x\tulhados de pre- sos as escuras enxovias das torres do antigo castello rio Coimbra, muitos delles foram re- colhidos cm casebres immundos e fétidos.

HISTORIA DA tNOUlSIÇÃO 145

Carregados de ferros e incommunicaveis, quan- do algum obtinha dos inquisidores a permis- são de falar com os seus, era preciso propi- ciar o alcaide (1), porque as chaves das pri- sões andavam em poder delle, e por mais supplicas que os encarcerados fizessem para terem um carcereiro fixo, nunca poderam ob- tè-lo. As audiências eram a portas fechadas, sendo a principio admitlidos os advogados; e quando, á força de supplicas e clamores, se permittia aos filhos, irmãos, parentes, ou pro- curadores dos réus irem requerer verbalmen- te perante o tribunal, se falavam com liberda- de, o bispo prendia-os e mulctava-os. A indi- gnação que as suas arbitrariedades suscita- vam era geral entre as pessoas illustradas. Na ordem do processo offendiam-se a cada passo as regras mais triviaes da justiça. Os interrogatórios das testemunhas faziam-se com a mais escandalosa parcialidade, e o bispo reduzia facilmente ao silencio as de defesa, ameaçando-as com excommunhões, assignan- do-lhes os limites dos depoimentos, e invecti- vando-as de mentirosas quando diziam cou-

(1) Traduzimos por conjectura; a memoria dos christãos- novos que vamos seguindo chama-lhe pvaefectum carceris.

TOMO m 10

146 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

sas que lhe desagradavam. As vezes servia- Ihe de escrivão um rapaz de dezessete annos, seu sobrinho, que mal sabia escrever. Fácil é de conjecturar qual seria a gravidade, o acer- to e a moderação do tribunal da fé, onde ser- via de escrivão uma creança analphabeta, de sollicitador um sapateiro, de meirinho um creado particular do juiz, e onde o juiz era um homem para quem christão-novo signifi- cava judeu disfarçado.

Numa representação dirigida a elrei contra os abusos da Inquisição de Coimbra, a gente da nação não se limitou a apontar em geral estas violências, acerca de cuja exacção invo- cava o testemunho de pessoas conspícuas por letras e probidade. Desceu a individuar factos. Emquanto se não passava de generalidades, é possível que as cores com que se fazia a pintura dos aggravos fossem carregadas de mais; mas quando se especificavam pessoas e circumstancias; quando o exame da veraci- dade das affirmativas era fácil, suppor que se inventavam novellas seria levar o sceptismo ao mais subido grau. Julgamos por isso con- veniente apresentar aqui a descripção de al- gumas das scenas que se passavam na Inqui- sição de Coimbra, servindo-nos, a bem dizer, textualmente da narrativo contemporânea. A

HISTORIA D. INQUISIÇÃO 147

imaginação do leitor j3odei'á assim supprir a descripção de muitas outras que ficaram es- quecidas debaixo das abobadas do castello de Coimbra, e a cujos actores a pedra do se- pulchro ou as chammas das fogueiras sella- ram para sempre os lábios.

Simão Alvares era um christão-novo que viera do Porto, haveria nove annos, com sua mulher e uma filha de pouco mais de seis mezes, residir em Coimbra. Esta familia foi uma das primeiras sacrificadas. Pae, mãe e filha achavam-se nas prisões do castello. Se- gundo parece, a denuncia contra elles falava de crimes de judaismo perpetrados no Porto, e provavelmente faltavam testemunhas de ac- cusação. O bispo precisava de provar esses crimes. Occorreu-lhe um arbitrio para sair da perplexidade. Mandou vir á sua presença a filha do Simão Alvares, e pondo-ihe diante um braseiro cheio de carvões accesos, disse- Ihe que, se não confessasse ter visto seu pae e sua mãe açoutando um crucifixo, havia de lhe mandar queimar as mãos naquelle brasei- ro. A creança aterrada confessou que assim o vira fazer no Porto a seu pae, e o bispo teve a prova que desejava, embora a testemunha se referisse a uma epocha em que apenas contava pouco mais de seis mezes de edade.

148 aiSTORlA DA INQUISIÇÃO

Tractava-se do processo de uns presos de Aveiro, marido e mulher. Uma creada que os seguira foi chamada á Inquisição, e delia exi- giu o bispo que declarasse ter visto practicar a seus amos factos contrários á fé. A declara- ção, porém, da testemunha foi exactamente o contrario. Irritado, o dommicano fê-la encer- rar num cárcere. De tempos a t.empos, man- dava adverti-la de que. se queria ser solta, ac- cusasse os amos. Resistiu sempre. Desenga- nado de que nem o amor da liberdade, nem algumas demonstrações de benevolência, a que recorreu, abalavam a constância daquel- le nobre caracter, chamou-a um dia ante si e, elle próprio tentou convencê-la. Tudo foi bal- dado. Acceso em cólera, o phrenetico frade começou a espancá-la com um pau até lh'o quebrar na cabeça e nas costas, deixando-a lavada em sangue, e o algoz sagrado fez la- vrar o depoimento que quiz ao som dos gri- los da desgraçada. Este methodo de apurar a verdade parece ter sido o systema predileto de Fr. Bernardo da Cruz, mas ás vezes obtinha o resultado sem recorrer ao uso extremo do báculo pastoral, e contentava-se com desper- tar os ânimos remissos com bofetões e pu- nhadas, incumbindo das varadas e açoutes os esbirros inferiores. E' verdade que o sys-

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tema era applicado a gente Ínfima ou a es- cravos. E até, quando estava de bom humor, o bispo limitava-se a deixar apodrecer os tei- mosos no fundo dos cárceres.

Na conjunctura em que os réus de judaismo começaram a povoar as enxovias do castello foram escolhidas para serventes dos presos uma creada do alcaide e a mulher de um mu- lato alli retido, ao qual tinham decepado as orelhas por crime de roubo. As duas serven- tes estavam possuidas da doutrina pregada pelo bispo de S. Thomé sobre a necessidade de vingar nos christãos-novos a morte do Re- demptor. Os presos eram inexoravelmente roubados: roubavam-lhes até a comida. A fome vinha associar-se-lhes aos outros mar- tyrios. Eram tão continuos os seus clamores, que o dominicano temeu lhe morressem de inedia essas victimas que destinava ás cham- mas. Foi-lhes permittido no fim de alguns mezes o serviço dos seus familiares, e que re- cebessem das mãos delles os alimentos ne- cessários á vida.

O dominicano era, pois, capaz de piedade. Tinha até accessos de bom humor, que mani- festava de modo assas expressivo. Gostava de mandar vir á sua presença mulheres casa- das e donzellas pudibundas, encerradas nos

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escuros recessos do castello de Coimbra com seus pães, irmãos ou maridos. Tractava en- tão com singular humanidade de lhes affastar do animo os tristes presentimentos, as idéas lúgubres, que as acabrunhavam, Debalde se mantinham em silencio, e recusavam ouvi-lo : não lh'o tolerava. Fazia votos para que Deus lhes multiplicasse as venturas, e protestava que sua alteza, a rainha, não podia gabar-se de ter em seus paços tantas e tão formo- sas damas. Pundonoroso em provar o seu dicto, extasiava-o a belleza dos olhos desta, as formas airosas desfoutra. Não menos o enterneciam os padecimentos do sexo frá- gil. Se alguma adoecia, ía-se-lhe assentar ao da cama, e, apesar de todas as re- sistências, pegava- lhe no braço e tomava- Ihe o pulso. Talvez para esconder as suas apprehensões acerca do estado das enfer- mas, distrahia-as, emquanto estudava o pro- gresso do mal, com observações de entende- dor acerca dos contornos mais ou menos ideaes do braço que retinha, e essas obser- vações serviam-lhe de thema a uma serie de facécias, por tal modo espirituosas, que o rubor do pejo subia ás faces das desgraça- das, reduzidas a invocar a futura justiça de Deus contra taes infâmias, visto que os seus

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naturaes vingadores jaziam, como ellas, em ferros (1).

Quando a Índole e os actos do primeiro in- quisidor de Coimbra eram estes, pôde con- jecturar-se qual seria o procedimento dos seus delegados pelo vasto território que a juris- dicção daquelle tribunal abrangia. Nenhum, porém, mais que o d'Aveiro se mostrava digno de tal chefe. Era elle o vigário da igreja de S. Miguel, conhecido pela sua dissolução. Entregue á caça, ao jogo, e publicamente amancebado, a perseguição dos christãos-no-

(1) Este paragrapho da exposição feita pelos christãos- novos a D. João iii em 1543 é assas curioso para não deixarmos de o transcrever aqui: «Prae- fatus episcopus, non advertens ad honestatem sui habitus et dignitatis, conferebat se multotiès in cas- tellum et mandabat venire coram se mulieres con- jugatas et personas honoratas, ac puellas erubes- centes sivé tímidas, et punebat se cum eis, ipsis re- nuentibus, ad aloquendum, dicendo iliis: quod Deus lUas augeret: Regina siquidem non habebat tot da- micellas et Iam pulcliras prout illic habebat: di- cendo uni quod habebat bonos óculos, et aliis quod erant benè formatae. Et si aliqua earum infirmaba- tur, ibat ad lectum, et contra illius voluntatem, as- sumebat illius brachium, dicendo illae quod volebat videre illius pulsum, subdens quod habebat brachia crassa, macra, aut carnosa prout ipse volebat, cum

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VOS veio agradavelmente distrahi-lo das suas diversões ordinárias. Apenas revestido da de- legação inquisitória, tractou de arranjar dela- tores e testemunhas. Repellido por muitos que procurou seduzir para exercerem esse odioso mister, não lhe faltou, quem o accei- tasse, tanto mais desde que recorreu ao meio, vantajosamente experimentado, de atiçar ódios pessoaes e de lisongeiar a sede da vin- gança. A pena d'excommunhão fulminada contra os que não denunciassem os actos de judaismo de que tivessem noticia deu- Ihe também delatores, e as injurias, que não poupava aos que recusavam servir-lhe de instrumentos, submetteram ao seu im- pério mais de um génio timido. Havia, comtudo, um recurso contra as violências desse homem. Era a corrupção. Mais de

aliis rebus et facetiis multum inhonestis, ex quo praefatae mulieres manebant multum verecundatae. Verum quia existebant sub ilJius domínio, non po- terante aliud íacere nisi suferre suas injurias quam honeste poterant, cúm illic non haberent cui con- querentur de hujusmodi rebus, et eandem quaere- lam habent sui mariti quoniam existentes carcerati etc.» Excessus Inquisitop. Civit. Colimbriens., Symm., vol. 32, f. 346 V. Quanto aos precedentes §§ veja-se ahi f, 332 v. e segg.

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um réu obteve a liberdade a troco de pei- tas, e até, quando as capturas dos chris- tãos- novos eram mais frequentes, a con- cubina do vigário de S. Miguel andava de casa em casa, promettendo a uns e a ou- tros que não seriam presos, se quizessem ser generosos. Accusavam-no geralmente de ter delapidado varias alfaias da igreja, de jogar as esmolas dadas para applicações pias, de ter prendido a mulher de um christão-novo, a quem devia dinheiro, para no meio do tumulto rasgar o escripto de divida; accusavam-no de mais de uma sol- licitação infame feita no confessionário, e de revelar o sigillo da confissão para che- gar aos seus fins. Como agente da Inqui- sição, como sacerdote, e até como homem, o delegado do bispo de S. Thomé era um miserável. O memorial dos hebreus portu- gueses, tractando da perseguição em Avei- ro, menciona factos que nos repugna des- crever, e que até seriam inacreditáveis, se não se invocasse naquelle memorial o tes- temunho de dezenas de individuos eccle- siasticos e seculares de todas as jerarchias. Se taes factos fossem inexactos, elles te- riam sido altamente desmentidos por essas testemunhas que se invocavam, e que os

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chrislãos-novos pediam instantemente que se ouvissem (1).

No meio dos furores da intolerância, o re- moto e o impervio de alguns districtos que, de ordinário, amda hoje como que esquecem, para o bem e para o mal, na vida administra- tiva do paiz, não eram obstáculo para a mão de ferro da tyrannia ir pesar duramente so- bre a raça que, porventura, esperava nesses districtos montanhosos e agrestes obter o es- íjuecimento de um rei fanático e de uma corte hypocrita. Os desvios da Beira oriental for- mavam, como vimos, uma parte do vasto ter- ritório dado para assolar ao dominicano D. Bernardo da Cruz. Entretido com a salvação dos encarcerados de Coimbra, o digno pre- lado não podia trabalhar com tanta actividade em manter a pureza evangélica por todos os logares commettidos ao seu apostólico zelo. Mas, ao menos, na delegação dada ao vigá- rio de S. Miguel em Aveiro mostrara que sa- bia escolher agentes que comprehendessem as suas intenções. Além disso, o supremo tribunal da ajudava-o do modo possível naquella laboriosa missão. Em 1543, quando

(1) Excessus Inqiiisitor, in Oppi(3o d'Aveiro, l.cil. foi. 348 V. e segg.

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a perseguição era mais violenta em Coimbra, um membro do conselho geral do Santo-Offi- cio, Rodrigo Gomes Pinheiro, corria os dis- trictos de Viseu e de Aveiro em perseguição do judaismo (1). As denuncias e as capturas estenderam-se em breve para a parte oriental da provincia. Numerosas famílias de chris- tãos-novos habitavam nessa epocha em Tran- coso, e é bem de crer que alli se tivessem conservado mais vivas as crenças judaicas. As scenas de violência que se passaram na- quella villa. então populosa e opulenta, foram terríveis. Apenas ahi chegou, o commissario da Inquisição mandou lançar bando prohi- bindo a saída da villa a lodos os christãos- novos e declarando que os contraventores se- riam desde logo considerados como herejes. Este bando, acompanhado das admoestações usuaes feitas dos púlpitos abaixo, chamando os fiéis a delatarem todos os suspeitos de ju- daismo e descrevendo miudamente quaes fac- tos o deviam tornar suspeitos, produziu tão viva impressão, que, longe de obedecerem, os christãos-novos fugiram immediatamente quasi todos, abandonando casa, bens e filhos. Trinta

(1) Excessus Inquisitor. Civit. Colimb., 1. cit. f. 339.

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e cinco que ficaram foram logo presos, prova evidente de que o medo dos fugitivos fora bem fundado, ou que de antemão sabiam a sorte que os esperava. A fama do que succe- dera em Trancoso soou pelos povos circum- vizinhos e gerou uma verdadeira revolta. Os camponeses das cercanias correram armados á villa em numero de quinhentos, arrastados pela esperança de poderem commetter todos os excessos á sombra do zelo religioso. »0s fugidos e presos eram ricos, as suas familias não tinham quem as protegesse, e a gentalha pôde a seu salvo perpetrar toda a sorte de violências e atrocidades. Trezentas creanças vagueiavam pelas immediações, sem abrigo, sem rumo e dispersas, chamando em alto choro por seus paea. Os trinta e cinco chris- tãos- novos que se haviam deixado prender foram arrastados até Évora, e ahi lançados nas escuras masmorras chamadas as covas da Inquisição (1).

O tribunal da fé, funccionando por este mo-

(1) Doe. da G. 2, M. 2, N.« 27, no Arch. Nac. «Oh piétá grande ! che girano in volta per le contrade disperse 300 creature íanciíilli senza governo ne al- bergo alcuno di persona vivente dando voei et gri- dando per lor padri et madri»: Ibid.

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do, era mais do que tyrannia ; era a anarchia vindo da auctoridade. Nas revoluções de ini- ciativa popular ha sempre os elementos de ordem que combalem os seus desvarios ; que, mais tarde ou mais cedo, as subjugam ou as transformam, quando caminham á ne- gação da sociedade ; quando derribam mais do que lhes cumpre derribar. Aqui eram os elementos principaes da ordem, o sacerdócio, h monarchia, b magistratura, que tumultua- vam na praça, que agitavam a plebe e a im- pelliam contra uma classe pacifica e obedien- te, que representava em grande parte, na máxima talvez, as forças económicas do paiz , era d subversão dos principios fundamen- taes da sociedade civil, subversão procla- mada em nome do evangelho. Nunca, nem antes nem depois, o christianismo foi ca- lumniado assim. Até os juizes pedaneos, que constituiam o ultimo annel da cadeia na jerarchia judicial, se erigiam de motu- proprio em commissarios da Inquisição, man- davam publicar as monitorias dos inquisi- dores, e procediam como delegados do tri- bunal. Logares houve onde as auctoridades civis superiores e os donatários das terras foram constrangidos a metter na cadeia aquel- les defensores da religião improvisados, para

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obstar de algum modo a uma completa anar- chia (1).

Se, porém, alguns officiaes públicos impe- diam ás vezes as ultimas consequências da excitação do vulgacho, outros havia, que, as- segurando-lhe a impunidade, mantinham a efficacia das causas que geravam tantos des- concertos. Na Covilhan o povo fez uma con- juração para em certo dia queimar todos os christãos-novos. Era a Inquisição reduzida á sua mais simples formula. Chegou a romper o tumulto, e a accenderem-se fogueiras diante das portas das victimas designadas. Ignora- mos como se apaziguou a desordem. Abriu devassa o ouvidor do infante D. Luiz, dona- tário da Covilhan, mterrogaram-se testemu- nhas, e verificaram-se os factos. Requereram os interessados certidão no processo. Negou- se-lhes, apesar das leis do reino. Recorreram ao tribunal supremo, que ordenou se passasse a certidão requerida. Desobedeceu-se. Queixa- ram-se os aggravados ao regedor das justiças. Este mandou então vir á sua presença os es- crivães do processo e o próprio processo. Vieram ; mas os papeis sumiram-se nas mãos

.1) Ibid.

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do chefe da magistratura. Pouco depois foi por elle chamado o procurador dos ofiendi- dos, e ordenou-se-lhe que não desse mais um passo acerca daquelle negocio. Convencidos de que não podiam esperar da sociedade nem protecção nem justiça, os christãos-novos da Covilhan abandonaram os seus lares, fugindo do reino os que tiveram para isso ensejo (1). Havia factos tão públicos, que não podiam ser negados pelos fautores da Inquisição, em- bora tentassem obscurecê-los e desculpá-los. As lyrannias, as violações do direito, do pró- prio direito excepcional inventado para os tri- bunaes da fé, os tormentos physicos e as ago- nias moraes que se curtiam no interior de lobregos calabouços, isso sim. Para os negar bastava uma pouca de impudência. Devemos hoje, porém, acreditar as negativas dos algo- zes ou os queixumes das victimas? Os inqui- sidores tinham adoptado um arbítrio, que suppunham ou fingiam suppor efficacissimo para apurar a verdade. Era servir-se da con- fissão de um réu contra outro réu, que, como tal e por se achar ligado a elles por laços moraes, devia ser- lhe favorável. Estas confis-

(1) Annolatioues Crimiiium et Excessum Inquisi- tur. per toLum Regauin, Symm., voi. 32, í". 267.

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soes exiorquiam-se com os tractos. No potro ou na polé, o filho não duvidava de accusar o pae, o marido a mulher, a mãe a filha. Accu- sariam Deus, se o inquisidor lhe desse a en- tender que semelhante accusação os livraria daquelies intoleráveis martyrios. Os christãos- novos applicavam á verificação das próprias affirmativas uma doutrina análoga. Pediam inquéritos civis , invocavam o testemunho de christãos-velhos, invocavam-no com confian- ça; citavam em favor do seu dicto sacerdo- tes, nobres, tunccionarios, magistrados, ho- mens, emfim, que por situação, por habito, por educação, por lisonja ao monarcha de- viam ser, em these, parciaes da Inquisição. O que faltava era o potro, a polé, o leito de pa- lha podre dos cárceres, a escacez do alimen- to, a noite perpetua da masmorra, para as compellir a depor deste ou daquelle modo. Esperavam apenas os perseguidos que a pro- bidade e a consciência desses indivíduos fa- lasse mais alto do que o espirito de parciali- dade, do que as preoccupações religiosas, do que o temor do despeito ou o desejo da be- nevolência do príncipe. A sua desvantagem em relação aos inquisidores, era incalculável, immensa : e todavia, as atrocidades que se perpetravam em Aveiro, em Coimbra e por

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outras partes, não pretendiam que as acredi- tassem sob sua palavra : eram por dezenas as testemunhas que citavam na larga exposi- ção dirigida a D. João iii em nome da gente da nação em 1543, documento solemne, em que ainda luz um resto de esperança na jus- tiça humana. Que pediam elles ao rei? Que practicasse este negocio com os do seu con- selho e com os grandes do reino, entre os quaes havia muitas pessoas judiciosas, pru- dentes, discretas, instruídas e de boa cons- ciência, mas que não attendesse a homens suspeitos, taes como os frades de S. Domin- gos, inimigos da raça perseguida, e cujo ódio inveterado tinha por incentivo o castigo que D. Manuel dera aos motores dos assassínios de 1506 (1). Queixando-se em especial dos desvarios ferozes do bispo de S. Thomé, sol- íicitavam apenas que se mandasse a Coimbra. á custa dos réus, qualquer individuo de san consciência e de alta jerarchia, que se infor- masse da verdade acerca de cada um dos ag- gravos que enumeravam, dando-lhes tempo para provarem plenamente aquillo sobre que restassem duvidas. Apurada a verdade, pe-

fl) Petitio Regi, na Symm., vol. 32, p. 278 v.

TOMO IH 11

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diam não a liberdade, não a reparação, mas simplesmente serem processados de novo por pessoa que respeitasse o direito e a justiça (1). Que o leitor decida se quem mentia eram os que assim supplicavam, ou os que negavam que os seus actos, practicados a occultas, na escuridão dos calabouços, fossem accordes com os que, sem pudor, sem respeito á sua res- ponsabilidade moral, practicavam á luz do dia. O que se passava nos bispados de Coim- bra, de Lamego, de Viseu e da Guarda repe- Lia-se com leves mudanças nos do Porto, Bra- ga, Évora e Lisboa. No Porto a Inquisição to- mara uma physionomia particular. A sua existência tinha-se ligado com uma questão económica. Era então bispo da diocesse o carmelita D. Fr. Balthasar Limpo, sujeito que passava por illustrado e austero, e que, con- forme se pôde ajuizar das memorias que delle nos restam e da sua correspondência, não era de certo homem vulgar. Suppomo-lo, até, sincero no seu zelo religioso. A nobre e inde- pendente linguagem com que falava ao papa sobre a reforma da igreja, e a sua isenção de opiniões no concilio de Trento provam que o

[1) Excessus Inquisitor. Civit. Colimbr. Ibid. f. 348.

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caracter do bispo do Porto era bem diverso do do bispo de S. Thomé (1). Mas o desabri- mento de D. Fr. Balthasar claramente indica um caracter impetuoso, ardente, infíexivel e absoluto nas suas opiniões. Que a uma Índole destas se associem profundos sentimentos religiosos, e ter-se-ha um fanático. A religio- sidade, ou natural, ou adquirida pela educa- ção, lançada no molde de um espirito tenaz mas suave, produz o martyr ; unida a um gé- nio irritável e audaz, produz o perseguidor. O fanatismo e a violência são inseparáveis onde a violência é possível. Quando o fanático ul- irapassa os limites do moral e do justo é porque, pervertida a razão, a consciência que se offusca lhe diz que a religião o exige. Transposta a barreira da consciência, não ha abuso ou crime a que elle não possa attingir sem ser em rigor criminoso. E' nisto que se distingue do hypocrita : é na differença de responsabilidade. Infelizmente, porém, na his-

(1) Nada, talvez, uma idéa mais clara do es- pirito de D. Fr. Balthasar Limpo do que uma longa carta sua a D. João iii datada de Roma a 7 de novembro de 1547, que se acha na G. 2, M. 5, N.o 37, no Arch Nac. e que adiante havemos de aproveitar

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toria a distincção é difficil, e ás vezes inteira- mente impossível. Na presente hypothese, de- sejaríamos bem achar plena prova da irres- ponsabilidade de D. Fr. Balthasar Limpo.

A existência da Inquisição no Porto, disse- mos nós, tinha-se ligado com uma questão económica, ou antes fora precedida por esta. O bispo concebera o desígnio de construir uma igreja no sitio onde estivera em outro tempo a synagoga, a qual era contigua ao bairro onde habitavam os christãos-novos da cidade, ou pelo menos a maioria delles. Os restos da synagoga que o bispo carmelita queria converter em igreja estavam situados na rua de S. Miguel (1), meia deshabitada, e cujos edifícios em ruínas pertenciam pela maior parte a famílias hebréas. Haviam os proprietários sollicitado naquella conjunctura que, para se restaurar e repovoar essa rua, uma das prindpaes da povoação, fossem ar- ruadas alli as lojas de tecidos de lan. Posto que resolvida favoravelmente a supplica,

(1) Não e provável, como se da narrativa, que a rua de S. Miguel no Porto uma das princi- paes, fosse a que actualmente tem este nome. De- via ser outra mais central, talvez a rua dos Mer- cadores.

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tinham- se ainda suscitado difficuldades que retardavam a execução do designio. Querendo nessa conjunctura obter recursos para a edi- ficação que tentava, o bispo convocou os christãos-novos, e pediu-lhes que declarassem a somma com que cada um se offerecia a contribuir para aquella piedosa empresa. De- clararam elles que, no estado em que as cou- sas se achavam daria cada um três ou quatro cruzados, mas que, se a pretenção que tinham chegasse á execução, construiriam elles a igreja, contribuindo para isso generosamente. Acceitou o bispo a condição ; mas as dificul- dades continuaram, e os christãos-novos, tal- vez injustamente, começaram a accusá-lo de deslealdade, e de que, longe de favorecer o negocio do arruamento, punha em segredo por obra tudo quanto era possivel para im- pedi-lo A desconfiança mutua trouxe a irri- tação : a irritação as pretensões infundadas. O bispo exigiu os recursos promettidos: os christãos-novos negaram-se positivamente a subministrá-los antes de se realisar a condi- ção que limitava a promessa. A cólera do prelado traduziu-se então em ameaças terrí- veis de vingança, e a vingança não tardou a realisar-se desproporcionada á offensa, se é que realmente a havia.

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A gente hebréa ficou aterrada, O Porto ti- nha presenceiado mais de uma scena vio- lenta, fnicto do caracter irascivel do carme- lita. O procurador dos feitos da coroa fora mandado espancar por elle, em consequên- cia de ter oíTendido certos direitos episcopaes no exercicio do seu cargo, e um sobrinho do conde da Feira, que passara pelo prelado sem se descubrir. fora por elle msultado e adver- tido de que a repetição da descortezia talvez !he custasse a vida. O ruído que fez o suc- cesso trouxe um inquérito judicial, que o car- melita só pôde impedir, supplicando a inter- venção do próprio conde da Feira. Tal era o homem que os christãos-novos tinham tido a imprudência de irritar.

O bispo do Porto sabia até onde chegavam seus direitos episcopaes; sabia que para ser inquisidor na própria diocese não precisava da auctoridade da Inquisição. Começou, por- tanto, a processar os christãos-novos. O con- celho geral não tardou a estabelecer uma de- legação sua no Porto, mas o prelado, no qual virtualmente a própria bulia de 23 de maio de 1536 reconhecia o direito de se ingerir na- quellas matérias, não se esquecia, ou resi- dindo na diocese ou na corte, de aggravar a sorte da raça proscripta, cujas queixas eram

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principalmente dirigidas contra a sua aucto- pidade. Não tardou que ao norte do Douro se repetissem as mesmas scenas de t^rannia, de espoliação e de immorf lidade que se repre- sentavam no centro e no meio-dia do reino. Eram as mesmas monstruosidades na ordem dos processo^ a mesma corrupção das tes- temunhas pelos affagos ou pelo terror, as mesmas extorsões dos agentes inferiores. A Memoria que nos serve de guia, dirigida ao míante D. Henrique acerca do procedimento da inquisição do Porto íl), não é assas ex- plicita em relação ao membros daquelle tri- bunal. O que parece é que um dos inquisido- res de Lisboa, Jorge Rodrigues, fora para alli emiado, mas que o bispo dirigia tudo. ou como principal commissario, ou pelo direito que lhe provinha da sua qualidade de dioce- sano, e pelo absoluto do seu caracter. O ódio do antigo carmelita não se limitava aos que o tinham offendido; era uma guerra de morte a toda a gente de raça hebréa. Dirigin- do-se a Mesão-frio, cuja população não exce- dia naquelle tempo a centro e trinta ou cento e quarenta habitantes, ouviu, num dia, o

(l) Excessus Inquisitorum Civitatis Portugallen- sis: Symm., vol. 32, foi. 3GÕ e segg.

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depoimento de quasi trezentas testemunhas acerca dos christãos-novos da villa, E' fácil de imaginar como as perguntas seriam feitas, como escriptas as respostas, e quantos fica- ram culpados. Em villa do Conde e Azurara passavam-se factos análogos. No Porto havia nove individuos que tinham tomado o officio de testemunhas contra o judaismo, jurando em quasi todos os processos por parte da jus- tiça. Entre elles distinguia-se uma Catharina Rodrigues, mulher publica da mais baixa es- phera, que se prostituia até a escravos. O es- crivão do tribunal, Jorge Freire, antigo rece- bedor de certas rendas da mitra, até então assas pobre, enriqueceu brevemente no novo officio, exemplo que não foi baldado para os outros officiaes. Nada disto via o bispo, a nada attendia, cego pelo rancor. A própria Catharina Rodrigues achava nesse duro e ter- rível sacerdote favor e tracto benévolo. Quando os réus, apesar de todas as difficuldades que lhes punham á própria defesa, alcançavam provar que as denuncias e depoimentos da- dos contra elles eram puras calumnias, e não havia remédio senão soltá-los, os denuncian- tes e as testemunhas falsas ficavam impunes, e se algum dos aggravados lhes movia acção nos tribunaes civis, era de novo acusado e

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preso. A parte immoderada que o bispo to- mava na decisão das causas despertou o ciúme do inquisidor Rodrigues; mas este ciúme, que noutras circumstancias poderia aproveitar aos réus, tornava-se inútil pela si- tuação relativa dos dous membros do tribu- nal. Jorge Rodrigues, velho e paralytico, posto que hábil jurisconsulto, apenas oppunha frouxa resistência ao fogoso carmelita, que, educado num convento, não tivera occasião de cursar os estudos canónicos. Assim, as sentenças 3m geral não representavam senão o voto in- competente do prelado, e o inqusidor dele- gado, quando as achava injustas, limitava-se a recusar publicá-las em audiência, ou a de- clarar no acto da publicação que o seu voto lora contrario, mas que tivera de ceder á in- flexibilidade de D. Fr. Balthasar. O promotor da Inquisição, João do Avellar. homem de costumes dissolutos, era, bem como todos os outros ministros e agentes do tribunal, crea- tura do bispo. Tinham-lhe conciliado o favor deste a violência do seu génio e o profundo rancor que manifestava contra os christãos- novos. No exercício das suas funcções, João do Avellar não reprimia aquella, nem occul- tava este. Quando lhe apresentavam um des- ses breves de protecção especial que os chris-

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tãos-DOvos costumavam comprar no mercado de Roma para se esquivarem ás atrocidades do tribunal da fé, protestava logo contra elle, chegando a ponto de dizer, escumando de raiva, que era mais fácil deixar prostituir por elrei uma filha sua, do que reconhecer a va- lidade de taes breves. As audiências e julga- mentos da Inquisição do Porto davam campo a scenas não menos apaixonadas da parte de D. Fr. Balthasar; scenas que são fáceis de imaginar, lembrando-nos de que, como era natural, aquelles que tinham suscitado a per seguição, recusando dar as sommas promet- tidas para a nova igreja, não foram dos últi- mos a entrar nos cárceres do Sancto-Officio. Henrique Luiz, um delles, foi condemnado a dez annos de reclusão; mas o bispo achou repugnância nos seus collegas a irem mais longe, e a condemná-lo a vestir o sambenito. Venceu, por fim, declarando que, se nisso ha- via injustiça, tomaria a responsabilidade delia perante Deus. Pôde suppor-se quão accesa cólera deviam excitar no seu animo as teste- munhas favoráveis aos réus, sobretudo quan- do os depoimentos eram precisos, e não achava meio de os atenuar ou de fazer titu- beiar a testemunha. Prorompia não raro &ool aífrontas contra esses que assim ousavam

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 171

contrariar os seus intuitos. Os epithetos que lhes dava de cães, de judeus mais judeus que os accusados, e o cuspir-lhes na cara eram amenidades a que Fr. Balthazar recorria ás vezes para os conduzir ao silencio. Os abu- sos dos ministros subalternos condiziam com este ódio fanático do bispo, ao qual a ce- gueira da paixão levava quasi á demência Alguns offlciaes honestos, a quem aquellas demasias repugnavam, demittiam-se dos car- gos, e por esse mesmo facto os agentes que debaixo da capa do zelo encubriam as suas ruins tenções mais facilmente podiam reali- sá-las. O primeiro escrivão do tribunal ha- via-se escusado por desgostos desta espécie, mas o que lhe succedera, membro como ellc do cabido, soubera amoldar-se melhor ás idéas do prelado. O carcereiro e o guardr. dos cárceres também pertenciam ao bandc dos zelosos. Antigo creado de D. Fr. Baltha- zar Limpo, o carcereiro escolhera um guarda que fosse instrumento da própria maldade. De concerto, os dous opprimiam por mil mo- dos os réus para lhes extorquirem dinheiro e submetterem-nos a todos os seus caprichos, fazendo ao mesmo tempo acreditar ao bispo que as suas mãos eram puras, e que o zelo os tornava rigorosos até a crueldade. A

172 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

carceragem de cada preso era de ordinário uma ou duas dobras; mas quando a riqueza, verdadeira ou supposta, de alguns delles ac- cendia a cubica do carcereiro, a taxa subia, ás vezes, a vinte. A sorte dos que não po- diam pagar era desgraçada. O guarda com- pletava por sua parte as extorções do carce- reiro. Sem dinheiro não se abriam as portas para os advogados e sollicitadores falarem aos presos, e nem sequer para entrarem nas lobregas masmorras as cousas mais necessá- rias á vida. Posto que casado, António Pires (era este o nome do chaveiro) parece que achava longas e tediosas as horas passadas nos claustros mquisitoriaes. Havia ahi duas christãs-novas, mãe e filha, julgadas já, e cuja sentença fora cárcere perpetuo com o trajo chamado sambenito. Estas mulheres estavam á mercê de António Pires, e palavras de um amor brutal soaram, acaso pela primeira vez, naquelles recessos humedecidos do suor de mil agonias. A donzella foi deshonrada. Essa infeliz, para quem na primavera dos annos tinham deixado de existir as torrentes da luz do soL, os aspectos do firmamento, os verdo- res dos bosques e campinas, a alvorada e o crepúsculo, o aroma e o matiz das flores; para quem, ao passo que, por assim dizer, se lhe

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 173

affundira ante os olhos a natureza physica, se lhe haviam aflundido também todas as espe- ranças do mundo moral, e cuja vida de dila- tados horisontes ficara povoada por dous sentimentos, o da perpetuidade do cárcere e o de saudades inúteis, devia ser bem desgra- duada! A masmorra era-lhe como pátria ado- ptiva; o sambenito vestidura e mortalha. Que pensamentos seriam os seus quando, prosti- luida, e tendo por testemunha da prostituição um amor de mãe, a consciência lhe disse que descera ainda um degrau que parecia não po- der existir na escala das misérias da vida? Em circumstancias daquellas, o coração hu- mano ou estala, ou se alevanta á terrível grandeza de um coração de demónio, Verifi- cou-se o segundo phenomeno. A victima de António Pires chegou a gloriar-se da deshon- ra, mostrando orgulho de trazer no seio o fructo de torpe adultério. Euménide no meio das suas antigas companheiras, era ella quem completava os tractos de polé e do potro, quando os esbirros davam tréguas aos mar- tyrios. A humilhação e as privações das que eram infelizes sem serem infames como que lhe refrigeravam o espirito. Os seus caprichos eram lei. A' menor desobediência, a vingança descia prompta; o feroz Aotooio Pires distri-

174 HISTORIA Da INQUISIÇÃO

buia com mão iarga os maus tractos e as in- jurias, impedia a entrada aos alimentos, e in- ventava quantas oppressões ihe suggeria o seu animo damnado. Se acreditarmos as me- morias dos christãos-novos, estes factos eram públicos no Porto. Não podia, portanto, o bispo Ignorá-los. E D. Fr. Balthasai Limpo, esse homem, que, poucos annos depois, tro- vejava no Vaticano contra 0 immensa cor- rupção de Roma; que íazia curvar 0 fronte do pontifice diante das ameaças proferidas [jor elle em nome de Deus, toleravõ os dramas repugnantes que se passavam nos calabouços da Inquisição, como se fossem uma obra pia e digna de louvor. Exem- plo tremendo dos principies a que podem arrastar-nos as três peiores paixões huma- nas, o fanatismo, a vingança, e o orgulhe insensato (!)•

Em Évora o procedimento da Inquisição, posto que regulado pelo mesmo espirito de iualevolencia implacável que dominava esta instituição nas províncias do norte, apresen- tava um caracter particular. D. João iii e o infante inquisidor-mór tinham singular predi-

1) Ihiá. pcLssim,

fflSTORlA DA INQUISIÇÃO 175

lecção pela cidade de Sertório, onde não raro residiam por mezes. O rei e a corte estavam accordes em pensamentos com os inquisido- res, mas os actos em que ás perseguições atrozes se associavam publicamente a devas- sidão, o roubo, os insultos grosseiros, os actos tumultuamos nas praças ou no tribunal não poderiam lolerá-ios. Issc sería a negação de todo o governo, e não ha governo, por mau que seja, que se negue a si próprio. A tiran- ma mesma busca a plausibilidade. As scenas de perversão infrene que se repetiam ao longe •.ornavam-se moralmente impossiveis na pre- sença de uma corte pontual, culta e oeata Aqui, a hypocrisia devia ser cauta, e o fana- tismo grave. Assim succedia Os calabouços da Inquisição d'Evora eram. como vi- mos, os mais lemidos: as covas tinham adquirido terrível celebridade Ahi as rela- ções com as pessoas de fora offereciam maiores difficuldades; essas abobadas sub- terrâneas aífogavam melhor os gemidos das victimas, e o segredo occultava com mais denso véu o que dentro se passava Era que alli se carecia de mais trevas. Dirigia a Inquisição d'Evora um castelhano, Pedro Alvares de Paredes, inquisidor que fora em Llerena, d'onde, se acreditarmos

176 aiSTORIA DA INQUISIÇÃO

as memorias dos christãos-novos (1), havia sido expulso por actos de falsificação e por outros crimes. se que o individuo fora escolhido com discernimento. Não tinha as artes de fabricar provas pró ou contra, con- forme as conveniências do negocio, mas tam- bém tinha aprendido á sua custa que a pru- dência e a astúcia deviam ser companheiras da maldade disfarçada. A longa experiência havia-lhe revelado quantos recursos cabiam na industria humana para comprometter a gente da nação em crimes de impiedade. Aos seus conselhos se attribuiam a maior parte dos horrores que se estavam practicando em Portugal. Ninguém havia tão destro em fazer confessar delictos, quer os réus os tivessem perpetrado, quer não. Um dos seus expedien- tes para obter este fim era fingir bilhetes es- eriptos em nome dos parentes dos presos e introduzi-los no pão ou nos outros alimentos

(1) Excessus Inquisitorum in Civit. Elbor., Symm., vol. 32, f. 318. A narrativa refere-se quanto aos cri- mes, pelos quaes Pedro Alvares de Paredes fora expulso da Inquisição de Llerena, publicis instru- mentis quae debent ostendi Nuntio Portugaliae insi- mui cum allegationibus eorum quae commisit post- quam exisíit in regno.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 1.77

que passavam pelas mãos dos guardas antes de entrarem nos cárceres. Nestes bilhetes, o imaginário pae, irmão, ou amigo supplicava instantemente ao réu que confessasse tudo quanto se podesse imaginar, porque sem isso a morte era certa, ao passo que uma confis- são plena, embora mais ou menos inexacta, lhe assegurava a vida. A letra desconhecida dos bilhetes não gerava suspeitas no animo do preso; porque não era natural que o offi- 310S0 conselheiro quizesse arriscar-se a metter nas mãos dos inquisidores um documento do próprio punho, se casualmente o bilhete fosse apprehendido. O outro meio que empregava para justificar todas as crueldades da Inqui- sição, todos os seus assassinios juridicos, era fingir concluidos os processos, e ler aos réus suppostas sentenças, pelas quaes ficavam re- laxados ao braço secular e condemnados á morte. Depois, quando o terror lhes desvai- rava o espirito, e o suor frio da intima agonia lhes manava da fronte, ou quando, no impeto da desesperação, se rolavam por terra, mor- dendo os punhos, e a escuma sanguinolenta lhes borbulhava nos lábios por entre os den- tes cerrados, o compassivo inquisidor alu- miava de súbito a noute daquellas almas com um clarão de esperança. A confissão que se ro.Mo III 18

l78 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

exigia delles salvá-los-hia; porque tal confis- são seria o prodromo do arrependimento. Naquella situação angustiada, qualquer réu confessaria, se o exigissem delle, ter devo- rado a lua. Era o ideal do potro e da polé; era o tracto moral. Confessavam quanto se lhes dictava. Escreviam-se estas confissões, que os confitentes firmavam. Separa va-se então dos autos a parte relativa ao supposto julgamento final e a sentença definitiva. A confissão escripta, juncta ao processo, vinha depois a servir para uma sentença verdadei- ra, e a justiça do tribunal da ficava perfei- tamente illibada. Estes expedientes poupavam as irregularidades do processo, as testemu- nhas falsas, a denegação dos meios de defesa. Pedro Alvares de Paredes era o modelo dos juizes respeitadores das formulas e da justiça. As appelações vindas do tribunal d'Evora para o infante inquisidor-mór, e deste para o conselho supremo, haviam-se tornado inúteis. Que provimento teria cabida contra um juiz typo d^integridade ? (1)

Bem como em Évora, em Lisboa o proce- dimento da Inquisição devia ser mais deco-

(1) Ibid. pasim.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 179

roso do que nas províncias remotas, assim porque também 8 corte se demorava aqui uma grande parte do anno, como porque Lisboa era a capital, o centro da civilização do paiz, 8 ò residência ordinária do núncio. Os actos do tribuna) estavam nesta cidade in- comparavelmente mais arriscados a uma ap- preciação desfavorável, e os gemidos das victimas eram mais difficeis de abafar. A In- quisição de Lisboa compunha-se de quatro inquisidores, Fr. Jorge Sanctiago, dominicano, Jorge Rodrigues, transferido em commissão para o Porto António de Leão e João de Mello. Presidia este, e póde-se dizer que era a alma do tribunal. João de Mello fora um dos primeiros escolhidos em 1536 pelo mquisi- dor-mór Fr. Diogo da Silva para membro do conselho geral O caracter moderado de Fr. Diogo da Silva não consentira ao seu as- sessor desenvolver as próprias i^idencias; mas a renuncia de Fr. Diogo, e a nomeiação do infante D Henrique para aquelle cargo deram-lhe grande preponderância. João de Mello era quem no conselho representava me- lhor o espirito da epocha; era o mais inexorá- vel inimigo da gente da nação. Como Jorge Rodrigues foi transferido para o Porto, do mesmo modo elle descera para um tribunal

180 [IISTORÍA DA INQUISIÇÃO

de primeira instancia; mas o commissario em Lisboa não tivera que submetter-se á von- tade de am prelado irascivel e impetuoso e mais perseguidor dos christãos-novos do que o próprio delegado do conselho. A actividade de João de Mello podia na sua nova situação desenvolver-se melhor do que num tribunal de recurso, e os íactos pro- varam em breve que o mquisidor-mór não se tinha enganado, collocando-c á frente da mais importante das Inquisições espe- ciaes (1).

9 chefe da Inquisição de Lisboa, conforme o que se pôde inferir das memorias que acerca delle nos restam e daquella parte dos seus actos que nos são conhecidos, era um cara- cter que, participando mais ou menos das di- versas Índoles do bispo do Porto e do inqui- sidor Pedro Alvares, não se confundia com nenhum dos dous caracteres. O seu ódio en- tranhavel contra a raça hebréa não era menor que o de D. Fr. Balthasar; mas que a cegueira do fanatismo fosse quem lh'o inspirava é para nós mais que duvidoso. Não lhe faltava certo grau de intelligencia e de saber positivo, ad-

(Ij Veja-se Sousa, De Origine Inquisit. §§ 2 e 4.

FIISTORIA DA INQUISIÇÃO 181

qnirido pelo estudo; mas faltava-lhe a auste- ridade de costumes do prelado portuense. De génio, talvez, tão violento como este, sabía-o reprimir melhor, e posto que não igualasse na sciencia de simular equanimidade e ternura o inquisidor d'Evora, tinha arte de as fingir nas occasiões em que a falta dos ademanes e es- gares pios e de uma linguagem agri-doce po- desse compromettê-lo na opinião popular. Como Pedro Alvares de Paredes, João de Mello amava a plausibilidade.

Entretanto, debaixo dos tectos da Inquisi- ção de Lislioa repetiam-se as mesmas scenas de corru[)ção e de maldade que se represen- tavam por outras partes. A dar credito aos christãos-novos, aqui o segredo era maior, maior a falta de communicações para os des- graçados que cabiam nas mãos dos inquisi- dores. Por tristes t^ infectas que fossem as famosas covas de Évora, a soledade nos cár- ceres de Lisboa era mais completa. Nem um raio de luz noctuina ou diurna transsudava jamais nessas lobregas moradas, e a única voz que por vezes ouvia qualquer novo habitante daquella espécie de sepulchros era a dos mi- nistros do tribunal, que desciam a consolá-lo para que pedisse misericórdia, asseverando-lhe que a existência das suas enormes culpas es-

182 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

tava plenamente provada (1). Se não cahia no laço e resistia constante a estas importuna- ções prolongadas, levavam-no ao logar do martyrio. Primeiro davam-lhe um tracto de polé. Se, culpado ou não, continuava a affir- mar a sua innocencia, retalhavam-lhe as plan tas dos pés, untavam-lh'as com manteiga e aproximavam-lh'as do fogo (2). Ordinariamente o resultado deste expediente era uma confis-

(1) Acerca do segredo dos cárceres é curiosa a defesa de João de Meilo (G. 2, M. 1, N.« 21) em res posta a uma consulta feita por quatro christãos-novos por ordem d'elrei, que adiante havemos de aprovei- tar. Segundo o honrado inquisidor nada havia mais accessivel do que os cárceres. O segredo durava emquanto não começava o processo (que podia tardar annos) ou quando os réus andavam em perguntas, ou estavam em confissão, ou em outros casos seme- lhantes, ou para não receberem avisos de fora, ou para elles os não darem a outrem. De resto podiam falar com quem lhes cumpria. Dir-se-hia que Beau- marchais, descrevendo espirituosamente no Figaro a liberdade de imprensa sob um governo absoluto, tivera por modelo esta singular allegaçâo de João de Mello.

(2) «et quando ea via non possunt, ponuiit eos ad torturam funis, et si cum illa non id efficiunt, inci- dunt sibi plantas pedum, et ungunt sibi cum butiro atque admovent igni»: Excessus Inquisitor. in Civi- tate Uiixbon., Symm., vol. 32. f. 289 v

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 183

são absurda, mas satisfactoria para os inqui- sidores.

A bulia de 23 de maio de 1536 auctorisava os réus para nomeiarem os seus procurado- res e advogados como entendessem. Esta livre escolha podia trazer sérios embaraços. Podia uma voz eloquente fazer soar na capi- tal a negra historia de tantas atrocidades. A Inquisição qualificou para litigarem perante ella apenas dous a três advogados dos mais obscuros Aos réus não era licito escolher senão um delles. Ajuramentados pelos inqui- sidores não para ultrapassarem nas defesas as metas que lhes eram prescriptas, esses homens, collocados entre morrerem de fome por inhabeis na sua profissão e enriquecerem á custa dos seus clientes forçados, que não sabiam nem lh'as importava salvar, reduziam as suas allegações a uma pura formalidade, a um vão symulachro de defesa. Não havia assim para o réu outra esperança senão pe- dir misericórdia. Mas qual era a condição para a obter ? Era confessar ; confessar tudo quanto se achasse contido no libello de ac- cusação, embora fosse contradictorio, absur- do, impossivel. Restava, porém, saber se na supplica de perdão guardava pontualmente o formulário prescripto ; restava calcular se o

184 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

arrependimento vinha dos lábios ou do cora- ção. A quantidade das lagrimas do suppli- cante pesava-se na balança moral dos inqui- sidores, e aquelle que tinha o coração assas de homem para as não verter pagava caro o ter os olhos enxutos no momento solemne. Reduzia-se tudo, em summa, a ficar a sorte dos culpados dependente do arbitrio dos seus julgadores. Era a jurisprudência, a dou- trina practica, a organisação completa e ir- resistível do assassinio legal.

Entre os muitos factos atrozes que se men- cionam nos vários memoriaes dos christãos- -novos, e cuja confirmação ás vezes vamos encontrar ainda hoje nos processos daquella epocha, talvez nenhuns são tão odiosos como os que se referem á Inquisição de Lisboa. Se alguns desses quadros irritam pela crueldade, outros ha que repugnam pela villania, embora lhes suppunhamos carregadas as cores nas memorias que no-los transmittiram. Entre os indivíduos que atulhavam as masmorras do Tribunal da havia uma mulher, Maria Nu- nes, accusada de judaismo. As provas contra ella faltavam, e seu marido forcejava por sal- vá-la ; mas parece que os inquisidores tinham resolvido perdê-la. Era preciso adduzir teste- munhas. Souberam achá-las. Um certo Mon-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 185

tenegro, queimado cinco annos antes, com a esperança de escapar linha culpado muitas pessoas. Entre estas figurava Maria Nunes. Conduzido, porém, ao patibulo, Montenegro declarara que as suas denuncias haviam sido falsas, e que as fizera por lhe terem promet- tido em troco delias a vida. As accusações de Montenegro poseram-se, portanto, de parte ; mas a necessidade de buscar provas contra a pobre mulher fê-las recordar, e a voz do suppliciado foi evocada contra ella. Um men- digo, habitualmente embriagado, e que meio corria as ruas da cidade, deixando, a troco de um real, que os rapazes o levassem preso por uma corda de singular maneira (1), foi a segunda testemunha. A terceira, que faltava, suppriu-se no processo com um depoimento anonymo. Era com provas taes que ás vezes se lançavam nas fogueiras réus do supposto crime de crerem no Deus de Moysés. Votada

(1) «pro auxilio deducunt quendam Petnim Alva- rez hominem quidem mendicantem, ebrium, contra quem fuit exceptum quod detegebat sua podenda, et incendebat cum illis patentibus, ac permiserat pueris pro uno regali, quem sibi tradiderunt, ut ponerent sibi laqueum in illis et ducerent eum pei- stratam». Ibid. f. 294.

186 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ao exterminio, uma família inteira, marido, mulher e filha, fora conduzida aos cárceres do Sancto-Officio. A mulher não tardou a ser queimada num auto-de-fé. O marido, fechado numa estreita masmorra e carregado de fer- ros, era atormentado diariamente para se confessar culpado, ao que o infeUz tenazmente resistia. Tentaram a filha com a esperança da liberdade para que accusasse o pae ; mas, apesar de sair apenas da puerícia, a donzella houve-se com valor. A chave do seu cala- bouço foi então entregue a um gallego, ser- vente do tribunal, única pessoa com quem lhe era permittido falar, e que entrava alli quando queria. Suspeitou-se que esse homem abusava da captiva ; mas quem poderia de- vassar taes segredos ? O processo, tanto delia como de seu pae, não se íez, e o ulterior destino das duas victimas ficou sendo um mysterio (1).

Pode imaginar-se qual seria o terror dos indivíduos da raça proscripta quando ouviam da boca de um familiar do Sancto-Officio a ordem para o acompanharem , aos cárceres do tribunal. Entrando alli, aquelles cujos

(1) Ibid. f 29Õ.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 187

ânimos eram mais fracos perdiam não raro o juizo. Dous presos conduzidos de Aveiro a Lisboa receberam taes tractos pelo caminho, possuiram-se de tal afflicção com a perspe- ctiva do futuro, que, chegando ao seu destino, estavam completamente alienados. Uma po- bre mulher, rodeiada de cinco filhinhos, o mais velho dos quaes contava apenas oito annos, conduzida á Inquisição, perguntava porque a prendiam e qual seria a sua sorte. Divertiam-se os familiares em persuadi-la de que ia ser queimada. Num accesso de loucu- ra, a desgraçada precipitou-se de uma janella abaixo, e quando a foram buscar ao pateo onde cahira, acharam-na completamente des- conjunctada. Esses terrores que cercavam aquella situação angustiada produziam o aborto quando as presas vinham gravidas (1). Nem a belleza e o pudor dos annos floridos, nem a velhice, tão digna de compaixão na mulher, eximiam o sexo mais débil da fero- cidade brutal dos suppostos defensores da religião. Havia dias em que sete ou oito eram mettidas a tormento. Essas scenas reserva- vam-nas os inquisidores para depois de jan-

(1) Ibid. f. 297e366 V.

Í88 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

lar. Serviam-lhes de pospasto. Muitas vezes^ naquelle acto, competiam uns com outros em mostrar-se apreciadores da belleza das for- mas humanas, Emquanto a desgraçada don- zella se estorcia nas dores intoleráveis dos tractos ou desmaiava na intensidade da ago- nia, um applaudia-lhe os toques angélicos do rosto, outro o fulgor dos olhos, outro os con- tornos voluptuosos do seio, outro o torneado das mãos. Nesta conjunctura os homens de sangue convertiam-se em verdadeiros artis- tas (1). E João de Mello, no vigor da mocida- de, devia achar aquellas scenas deliciosamente exquisitas.

O numero das pessoas que entraram nos cárceres de Lisboa de 1540 a 1543 nem re- motamente se pode calcular, Tinham-se cons- truido prisões especiaes para réus dejudais- mo ; mas em breve esse receptáculo de su- premas misérias ficou atulhado. Ccnverteu-se em masmorra o vasto edifício das Escholas-

(l) «ponunt illas ad torturam, septem vel oclo quoiibet die; et unus dicit «oh quae fácies judeae!» alius «oh qui ocuh alter vero «ho quaUa pectora et manus!» taiiter quod supra prandium suscipiunt illud gaudium et solatium pro recreatione suae vitae)): Ibid. f. 297 v.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 189

-geraes ; mas as novos prisões dentro em pouco se tornaram insufficientes. Os Estáos, paços reaes situados no Rocio, foram então entregues ao Sancto-Officio. Não bastaram., porém. Os edifícios públicos da capital cor- riam risco de ser transformados, uns apó? outros, em calabouços. Pararam, talvez, dian- te desta idéa ; mas a corrente de entes hu- manos que se precipitava nos antros da In- quisição não cessava. Nos pateos interiores edificaram-se umas como pocilgas para se receberem aovos hospedes (1). A frequência dos autos-de-fé devia, portanto, tornar-se em providencia hygienica. Uma epidemia podii^ surgir daquelles logares infectos, d'entre umo população empilhada em recintos sem ar e sem luz, devorada pelos padecimentos physi- cos e enfraquecida pela dor moral. A saúde publica, a boa ordem das prisões, o serviço do rei e do estado exigiam de tempos a tem- pos a reducção daquelle acervo enorme de carne humana a proporções mais razoáveis. As fogueiras dos autos-de-fé, ao passo que eram uma diversão para o povo, satisfaziam ás indicações administrativas. As cinzas dos

(1) ILid. f. 302

190 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

tnortos nem sequer occupavam um breve ispaço de terra ; porque as correntes do Tejo iam depositá-las no fundo solitário do mar. Resta-nos uma carta de João de Mello es- cripta a elrei, sem data de anno, mas que coincide com esta epocha (1). E' a descripção de um auto-de-fé, redigida no mesmo dia, e poucas horas depois daquella festa de can-

il) G. 2, M, 2, N." 40, no Archivo Nacional. A carta é original e datada de Lisboa a 14 de outu- bro. Elrei, portanto, estava íbra da capital, prova- velmente em Évora. De 15 de novembro de 1542 existe também uma carta original de D João m datada de Lisboa e dirigida ao infante D. Henrique, dando-lhe conta de um auto-de-fé que se acabava de celebrar. (Corpo Chronol.,P. 1, M. 73, N.o 16 no Arch. Nac.) Na carta de João de Mello menciona- se o supplicio da mulher e da filha de um merca- dor chamado mestre Thomaz, o que do Memorial dos christãos-novos, na Symmicta, se tinha sido anterior a 1544. Assim a carta de João de Mello é com probabilidade de 1542, sendo de crer que quei- xando-se elle do pejamento dos cárceres em 14 de outubro, se fizesse outro auto-de-fé de ahi a um mez para os despejar e que elrei viesse assistir a elle. Além disso, João de Mello allude na carta aos autos-de-fé dos annos passados em que interviera, e elle fora transferido para a Inquisição de Lisboa nos meiados de 1539. Em todo o caso a carta não pode ser posterior a 1543.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 191

nibaes. Ao tomar nas mãos o horrível docu- mento, como que nos sussurra aos ouvidos o crepitar das chammas e o murmúrio anhe- lante dos que se asphyxiam nos rolos de fumo ; como que respiramos o cheiro das carnes que se carbonisam, dos ossos que se calcinam. E' uma illusão de phantasia. O que está diante de nós é uma folha de papel, que os séculos amarelleceram, cuberta de cara- cteres legíveis e firmes, traçados por mão que não tremia, por mão que está alli reve- lando um coração de bronze. Feliz o nosso século, em que taes corações são pouco vul- gares ! O chefe da Inquisição em Lisboa co- meça por dizer a elrei que o céu estava es- plendido. Aquelle homem ousava olhar para o céu. Os dias antecedentes haviam sido pro- cellosos, e João de Mello notava essa cir- cumstancia, porque o povo acreditaria que a formosura do dia era signal do favor celeste. O préstito saiu depois das seis horas da ma- nhan da Misericórdia e dirigiu-se ao cadafal- so. A fidalguia rodeiava o clero. Os membros do tribunal da foram assentar-se ao lado do juizes do tribunal ecclesiastico da diocese. Não tardaram a chegar os sentenceiados. Eram proximamente cem, que, notava o in- quisidor faziam um préstito magnifico. Con-

192 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

duziam-nos as justiças seculares, e acompa- nhava-os a clerezia das duas parochias de Sanctiago e de S. Martinho. Chegados juncto ao cadafalso, cantou-se o hino Vent creator Spiritus. Um frade subiu ao púlpito, e orou. Devia ser o discurso um admirável tecido de blasphemias. Foi breve o frade; porque a obra talhada para aquelle dia era longa. Co- meçou a leitura das sentenças ; primeiro as de degredo e de prisão temporária, depois as de cárcere perpetuo, a final as de morte. Es- tas eram vinte. Os padecentes, sete mulheres e doze homens, foram successivamente atados ao poste fatal e assados vivos. Uma mu- lher pôde escapar ao seu horrível destino, porque, diz a carta, se mostrou verdadeira- mente arrependida, confessando melhor as suas culpas. Além disso, no entender do in- quisidor, aquelle acto de indulgência servia para provar a commiseração e brandura do tribunal. Quanto ao arrependimento dos ou- tros, esse era mais duvidoso. Tinham, em ge- ral, sido relaxados ao braço secular por ju- daisarem nos cárceres. Isto provava quanto era necessária a inflexibilidade. Advertia o inquisidor que conservava ainda aferrolhada muita gente prestes para servir em igual es- pectáculo, e que o pej amento das masmorras

HISTORIA DA LVQUISIÇÃO

era excessivo, restando, além disso, muitos réus que processar. A inferência destes factos tirá-la-hia elrei. Se naquelle dia não queimara ou não atirara para a sepultura em vida, des- tino talvez mais atroz, maior numero de in- dividuos, era que não gostava de excessos de severidade. É difficil dizer o que predo- mina naquella carta, se a hypocrisia, se a fe- rocidade. No fim delia escapa, todavia, ao inquisidor um grito de remorso. Uma cousa havia que lhe tinha feito impressão. Ao sepa- rarem-se os pães dos filhos, as mulheres dos maridos, os irmãos dos irmãos, nem uma la- gryma cahira, nem um gemido soara. A ulti- ma benção paterna, o ultimo beijo d'esposos, o ultimo e estreito abraço fraterno tinham sido silenciosos e tranquillos. Era uma tran- quillidade que o algoz não comprehendia. João de Mello devia espantar-se de ver mar- tyres e heroes. Na corte de D. João iii não era fácil encontrá-los, e elle provavelmente ignorava a historia dos primitivos christãos. Se não a ignorasse, e cresse que era verda- deira, não seria inquisidor (1).

(1) cde nenhua cousa estou tão espantado como dar nosso senhor tanta paciência em fraqueza humana, que vissem os filhos levar seus pais a

TOftioni 13

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As memorias dos christãos-novos comple- tam o quadro da carta dirigida a D. João iii (1). Se as acreditarmos, perante aquelle espectá- culo João de Mello vertia lagrymas. Aperfei- çoava assim o eíTeito que esperava tirar da súbita commiseração para com uma das vi- ctimas. No que varia o memorial dos perse- guidos é na explicação dessa inesperada pie- dade. A confissão da mulher, tão extraordi- nariamente salva, não versava sobre as pró- prias culpas ; versava sobre as alheias. Re- conduzida do patibulo aos cárceres, a penitente convertia-se em accusadora de metade dos

queimar, e as mulheres seus maridos, e huns ir- mãos aos outros, e que não ouvesse pessoa que se fallasse nem chorasse nem fizesse nenhum ou- tro movimento senão despedirem-se huns dos outros com suas benções, como que se partissem para tornar outro dia» : Carta de João de Mello, 1. cit. O inquisidor esquecia-se do que anterior- mente dissera que duvidava da contricção dos supphciados. Aqui attribue a sua admirável cons- tância á graça divina. A giria devota faz ás vezes cahir, ainda os mais habituados, em erros de theo- logia.

(1) O paragrapho allusivo a um auto-de-fé que se encontra no Excessus Inquisitor. Civit. Ulissipon. (Symm., f. 366 v. e 367) refere-se evidentemente ao de 14 de outubro.

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habitantes de Aveiro. Aquella redempção ines- perada não fora, porventura, senão uma scena preparada e prevista, um tracto moral dado á infeliz, sem deixar por isso de ser, como se colhe da carta, um embeleco para a gros- seira credulidade popular.

Em que se fundavam as sentenças de tan- tas creaturas votadas ao atroz supplicio das chammas? Em terem judaisado nos cárceres, segundo dizia o inquisidor. Mas o que diz o senso commum ? Era possível que velhos en- fraquecidos de animo e de corpo, que mães rodeiadas de filhos, que donzellas tímidas ou- sassem repetir nas masmorras, sob as chaves dos inquisidores, no meio de guardas inexo- ráveis, de espias vigilantes, actos externos de uma religião que não tinham esforço para confessar, quando interrogados acerca da sua crença ? Que ritos de judaísmo eram esses que se practicavam sem templos, sem sacer- dotes, sem formulas, sem preces? Se abrimos os processos que nos restam daquella epocha de sangue, que é o que vemos de ordinário servir de pretexto á ruína e ao extermínio de tantas famílias? O limpar candíeíros ou ves- tir roupa lavada á sexta- feira, o abster-se de certas comidas, o trabalhar ao domingo, o ignorar ou repetir mal esta ou aquella passa

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gem do catechismo, e outras cousas análogas; em parte accusações ridículas ; em parte fa- ctos mais ou menos reprehensiveis, mas que nunca se poderiam qualificar de crimes capi- tães, e que seria absurdo reputar essencial- mente inherentes á crença judaica. Gomo, pois, acreditar que esses mesmos que não ousa- vam confessar os dogmas do mosaismo, que blasphemavam delle proclamando-se chris- lãos, exposessem as vidas para conservar cerimonias e actos puramente accidentaes? Admittindo, porém, tamanho absurdo, como explicar o modo por que esses individuos morriam ? Se pelas memorias dos christãos- novos não soubéssemos que os padecentes expiravam abraçados ao crucifixo e com to- dos os signaes de christãos, a carta de João de Mello bastaria para no-lo revelar. Era, por- tanto, uma adivinhação que fazia, suspeitando que não acabavam contrictos e verdadeira- mente arrependidos. E' evidente que os actos externos dos suppliciados não o auctorisavam para ir mais longe. Um que morresse invo- cando o Deus de Moysés justificaria a Inqui- sição e os seus ministros, segundo as idéas de então. Não era facto que o inquisidor omit- tisse na sua carta. Se, porém, morriam com as exterioridades de christãos, suppor que os

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desgraçados, no trance tremendo do passo- mento, quando ni3o lhes restavam senão alguns momentos de vida, e a ponto de appa- recerem diante de Deus, mentiam a si e ao mundo, e blasphemavam da crença que ti- nham no coração e que era toda a sua espe- rança futura, sem um único interesse em conservar a mascara hypocrita de simulado christianismo, é uma idéa tão extravagante, que seria infallivel prova de loucura o refu- tá-la seriamente (1).

Depois do precedente extracto da carta de João de Mello e das reflexões que ella sug- gere fora inútil multiplicar os exemplos, que aliás abundam nas memorias dos christãos- novos, das violências e atrocidades que, de- baixo de apparente regularidade, se practica- vam na Inquisição de Lisboa. Advertiremos que o homem cuja Índole e cujas idéas se revelam naquelle documento era o mais in- fluente entre todos os inquisidores, e que, de-

(1) Este argumento acha-se repetido em mais de uma allegação dos ciiristãos-novos, com maior ou menor perspicuidade. Como é de suppor, os defen- sores da Inquisição nas suas apologias ou o mette- ram no escuro, ou replicaram deploravelmente: nem outra cousa era possível.

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baixo das apparencias de justiça, a vida ou a morte de qualquer encarcerado dependia pura e simplesmente do seu alvedrio. Para obrigar o accusado a confessar-se criminoso tinha os tractos physicos e a coação moral ; tinha os expedientes de Paredes e os que lhe inspirava a própria inventiva. Logo, porém, que o réu confessava, todos os caminhos de salvação ficavam fechados a este, menos o de pedir misericórdia, e em tal conjunctura João de Mello nada perdia em ser misericordioso. O perdão importava sempre uma retenção mais ou menos dilatada nos cárceres, para a peni- tencia de culpas que o próprio accusado re- conhecera existirem. Desde esse momento, o penitenciado equivalia a uma rez, a uma peça de caça, que João de Mello podia quando quizesse enviar ao matadouro para despejar os seus estábulos. Reduzia-se tudo a um pro- cesso de reincidência, em que os accusadores e as testemunhas únicas de accusação ou de defesa eram forçosamente os guardas e ser- ventes dos cárceres, creados e familiares do inquisidor. A reincidência manifestava-se em qualquer acto indiferente, como vestir ou dei- xar de vestir roupa lavada neste ou naquelle dia. Então o criminoso, uma vez confesso, convertia-se em relapso, e para os relapsos a

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pena legal era a fogueira. Debalde se appe- lava do tribunal para o infante inquisidor-mór, ou deste para o conselho. O infante rejeitava a appelação, porque, a sua confiança naquelle homem era illimitada, e no conselho, a que João de Mello também pertencia, quem terió bastante audácia para reprovar o procedi- mento daquelle de quem tudo confiavam o infante e até o próprio rei (1)?

A estes factos, que ainda guardavam, ao menos pelas formulas, um symulachro de or- dem, associavam-se outros francamente bru- taes, mas que aos olhos do vulgo se cohones- tavam como resultado do zelo religioso. Con- forme vimos em outro logar, a torrente da emigração era continua e caudal, e dirigia-se em boa parte para os Paizes-baixos, o que bastaria para explicar o favor que em Car- los V achavam os loucos esforços do cunhado para destruir a classe mais rica e mais indus- triosa dos próprios estados. As cidades com- merciaes de Flandres offereciam aos chris- tãos-novos portugueses, não um refugio contra a intolerância, mas também um thea- tro adequado á sua industriosa actividade.

(1) Excessus Inquisitor. Civit. Ulissip. passim, 1. cit., signanter, f. 3(30 e segg.

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Muitos, mais previdentes ou menos aífectuo- sos para com a pátria, haviam com tempo buscado ai li a segurança e a paz que a terra natal lhes não promettia. A prosperidade e a opulência, que lhes douravam os dias do des- terro, eram um incitamento irresistivel para os que tinham esperado a firme o estou- rar da tempestade. Embarcar de Lisboa para um porto de Flandres não era, porém, o mes- mo que dirigir- se á Itália ; não havia o pre- texto de ir a Roma sollicitar o favor ou a jus- tiça da apostólica para um parente ou um amigo perseguidos ; e a urgência de negócios nem sempre, nem para todos era explicação plausivel. Fiado na protecção da corte, João de Mello julgou, portanto, dever por si mes- mo pôr cobro no abuso da emigração. Em- bora o incommodasse o pej amento dos cár- ceres, tinha receitas mais heróicas para reme- diar esse inconveniente do que soffrer que lhe escapassem incólumes algumas victimas possiveis. Acompanhado de um collega e ro- deiado dos familiares e esbirros, viam-no ás vezes entrar de súbito em um navio prestes a desfraldar as velas. Não tardava a sair, tra- zendo maniatados alguns christãos-novos, que ainda não eram réus, mas que podiam vir a sê-lo, e que preventivamente se lançavam nas

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masmorras do Sancto-Offiçio- A noticia des- tas prisões animava o povo a practicar actos análogos contra esses homens que lhe tinham ensinado a detestar. Assim, mais de uma vez aconteceu verem-se repentinamente presos pelos camponeses e conduzidos á cidade, sob pretexto de que pretendiam fugir, christãos- novos conhecidos pela sua fortuna ou pelas suas qualificações que se atreviam a sair de Lisboa e alongar pelas cercanias (1).

O quadro que extrahimos, assim do Memo- rial e das narrativas e documentos que o acompanham, como de outros que lhe são correlativos, é apenas um esboço desenhado com traços soltos. Omittimos numerosos fa- ctos, que talvez lhe avivariam as cores e lhe tornariam os contornos mais precisos, mas que seriam demasiado minuciosos. Baste di- zer que, além de provarem a deliberação an- tecipada de exterminar a raça hebréa, levam também á evidencia que essas mesmas ga- rantias, estabelecidas na bulia de 23 de maio de 1536 e nos outros diplomas pontiticios de execução permanente, a favor dos re^tís de judaismo eram diariamente posierígtxdtxs o cs-

(l)Ibid. foi. 309-311.

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carnecidas, e que os breves relativos a indi- víduos ou a lamilias cujas causas o papa avocava a si, ou a que dava juizes especiaes, eram por via de regra illudidos, ou pela re- sistência formal da Inquisição auxiliada pelo poder civil, ou pelo temor que os juizes apos- tólicos tinham de despertar a malquerença do rei ou de seus irmãos, desempenhando a mis- são que lhes era imposta e sustentando com vigor a própria auctoridade. Accrescente-se a isto a indifferença do núncio, inteiramente submisso á vontade d'elrei, e imagine-se quão desesperada seria a situação a que os hebreus portugueses tinham chegado.

Nem este estado de cousas podia ser des- conhecido em Roma, nem delle era licito du- vidar, á vista desse acervo de factos e de provas que os procuradores dos christãos- novos apresentavam em justificação dos seus reiterados clamores. Ainda suppondo que as provisões da bulia de 23 de maio de 1536 e os acXos posteriores que a haviam modificado o^) completado fossem perfeitamente justos, nejp ess9 mesma bulia e os actos consecuti- vos íj pjl-% haviam sido respeitados. As provi- dencias do pontifice para reparar um ou outro abuso individual de que tomava conhecimento eram systematicamente ludibriadas. A respon-

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sabilidade de tão graves males recahia toda sobre elle, que, instituindo a Inquisição em Portugal, abrira largo campo aos desvarios de um ódio tanatico. Paulo iii mais de uma vez o confessara, e mais de uma vez tinha in- vocado a sua responsabilidade para repellir pretensões exaggeradas de D. João iii sobre o assumpto. A nimia condescendência que ul- timamente mostrara para com os desejos do monarcha, em vez de ensinar a moderação aos inquisidores, servira para exaltar mais as suas ruins paixões. Quando nenhuns motivos occultos movessem a cúria romana a mudar de systema, as cousas tinham emfim chegado a termos taes, que se tornava altamente escan- dalosa a espécie de indiferença e torpor em que o pontifice parecia sepultado acerca da Inquisição de Portugal.

Apesar, portanto, das diligencias de Baltha- sar de Faria para illudir os espíritos ou cor- romper as vontades, Paulo iii entendeu que era tempo de intervir de novo a favor dos he- breus portugueses. O espectáculo que Portu- gal estava dando ao mundo tornava esta re- solução mais que plausível. As considerações moraes de humanidade e justiça outras vinham associar-se de interesse material, igualmente se não mais efficazes, para mover a cúria ro-

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mana. No principio deste livro vimos quaes ellas eram: a renovada generosidade dos christãos-novos, e o despeito peia isenção quasi grosseira com que D. João iii respon- dera ás propostas relativas á mitra de Viseu, isenção que mostrava o seu ódio inextinguí- vel contra D. Miguel da Silva, a quem, aliás, o cardeal Farnese continuava a proteger mais ou menos disfarçadamente. Tomou-se a final a resolução de intervir e de verificar os factos cuja negra historia se repetia diariamente em Roma. O núncio bispo de Bergamo não era, porém, o homem próprio para isso na situa- ção subserviente em que se collocara, nem é provável que os christãos-novos o acceitassem para defensor. Foi pois escolhido para o subs- tituir João Ricci de Montepoliziano, clérigo da camará apostólica e mordomo do cardeal Far- nese. Tanto este como o papa occultaram a Balthasar de Faria os verdadeiros fins da- quella nomeiação, c parece que chegaram a convencê-lo de que, se era possivel, o novo núncio seria nas mãos de D. João iii um ins- trumento ainda mais dócil do que o seu ante- cessor (1). A acquiescencia do agente d'elrei

(1) C. de B. de Faria a elrei de 12 de junho de ÍÍ544, G. 2, M. 5, N.o 43 no Arch. Nac. Existem bre-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 205

era um argumento que se deixava em reserva para as inevitáveis discussões futuras.

A corte de Lisboa não se illudiu, porém, com as informações que a este respeito lhe dava Balthasar de Faria, talvez por saber de mais segura origem que a substituição do re- presentante pontifício não era tão indifferenle como se antolhava ao procurador da Inquisi- ção em Roma. Assim, cuidou desde logo em prevenir-se para aparar o golpe. Era porven tura o ultimo combate que havia a vencer, e em que a victoria, acabando de levar a desa- nimação aos arraiaes adversos, podia fixar de uma vez para sempre a sorte, ainda até certo ponto dúbia, do tribunal da fé.

ves de recommendação a favor do núncio Ricci oi- rígidos aos infantes D. Luiz e D. Henrique datados de 27 de junho de 1544 no M. 36 de Bulias N.* 75 6 M. 37, N.° 53 no Arch. Nac. Uma copia em vulgar do breve de crença de João Ricci, bispo eleito sy- pontino, datado de 27 de junho de 1544, acha-se m Collecção de Sr. Moreira, Quad. 2 in fine.

LIVRO IX

LIVRO IX

Prohibe-se a entrada no reino ao núncio Ricci. Ex- plicações e promessas deste. iJá-se-lhe a permis- são de entrar, debaixo de certas condições restri- ctas, que eile não acceita. Breve de 22 de setembro de 1544 mandando suspender a Inquisição. Proce- dimento audaz do núncio Lippomano. Enviatura de Simão da Veiga a Roma. Carta d'elrei a Paulo iii. Suspeitas contra Balthasar de Fana. Expedien- tes para conciliar os ânimos na cúria romana. Breve de 16 de junho de 1545 em resposta á carta d'elrei. Renovação das negociações amigáveis. Traniacção. Entrada do núncio Ricci. Procedi- mento irritante deste em Lisboa. Apresenta aelrei o breve de 16 de junho. Réplica frouxa áquelle singular documento. Novas phases da lucta. Propostas e acordos ignóbeis. Difficuldades pro- cedidas da parcialidade ostensiva de Ricci a favor dos christãos-novos. Resoluções apresentadas mu- tuamente pelas duas cortes acerca do estabeleci- mento definitivo da Inquisição. Simão da Veiga parte para Portugal com a ultima decisão do papa, e morre no caminho. Elrei recebe mal aquella decisão, não na substancia, mas nos accidentes. roMO III 14

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Nota enérgica ao núncio, e demonstrações de des- gosto dirigidas a Balthasar de Faria. Parecer notável de quatro christãos-novos dado a elrei sobre o modo de remover as resistências ao esta- belecimento do tribunal da fé. Os inquisidores re- batem as propostas dos quatros hebreus. Pro- babilidades de um triumpho completo para os fautores da Inquisição.

A noticia da vinda de Ricci, eleito, segundo parece, nesta conjunctura arcebispo sypontino, era acompanhada dos usuaes commentarios, commentarios que o procedimento anterior da curia romana infelizmente ju -ti ficava. O pró- prio governo cria, ou fingia crer, a respeito delle o que correra de plano a respeito do bispo de Bergamo, isto é, que vinha comprado pelos christãos-novos (1). O systema que desde logo se adoptou foi o da moderação e firmeza. Escreveu-se a D. Christovam de Castro, deão da capella da infanta D. Maria, mulher do principe D. Philippe de Castella, que se fosse encontrar a Valladolid com o arcebispo sy- pontino, e que da parte d'elrei lhe dissesse que, constando não ser simplesmente a sua missão substituir o núncio Luiz Lippomano,

(1) Instrucções ou Memoria da Collecç. de S. Vi- cente, vol. 3, foi. 140 e segg.

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mas também embaraçar a acção do tribunal da fé, sua alteza o advertia de que não era possivel consentir na sua entrada em Portu- gal, e lhe pedia que sobrestivesse na viagem até que o pontifice respondesse definitiva- mente ás considerações que ainda uma vez lhe iam ser submettidas a este respeito. Não tardou a resposta. Montepoliziano protestava que as informações dadas a elrei eram inexa- ctas; que o fim da sua enviatura, além da su- bstituição de Lippomano, era unicamente tra- ctar da reunião do futuro concilio; que, na verdade, vinha incumbido de lhe fazer algu- mas communicações relativas á questão do cardeal de Viseu e á Inquisição, mas que de nenhum modo queria intervir nos actos desta e que, ainda antes de sair de Roma, sendo sollicitado pelos agentes dos christãos-novos para usar da sua auctoridade a favor delles, o havia formalmente recusado; que, todavia, para obedecer a sua alteza, se demoraria em Castella emquanto se lhe não ordenasse o contrario (1).

Estas declarações de Montepoliziano eram tão conciliadoras, que a insistência da corte

(1) Ibid. Cartas d'elrei a D. Christovam na G. 13, M. 8, N.o 1 e G. 2, M. 2, N.o 57, no Arch. Nac.

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de Portugal em lhe prohibir a entrada no reino, quando elle asseverava que o seu pro- cedimento não podia ser diverso do de Lip- pomano, e quando este, nomeiado coadjutor do bispo de Verona, tinha necessariamente de largar o cargo para ir administrar aquella diocese, seria uma prova de que absoluta- mente se não queria em Lisboa um represen- tante do pontífice, embora elle se abstivesse de intervir nos negócios do tribunal da fé, como o coadjutor de Verona até então o fi- zera. Expediu-se, portanto, um correio a D. Christovam de Castro com uma carta d'elrei para o novo núncio, na qual se lhe significava que, vistas as suas explicações, e suppondo que seguiria o exemplo do seu antecessor, cessavam todos os obstáculos á sua entrada no reino. Aquella resolução foi igualmente communicada ao bispo coadjutor de Verona (1).

(1) Ibid. As instrucções ou Memoria da Collecç. de S. Vicente não parecem assas correctas na relação destes successos, affirmando que, depois de mandar suspender a entrada de Ricci, elrei escrevera ao papa contra esta practica de enviar núncios a Por- tugal, e que, respondendo entretanto Ricci o que fica substanciado no texto, se lhe permittira a entrada. Nem na correspondência original para Balthasar de Faria, nem nos documentos da Torre do Tombo se

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O que parece resultar destes lactes e dos que subsequentemente occorreram é que tanto o delegado pontifício como elrei tinham feito o seu calculo. O primeiro esperava remover em parte os embaraços que devia encontrar no desempenho da sua missão, atenuando a principio a importância delia e inculcando que se tractava apenas de uma substituição de núncio : o segundo, que provavelmente ti- nha noticias mais exactas sobre a missão de Ricci do que as dadas por Balthasar de Fa- ria, queria evidentemente collocar o novo nún- cio na alternativa ou de não a cumprir, tor- nando-se inútil a sua vinda, ou de se conservar em Hespanha, deixando a Inquisição ainda mais desaíTrontada, se era possível, do que até ahi estivera. A permissão que dava a Mon- tepoliziano, acompanhada da condição de se- rem os seus actos regulados precisamente pelo anterior proceder do bispo de Bergamo,

encontra o menor vesligio dessas reclamações em Roma. Pelo contrario, da carta d'elrei para B. de Faria de 26 de dezembro de 1545 (aliás 154i por ser posterior a 25 de dezembro) se deduz que nem uma palavra se havia escripto sobre lai assumpto ao agente em Roma desde a chegada de Montcpolizinno até esta data (Corresp. de B. de Faria na Biblioth. da Ajuda, f. 84)

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punha em grande perplexidade o novo nún- cio, que esperava, talvez, que D. João iii se contentasse com a sua resposta, na verdade obsequiosa, mas assas vaga para dar campo depois ás interpretações e aos expedientes em que era tão fértil a diplomacia romana.

Passava-se isto nos últimos mezes de 1544. Apesar da permissão communicada a Monte- poliziano por D. Christovam de Castro, elle Qão se dirigira á corte de Portugal. As res- Lricções que se lhe impunham e, provavel- mente, ordens mais terminantes de Roma obrigavam-no a desmentir as próprias pala- vras. Em tal situação, era forçoso tirar a mascara. De feito o coadjutor de Verona re- cebeu inesperadamente um correio enviado pelo seu futuro successor com communica- ções importantes. Paulo in expedira a 22 de setembro um breve, que Luiz Lippomano de- via intimar aos prelados e aos inquisidores e mandar affixar nas portas da de Lisboa e de qualquer outra do reino. Era o conteúdo do breve que, tendo sido enviado o arcebispo eleito sypontino para averiguar até que ponto tinham fundamento as altas queixas alevan- tadas em Roma contra a Inquisição de Por- tugal, se não desse á execução sentença al- guma definitiva do tribnual antes da sua

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chegada, e que nos processos pendentes ou intentados de novo se procedesse em tudo do modo ordinário, menos a julgamento final até que o pontifice fosse devidamente informado do estado da questão pelo novo núncio. Esta resolução era sanccionada com as penas de excommunhão e interdicto contra quaesquer individuos que directa ou indirectamente po- sessem obstáculo ao cumprimento dos man- datos apostólicos (1).

É de crer que o breve de 22 de setembro fosse acompanhado de instrucções particula- res para Luiz Lippomano. Este homem, até ahi tão moderado, ou antes tão indifferente a tudo quanto dizia respeito á Inquisição, pos- suiu-se de repente de um vigor inesperado. A corte achava-se em Évora. O primeiro acto do núncio foi intimar ao infante inquisidor- mór as inopinadas determinações do ponti- fice, mandando depois affixar copias authen- ticas do breve nas portas das cathedraes d'Evora, de Lisboa e de Coimbra. Foi depois de practicar estes actos de auctoridade, que deu conta a elrei das resoluções do papa e de

(1) Breve Cúm nuper dilecéum de 22 de setem- bro de 1544 na G. 2, M. 1, N.° 45, no Arch. Nac.

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qae, na parte que lhe tocava, ellas estavam cumpridas (1).

O effeito moral deste procedimento audaz devia ser tanto mais profundo, quando menos era de esperar do homem que o tivera. O pri- meiro Ímpeto de D. João iii foi mandar sair do reino Luiz Lippomano, e prohibir expres- samente a entrada de Ricci, não obstante ha- ver-se-lhe expedido a permissão para a rea- lisar. Acalmada, porém, a irritação momentâ- nea, entendeu- se que era melhor proceder com vigor, mas com prudência (2). Sobresteve-se na expulsão de Lippomano, e enviaram-se or- dens a D. Christovam de Castro para que avisasse o arcebispo sypontino de que eirei se via obrigado a manter por emquanto a pri- meira resolução acerca da sua entrada no rei- no. Depois do que se passara com o bispo de Verona, de nenhum modo podia ser elle ad- mittido sem explicações do pontifice, a quem se mandaria um agente especialmente encar- regado de tractar aquelle assumpto. Escre- vendo em particular ao imperador, D. João iii

(1) Instrucç. ou Memor. na Collecç. de S. Vicente, 1. cit. C. de D. João iii a B. de Faria de 25 de de- zembro de 1544 na Corresp. de B. de Faria, f. 76.

(2) Instrucç. ou Memor. de S. Vicente, J. cit.

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ordenou a D. Christovam de Castro que desse conta do successo a varias personagens da corte de Castella, fazendo-lhes sentir quanto era justo o resentimenlo que em Portugal produzira aquelle impensado successo.

Em harmonia com o que se acabava de communicar a Montepoliziano tomou- se a re- solução de se enviar a Roma um agente ex- traordinário encarregado de entregar ao papa uma carta d elrei concebida em termos enér- gicos, na qual se pintava ao vivo o profundo desgosto que no seu animo tinham produzido, não as providencias contidas no breve de 22 de setembro, mas também o modo como o núncio Lippomano procedera em tal con- junctura. Simão da Veiga, de quem elrei muito fiava, foi escolhido para aquella missão, acerca da qual se lhe deram as instrucções necessá- rias. Resumia-se nestas a matéria da carta que se dirigia ao pontifice, e previam-se os diversos resultados que ella podia ter. Se o papa não concedesse senão parte do que elrei ahi pedia em satisfação de seus aggravos, não devia acceitar essa concessão, declarando que não estava para isso auctorisado. Com- municaria para Lisboa o occorrido, e espera- ria pela decisão final. Se a recusa, porém, fosse absoluta, deviam, elle ou Balthasar de

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Faria, ou ambos junctos, dar conhecimento da questão áquelles cardeaes a quem pare- cesse conveniente dá-lo, annunciando-lhes a intenção de fazer propor o negocio em con- sistório. Suppondo que o papa não se mo- vesse com esta ameaça, feita de um modo in- directo, deviam fazê-la elles ao próprio ponti- fice, pedindo-lhe licença para cumprirem as ordens terminantes que tinham de fazer ler na assembléa dos cardeaes a carta do seu so- berano, no caso de ser a resposta a esta uma completa denegação de justiça. Tinha elrei ra- zões de crer que o papa não deixaria ir as cousas tão longe ; mas, quando assim succe- desse, a ameaça seria cumprida. Dado este ultimo passo, Simão da Veiga exigiria uma certidão de haver communicado aquelle do- cumento ao coUegio dos cardeaes e, obtida a certidão, ou ainda sendo-lhe negada, sairia immediatamente de Roma [i).

Numa instrucção separada recommenda- va-se, porém, que na audiência do papa, Bal- thasar de Faria, fingindo-se indiscreto, offere- cesse mostrar aquelFoutra instrucção, e que,

(1) Instrucç. ou Memor. de S. Vicente, 1. cit. Minuta das Instrucções a Simão da Veiga : Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 1.*» in pvincip.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 219

tanto elle como Simão da Veiga, repetissem o seu conteúdo, com igual indiscrição, a todas as pessoas que podessem prever as conse- quências das ordens terminantes que encer- rava. Não devia Simão da Veiga dar-se por satisfeito sem a revogação do breve de 22 de setembro, a concessão pura e simples da In- quisição conforme o direito commum, a re- ducção da nunciatura aos limites em que a exercera Lippomano e a abstenção absoluta do papa em intervir a favor de D. Miguel da Silva. Taes eram as definitivas exigências d'elrei, ordenando-se aos dous dessem a en- tender geralmente que, não sendo ellas satis- feitas, nunca Montepoliziano entraria em Por- tugal, e seria, provavelmente, expulso o coadju- tor de Verona. Todavia, e apesar da primeira instrucção, Simão da Veiga não devia em caso nenhum retirar-se de Roma sem escrever a elrei e receber de Portugal ulteriores commu- nicações (1).

A carta para o papa, datada de 13 de ja- neiro, era um longo arrazoado em que se re- memoravam todos os factos anteriores rela-

(1) Appenso ás Instrucçòes de Simão da Veiga : Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 7.° in princip.

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tivos á conversão dos hebreus, ao estabeleci- mento da Inquisição, ao proceder desta e ao delrei, e ás resistências que se haviam sus- citado. Em toda essa longa Iliada houvera da parte do principe, de seu irmão D. Henri- que e dos inquisidores zelo de religião, des- prezo de proveitos mundanos, abnegação, ca- ridade, brandura, sacrifícios; da parte de Roma tibieza, instabilidade, corrupção de mi- nistros, favor para os sacrilegos, esqueci- mento dos interesses da fé; da parte dos con- versos, ingratidão, calumnias, dissimulação, impiedade, vinganças atrozes. Se nessa terri- vel lucta de vinte annos havia victimas que deplorar era no grupo que prendia, que pro- cessava, que atormentava, que sentenciava, que sepultava em cárceres perpétuos, que queimava, que negava ás cinzas dos mortos uma sepultura christan, e que nem sequer to- lerava aos perseguidos a triste redempção do desterro. Quasi até o fim, este notável docu- mento é um estudo curioso dos recursos que a longa practica pôde subministrar á hypo- crisia; collecção completa de todas as for- mulas devotas, de todas as pias irritações, de todas as humildades insolentes, com que um zelo fingido sabe tecer a sua linguagem e mascarar ruins paixões. E' quasi ao con-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 221

cluir que ao auctor daquelle singular papel escapam phrases de mal reprimida ironia, as quaes terminara num rugido semelhante ao do tigre cjue lambe alegre as garras, saciado de sangue e carniça. O rei perguntava ao pontifice se elle esperava que o novo núncio o informasse melhor do que o antigo. Suppu- nha-se que Ricci vinha prevenido a favor dos christãos-novos, e essa presumpção tomava em Portugal maior plausibilidade pelo alvo- roço com que os interessados esperavam sua vinda. Na verdade devia reputar-se exempto de corrupção um homem que sua sanctidade tinha em tão subida conta; mas seria mais digno de confiança que esse homem, que se propunha agora estudar a questão, do cfue elle rei, que tantos annos havia a estudava ? Se Montepoliziano vinha porque o núncio actual e os seus predecessores não tinham infor- mado bem a corte de Roma, que nelles de- positava inteira confiança, isso provava a inu- tilidade de os ter em Portugal. Em tal caso, o papa devia convir em que se acabasse com a nunciatura, como tantas vezes lhe fora pe- dido. «Entretanto, o escândalo que se temia accrescentava a carta contra a sancta In- quisição parece ter sido prevenido pelo juizo de Deus. O breve de 22 de setembro, nego-

222 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ceiado em parte para salvar os réus senten- ciados em Lisboa, como remédio chegou tarde» f Vê-se que o rei e a Inquisição, re- ceiosos da missão de Montepoliziano, tmhami de prevenção, reduzido h cinzas todos os desgraçados que elle podia salvar. E o rei, blasphemando da Providencia, converti-a em da própria atrocidade. Depois, ponderando os inconvenientes da entrada do núncio e da execução do ultimo breve, pedia ao papa a revogação deste, e justificava por esses in- convenientes a resolução que tomara acerca do delegado apostólico. Pedia, por fim, como reparação de oíTensas tão repetidas, o esta- belecimento definitivo da Inquisição com as condições d'existencia que tinha por toda a parte, de modo que ella podesse proceder com plena liberdade, e terminava, depois de mil protestos de affecto filial ao supremo pas- tor e de obediência rendida aos mandados apostólicos, por ameaças assas explicitas: «Se vossa sanctidade não prover neste caso como deve e como espero, não poderei dei- xar de dar eu o remédio, confiando não somente em que vossa sanctidade me terá por sem culpa do que succeder, mas tam- bém que o commum dos fiéis e os princi- pios christãos reconheçam que não fui eu

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 223

quem deu causa aos males que possam so- brevir» (1).

Escreveu-se na mesma conjunctura a Bal- thasar de Faria, com quem, segundo parece, elrei estava irritado. Tinham-se recebido in- formações pouco favoráveis ao procurador da Inquisição. Dizia-se que, não elle conviera na vinda de Montepoliziano, mas até na ex- pedição do breve de 22 de setembro, facto na verdade inexplicável. Escrevendo ao seu agen- te, elrei mostrava duvidar de taes boatos, e os motivos que dava para essa equivaliam a amargas reprehensões, a ser verdade o que se dizia. O facto, porém, era que o cardeal Farnese, remettendo aquelle breve a Monte- poliziano, lhe aífirmara que fora expedido com a annuencia do agente português. Elrei esperava que este lhe explicasse tão singular mysterio (2).

A inesperada frouxidão de Balthasar de Fa

(1) Minuta da carta de D. João iii ao papa de 13 de janeiro de 1545 na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. i." in Jjne. A minuta não tem data, mas esta consta da resposta de Paulo ni que adiante havemos de ci- tar.

(2) C. d'elrei para B. de Faria de 26 de janeiro de 1545 na Corresp. de B. de Faria, í' 84.

224 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ria, cuja causa a corrupção dos tempos faz suspeitar, e a morte do cardeal Santiquatro, do homem que mais lealmente servira por muitos annos ao rei de Portugal, explicam em parte o bom resultado que os esforços dos christãos-novos acabavam de conseguir. Santi- quatro fallecera em outubro de 1544, e o pro- tectorado de Portugal vagara. Era cargo que muitos ambicionavam, não pela importân- cia que dava na cúria o ser protector desta ou daquella potencia catholica, mas também pelos proventos materiaes que d'ahi resulta- vam (1). O deixar em suspenso a escolha do successor era meio poderoso de conciliar be- nevolencias numa conjunctura em que tão necessárias se tornavam, visto que, conforme as instrucções dadas a Simão da Veiga, o ne- gocio da Inquisição poderia ser levado ao con-

(1) Existem attlda duas minutas da carta prece- dente (CoUecç. do Sr. Moreira, Quad. 7 m médio). Na que parece ser a primeira lia um paragrapho em que se allude á morte de Santiquatro e a propostas de Faria acerca do successor. Elrei ordena-lhe que diga que não lhe respondeu sobre isso, procedendo a informações sobre qual convirá mais escolher. Este paragrapho foi supprimido na outra minuta e na copia expedida, acaso porque destinaram a ma- téria para carta especial.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 225

sistorio. Para predispor ainda melhor os âni- mos, escreveu-se uma espécie de circular a dez cardeaes de maior confiança, e deram-se a Simão da Veiga mais três exemplares delia com os subscriptos em branco, para serem endereçados a alguns outros membros do sacro collegio aos quaes fosse conveniente li- songeiar (1). Ao cardeal Farnese dirigiu-se, porém, uma carta especial, em que elrei lhe significava o profundo desgosto que lhe cau- sara o breve de 22 de setembro e os actos practicados pelo eleito de Verona. A expedi- ção daquelle breve magoava-o tanto mais, quanto era certo que devia ter passado pelas mãos do cardeal, como ministro de seu avô, e que os protestos de benevolência delle rece- bidos o faziam até ahi acreditar que nunca teria consentido em resoluções, que, redun- dando em desserviço de Deus, não podiam deixar de ser, para elle rei, uma gravissima offensa (2). Com os elementos que se preparavam para

(1) Minuta desta espécie de circular na CoJJecç. do Sr. Moreira, Quad. 7 in médio. Numa nota da mi- nuta se diz que se expediram as dez, e as ires em branco.

(2) Minuta da carta ao cardeal Farnese, ibid.

TOMO Hl 15

226 fflSTORIA DA INQUISIÇÃO

combater a preponderância que os christãos- novos haviam tornado a adquirir na cúria, e com as demonstrações de firmeza que o poder civil dava ao papa, era difficultoso que o ani- mo deste e dos seus ministros não vacillasse. A irritação da corte de Portugal tomava um caracter assas grave. A prohibição da entrada do novo núncio, acompanhada da ameaça de fazer sair de Lisboa o bispo eleito de Verona, era um aresto que não convinha deixar na historia das relações diplomáticas entre as duas cortes. E' certo, porém, que, apesar de todos os elementos que se haviam colligido para assegurar êxito feliz á negociação, Roma entendeu que, diante da altivez com que o as- sumpto era tractado e da linguagem aspér- rima da carta dirigida por D. João iii ao pon- tifice, deveria manter, ao menos na apparencia, a própria dignidade, recusando ostensivamente ceder. Gomo veremos, as negociações eram activamente conduzidas por Simão da Veiga e por Balthasar de Faria; mas, posto que tudo fizesse esperar feliz desenlace, o pontifice não podia deixar de fazer uma publica manifesta- ção de despeito. A 16 deste mez, Paulo iii expediu um breve, em que respondia no tom da dignidade offendida á carta mais que se- vera do rd de Portugal. Ponderava que as

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 227

suspeitas calumniosas que na questão dos ju- deus portugueses e da Inquisição se lançavam sobre os ministros e officiaes da cúria romana podiam ser retorquidas com igual fundamento contra os ministros e officiaes da coroa, por- que em toda a parte as funcçôes publicas acarretavam aos que as exerciam o inconve- niente da diffamação. O breve inhibitorio, pelo qual se obstara á execução de sentenças por crimes religiosos até a chegada de Ricci, não podia explicar o procedimento que se tivera com o núncio, porque esse procedimento fora anterior ao breve. Este era apenas um acto de equidade e justiça. As queixas que se fa- ziam em Roma contra a Inquisição de Portu- gal eram terriveis, e os próprios agentes d^elrei tinham convindo em que os factos se averi- guassem por intervenção do novo núncio, e se verificasse assim de que lado estava a verda- de. As instrucções dadas a Montepoliziano li- mitavam-se a este exame; mas depois da par- tida do núncio tinham recrescido novos e mais altos clamores sobre as scenas tremendas que se passavam em Portugal, onde muitos christãos-novos haviam sido pasto das cham- mas, e muitos mais, no fundo das masmorras, esperavam igual supplicio. Entendera então elle pontifice que as informações de Montepo-

HISTORIA DA ÍNQUISIÇAO

liziano sedam ama inutilidade quando lhes restasse procurá-las acerca de homens redu- zidos a cinzas. Pôr um dique a taes horrores era não obrigação sua como supremo pas- tor, mas era-o, até, como simples christão. Suspendendo a execução das sentenças, não favorecia a impunidade; porque os réus fi- cavam em poder dos inquisidores. Se fossem culpados, podiam depois ser punidos; se fos- sem innocentes, podiam ser salvos. Qualifi- cando-se de parcial tão justo procedimento, mostrava-se, porventura, mais desejo de encu- brir os erros dos juizes, do que de impor con- digno castigo aos culpados. A Inquisição era uma delegação da apostólica, e o seu obje- cto inteiramente espiritual: ninguém, portanto, podia disputar-lhe a elle papa o direito de examinar os actos dos inquisidores, e de es- cutar as queixas dos perseguidos. Em vez de o injuriar e de offender a sancta na pessoa do núncio, elrei devera ter agradecido aquelle arbitrio, se as suas intenções eram sinceras e puras. Evitava-se assim que Deus buscasse algum dia nas mãos de ambos, rei e papa, os vestígios do sangue de tantas victimas. Acerca da questão do bispo de Viseu, Paulo ni não se exprimia menos energicamente, posto que as dixitrinas que estabelecia e os factos que

HISTORIA OA INQUISIÇÃO 229

citava estivessem longe da solidez dos que in- vocava a respeito dos christãos-novos. Pondo no esquecimento as phases por que esse ne- gocio passara, o pontifice recordava-se tão somente de que elrei devera ter restituido a D. Miguel da Silva as rendas e benefícios de que o privara, ou, suppondo-o criminoso, tê-los entregado ao núncio ou a outro delegado da sancta sé. Se as provas dos seus crimes lhe tivessem sido presentes, elle papa não o teria eximido de severo castigo. Se não o fizera, fora por ignorar quaes eram os seus delictos. Mas, ainda na hypothese de ser criminoso o bispo, era á apostólica que competia dispor das rendas ecclesiasticas do bispado. Termi- nava, deplorando que neste assumpto elrei se mostrasse tão differente, não dos seus an- tepassados, mas também de si próprio, e dava a entender que, se o rei de Portugal não viesse a melhores termos, usaria para com elle de mais heróicos remédios (1).

Posto que se houvesse expedido esta ás- pera resposta a Montepoliziano para a apre-

(1) Breve Attulit ad nos de 16 de julho de 1545 no Codex Diplomai., vol. 3 (Simm., 46), p. 563.— Ver- tido em vulgar na Collecç. do Sr.. Moreira, Quad. 3. in fine.

230 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

sentar a D. João iii quando entrasse em Por- tugal, nem por isso deixavam as negociações de se ter continuado sempre. Chegou- se, até, a um accordo ; e foi ceder-se um pouco de parte a parte. O cardeal Santafiore, neto do papa, escreveu uma carta a elrei, na qual de- clarava que o pontifice tinha ultimamente re- solvido fazer a respeito da Inquisição as con- cessões sollicitadas por Simão da Veiga, em conformidade das suas instrucções ; mas que para isso era indispensável que se permittisse ao núncio Montepoliziano o livre acesso em Portugal. Esta carta era acompanhada de ou- tras de Simão da Veiga e de Ignacio de Loyo- la, o celebre fundador da companhia de Jesus, particular aíTeiçoado de D. João iii, em que se lhe assegurava que, accedendo áquella condi- ção, se chegariam a resolver de modo satis- factorio as difficuldades ainda uma vez susci- tadas ao definitivo estabelecimento da Inqui- sição (1).

Havia entre a linguagem firme e altiva do breve de 26 de junho e esta facilidade em vir

(1) Não podemos encontrar nem a carta de San- tafiore, nem a de Simão da Veiga, nem a de Loyola: mas depretxende-se o que vamos narrando das cor- respondências que adiante havemos de citar.

qilSTORIA O A (NOUISIÇÃO 231

a am accordo. presupposta a admissão do Quncio Ricci, contradicção evidente. Se o pro- cedimento do papa dependia das informações delle, 2omo podia comprometter-se a fazer uma concessão que seria, á vista das suas próprias expressões, ama flagrante injustiça, se as informações fossem desfavoráveis aos mquisidores ? Como se defenderia, quando, na phrase do breve, Deus lhe buscasse nas mãos os v^estigios do sangue de tantas victimas? As diligencias de Ignacio de Loyola, a bene- volência maior ou menor dos cardeaes a quem se escrevera, quaesquer influencias, em summa. que se movessem para minorar no animo do pontifice os eífeitos da audaz resis- tência de elrei, effeitos que se fingia durarem ainda ao expedir-se o breve de 22 de junho, não bastam para explicar a intenção manifes- tada de virem a fazer-se tão grandes conces- sões. Outras circumstancias, porém, coiicor- riam que legitimam a conjectura de que se haviam empregado meios mais efficazes para facilitar o bom desempenho de Simão da Veiga no negocio de que fora incumbido. Os factos referidos nos livos precedentes fazem por certo antever desde ao leitor de que natureza eram esses outros meios a que se recorria.

â32 HISTORIA D> INQUISIÇÃO

Temos visto ao decurso desta narrativa quanto o cárdia) Farnese, o principai minis- tro de Paulo íd seu avô, favorecia D. Miguel da Silva, as estreitas relações que a identi- dade de odios travara entre este e os chris- tãos-novos. O bispo de Viseu tinha sido sem- pre, mais ou menos ostensivamente, um tro- peço em todas as negociações sobre aquelle assumpto. Posto que de modo indirecto, já, como vimos, eírei se queixara de Farnese por causa do breve de suspensão, que levantara tamanha tempestade e que não podia ter sido expedido sem annuencia delle. Assim, os dado ao prelado português era uma causa não menos poderosa de irritação. Assim, os termos entre a corte de Lisboa e o primeiro ministro do papa não podiam ser os mais amigáveis. O figurar na negociação o cardeal Santafiore, não apparecendo o menor vestí- gio de intervir nella seu primo (1), é indicio bem claro desse mutuo desgosto* Indepen- dente de quaesquer incentivos secretos que Farnese tivesse para favorecer as pretensões dos hebreus portuguses, haviam um motivo

(1) Santafiore era neto de Paulo iii por sua filha Constanza, e Farnese era-o por seu filho Piar Lu- dovico, duque de Parma.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 233

assas serio para lhe esfriar a benevolência para com D. João iii. A longa espectativa da avultada pensão que elle sollicitava havia tan- tos annos tinha-se a final realisado em 1544, quando os clamores e esforços dos christãos- novos, atrozmente perseguidos, começavam a despertar Roma da sua indifferença. Reconhe- cera-se a opportunidade de resolver a preten- são do cardeal, impondo a pensão de três mil e duzentos cruzados annuaes, não em bens de mosteiros, conforme até ahi se tractara, mas em rendas mais seguras e bem paradas das mitras de Braga e de Coimbra. A con- cessão, porém, tinha ficado, digamos assim, nas regiões da doutrina, e até os principios de 1545 Farnese não recebera um ceitil das sommas a que se lhe assegurara ter direito desde os fins de 1543. Não devia estar o car- deal satisfeito, circumstancia que talvez expli- que em parte a recrudescência da compaixão da corte de Roma pelos hebreus portugueses. Chegadas, porém, as cousas da Inquisição a termos em que a vontade do primeiro ministro do papa podia inutilisar todos os es- forços a favor delia, D. João iii lembrou-se da divida. Não se reservaram os rendimentos das duas mitras necessários para se remir o encargo, mas até se remetteu logo o dinheiro

234 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

para Roma. E ainda a generosidade d^elrei não ficou em tão pouc-o : mandaram-se pagar mais três annos, o corrente e dous adianta- dos. O fulgor de tanto ouro devia illuminar o animo do prelado romano e varrer-lhe da consciência mais de um escrúpulo acerca da justiça e imparcialidade dos membros do tri- bunal da (1).

Aproveitou-se igualmente de um modo há- bil o óbito do cardeal Santiquatro. Havia a obter a confirmação de prelados para antigas sés vagas e a de novas erecções de bispados, de que então se tractava para satisfazer a vaidade ou a cubica daquelles individues im- portantes da corte fradesca de D. João iii, os quaes não tinha sido possivel accommodar em reformadores e provinciaes das ordens monásticas, ou que punham mais alto a mira das suas ambições. Havia também providen-

(1) Vejam-se e comparem-se as três cartas origi- naes de D. João iii para Balthasar de Faria de 13 de julho de 1544, de 16 de fevereiro de 1545 e de 5 de março do mesmo anno na Corresp. de B. de Faria, f. 62, 98, 110. Os treze mil cruzados mandados dar a Farnese equivaleriam hoje a mais de sessenta mil, calculando pela diíferença do valor do trigo o valor da moeda naquella epocha.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 235

Cias relativas a certos mosteiros opulentos, ôcerca das quaes cumpria sollicitar a appro- vação de Roma. Eram negócios que tinham de ir ao consistório. '^ cuja apresentação no conselho pontifício não era cousa que se fi- zesse de graça. As propostas desta espécie pertenciam aos cardeaes protectores das di- versas nações a que os negócios tocavam, e constituíam um dos proventos mais sólidos dos protectorados. Era por isso que o de Por- tugal se tornara extremamente importante nos meiados do século xvi. A necessidade de recorrer a Roma augmentava diariamente numa corte onde as questões e mtrigas cle- ricaes e monásticas mereciam os mais extre- mosos cuidados. Em vez, pois, de attender ás soUicitações directas ou indirectas dos que pretendiam succeder a Santiquatro, D. João m ordenou ao seu agente que offerecesse ao papa encarregar-se elle próprio das propostas, tirando d ahi os emolumentos do estylo, que nesta conjunctura tinham de ser assas avul- tados. Era um modo delicado de abrandar as asperezas do velho Paulo ni. Factos anterio- res induziam elrei a acreditar que a offerta não havia de ser mal recebida, e ao mesmo tempo esperava que o expediente fosse útil, não ás propostas de que se tractava, mas

HISTORIA DA (NQUISIÇÃO

ainda á solução dos outros negócios então pendentes na cúria (1).

Estas transacções ignóbeis precediam a ex- pedição do breve de 16 de junho. Não pas- sava aquelle breve de uma ostentação van, de uma demonstração estéril destinada a alimen- tar de futuro as esperanças dos christãos- novos por mais algum tempo ? Não queremos asseverá-lo. Na apparencia, essa resposta enér- gica á violenta missiva delrei devia trazer um completo rompimento entre as duas cortes : podia ser, porém, na realidade, apenas um véu lançado sobre os preliminares do accordo definitivo que as cartas de Roma assegura- vam, supposta a admissão do núncio Montepo- liziano. E', talvez, isto o mais provável.

ignorando a existência daquelle breve, e á vista da tão explicita declaração de Santafiore e do que lhe affiam os^rvm próprios agentes.

(1) «. . . e nestas propinas se podem montar boa soma de dinheiro, parece que o sancto padre folgará de se encarregar da proposiçam dos dictos neguo- cios como outras vezes se fez, e que aproveitará pêra os mesmos neguocios e pêra outros do meu serviço saber eJe que fojguo eu de lhe comprazer no que boamente posso»: C. d'elrei a B. de Faria de 4 de março de 1545: Gorresp. Orig. de B. de Faria, t. iOÕ.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 237

D. João III entendeu que lhe cumpria ceder na questão do núncio. Ordenou-se a D. Chris- tovam de Castro que se dirigisse a Vallado- lid, em cujas immediações o arcebispo sypon- tino se conservava, e que transmittisse a este a permissão de entrar em Portugal, debaixo da condição de exercer as funcções de núncio sem ultrapassar a meta imposta ao eleito de Verona (1). Esta resolução foi communicada para Roma, tanto a Santafiore (2) e a Ignacio de Loyola, como a Simão da Veiga e a Bal- thasar de Faria. Nessas correspondências, po- rém, insistia-se fortemente em que, tendo el- rei cedido sem a menor hesitação aos desejos manifestados pelo papa, este devia realisar sem detença as promessas feitas solemne- mente pelo cardeal seu neto (3). Estava, po-

(1) Carta d'elrei a D. Christovam de Castro na G.

2, M. 2, N.« 37.

(2) Minuta da carta regia ao cardeal Santafiore de agosto de 1545 na Collecç. do Sr. Moreira, Quad.

3. Deste documento se que o papa encarregara o neto da proposição em consistório dos negócios que elrei posera em suas mãos. Assim guardavam- se melhor as apparencias e ficavam os lucros em casa.

(3) Carta d'elrei a B. de Faria e Simão da Veiga de 13 de agosto de 1545 na Collecç. do Sr. Moreira,

238 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

rém, prevenido de antemão Balthasar de Faria a fim de que, no caso de não se chegar desde logo á conclusão naquelle negocio, fizesse to- dos os esforços a fim de que de nenhum modo no concilio, que, depois de tantas de- moras e embaraços, se ia definitivamente ajunctar, se tractasse do assumpto da Inqui- sição portuguesa, porque todos os desejos d'elrei eram que se resolvesse o negocio uni- camente entre elle e o papa. A mesma re- commendação se fizera acerca da pendência relativa ao cardeal da Silva, para aclarar a qual tinha proposto o papa commetter-se a negociação ao núncio e ao celebre Fr. João Soares, agora bispo de Coimbra, proposta que elrei estava prompto a acceitar, com tanto que dessa deplorável contenda não tomasse conhecimento o concilio (1).

Uma circumstancia extraordinária veio, po- rém, nesta conjunctura, não impedir o êxito da negociação, mas demorá-lo. Foi a ausên- cia do principal negociador, a cuja capacida-

Quad. 2 Minuta da carta a Mestre Ignacio: Ibid. Quad. 3 C. d'ekei a Simão da Veiga e a B. de Faria de 10 de agosto de 1545: Ibid.

(1) C. d'elrei a B. de Faria de 4 de agosto de 15i5 na Corr Orig. de R. de Faria, f. 122.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 239

de e energia se deviam os termos a que che- gara. A escaçez das colheitas ameaçava Por- tugal de uma daquellas fomes, ainda não ra- ras no século xvi, que vinham acompanhadas de outros flagellos, e a que mui imperfei- tos remédios sabiam achar os governos e os povos. O mais obvio era mandar comprar cereaes por conta d'elrei, no que então podia considerar -se como o granel da Europa, a Sicilia. Achou-se que o homem mais próprio para se obter bom e rápido desempenho na- quella occorrencia era Simão da Veiga. Expe- diram-se-lhe ordens que o obrigaram a partir para Palermo (1). Ficou Balthasar de Fa- ria, cuja influencia e importância não podia ter deixado de padecer quebra pelo facto de se lhe haver dado um collega mais auctorisa- do. E de feito, como veremos, as negociações entorpecidas pela saída de Simão da Veiga, dilataram-se, através de phases obscuras, até os primeiros mezes de 1546.

Entretanto Ricci de Montepoliziano trans- l^unha a fronteira nos principios de setembro de 1545 e apresenta va-se na corte de D. João ni.

(1) As corresp)ondencias acerca da compra de ce- reaes na Sicilia em 1545, acham-se principalmente na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 2.

240 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Recebido com grande distincção, recordou-se- lhe a condição de não exercer outros pode- res que não fossem os de simples núncio, to- mando por norma o procedimento que por muito tempo tivera o seu antecessor, único meio de se manter a boa harmonia. Eram, porém, diversas as intenções do arcebispo sypontino. Tendo posto nas mãos d'elrei o breve de 22 de junho, nas primeiras visitas que fez ao infante D. Henrique apresentou- Ihe a copia dos queixumes que os christãos- novos faziam, e, prometendo o infante dar-lhe explicações acerca dessas queixas, como ^ resposta se demorasse, escreveu para Roma, segundo parece, de modo pouco favorável á Inquisição. Ao mesmo tempo offerecia a elrei um memorial, em que largamente se expunham os aggravos da gente da nação, e quando fa- lava com os prelados do reino dava- lhes copia do memorial, espraiando-se em invecti- vas contra o tribunal da fé. Em breve se tor- nou evidente que a inquisição ía encontrar no novo núncio um resoluto adversário (1).

(1) Instrucç. ou Memor. na Collecç. de S. Vicente, vol. 3, f. 142 e segg.— C. d'elrei a S. da Veiga e a B. de Faria de setembro de 1545, Collecç. do Sr. Mo- reira, Quad. 4.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 241

A. politica da cúria romana mostrava-se as- sim com toda a sua habitual astúcia. Emquan- 10 as negociações que deviam terminar pela completa ruina dos hebreus portugueses ca- minhavam nas trevas para o desenlace, o re- presentante do papa ostentava em Portugal am favor exaggerado para com os persegui- dos e mantinha- lhes viva a esperança, natu- ralmente crédula. Por que preço saíam a D. João ffl as vantagens diplomáticas que obti- Qha em Roma, acabamos de vê-lo* por que preço os christãos-novos obteriam em Portu- gal a protecção do núncio podemos suspei- tá-lo, ainda não acreditando que estivesse in- leiramente vendido aos christãos-novos, como os fautores da Inquisição espalhavam. O que havia mais seno nas aggressões de Monte- poliyiano era o envolverem uma offensa pes- soal ao mfante; mas o papa trácia va ao mes- mo tempo de remediar esse inconveniente. Apesar das sentidas escusas com que eirei anteriormente regeitara para seu irmão o bar- rete cardinalicio. o pontífice elevou D. Henri- que é dignidade de cardeal. No breve em que commumcava ao monarcha a eleição do in- fante, Paulo m alludia obscuramente á repul- sa que dilatara aquella eleição e espraiava-se em elogios aos dotes de mtelligencia e de co-

TOMo ni tS

242 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ração que resplandeciam no novo eleito, elo- gios em que nos é licito duvidar um pouco da sinceridade do papa, mas que evidente- mente deviam contribuir para adoçar a irrita- ção causada pelo procedimento hostil do ar- cebispo sypontino (1).

Este seguia entretanto o caminho que pro- vavelmente lhe indicavam as suas instrucções secretas. Elrei, que a principio recusara admit- tir a exposição dos aggravos dos seus súbdi- tos de raça hebréa, tinha-a acceitado por fim da mão do núncio, e os inquisidores, a quem fora communicada, haviam respondido am- plamente a ella (2). Era, por um lado, a eter- na repetição dos factos que o leitor sobrada- mente conhece; eram, por outro, as mesmas negativas ou as mesmas apologias, repetidas mais de uma vez pelos chefes da fé. Ultra- passando as limitações com que entrara no reino, o núncio mostrava-se resolvido a ir mais longe, e, entretanto, dizia a algumas pes-

(1) Breve Quod semper de 16 de dezembro de 1545 na Symm., vol. 46 (Cod. Diplom. 3.o;, p. 595.

(2) A informação ou exposição a favor dos chris- tãos-novos acha-se na G. 2, M. 2, N.° 26, e a respos- ta dos inquisidores (a que poseram exteriormente a data errada de 1535) na mesma gaveta e maço N.» 31, no Arch. Nac.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 243

soas que, se elrei conviesse em se dar um perdão geral, o papa accederia também a que a Inquisição se estabelecesse para os delictos futuros, do mesmo modo e com a mesma or- ganisação definitiva com que existia em Cas- tella. A inferência que d'ahi se deduzia vinha a ser que o único ponto em que Ricci estava empenhado era em salvar os réus ou ainda em processo ou sentenceiados, sem lhe im- portar que depois, satisfeito este empenho, a Inquisição perseguisse ou deixasse de perse- guir os christãos-novos. Bastava isto para le- gitimar as suspeitas de que não eram moti- vos de consciência, mas de interesse que o dirigiam. O que, todavia, o tornava dobrada- mente suspeito era o muito que elle falava na sua honra e na incorruptibilidade com que sempre se houvera nos cargos que exercera em Roma (1).

Ejitretanto, é singular como, depois das

(1) «Que tevera carregos (dizia de si o nún- cio) em que se quizera poderá aver muito dinheiro, mas como sempre trfibalhou de fazer o qne devia e o que compria a sua lo ira e consciência, nunca di- nheiro o commovera a o deixar de fazer. Parece-me que começou por aqui por ver se podia tirar alguma presumpção que se podia ter áa sua vinda . . . Assi qu« parece que todo seu entento he Cazer seu

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restricções que lhe haviam sido impostas admittindo-o no reino, se lhe toleravam actos que eram quebra formal dessas restricções. Os debates entre elle e os inquisidores sobre o modo de proceder do tribunal da impor- tavam o reconhecimento tácito do seu direito de intervenção, e fora o exercido desse di- reito que absolutamente se lhe negara. Como explicar tão extranha contradicção ? A expli- cação mais plausivel é o eífeito que devia ter produzido no animo do monarcha a tardia leitura do breve de 22 de junho. A chancel- laria romana parece ter guardado acerca delle completo segredo. Ao menos não achamos vestígio de que ou D. João iii ou os seus agentes em Roma tivessem noticia antecipada daquella enérgica resposta, que fora transmit- tida a Montepoliziano, e que este apresen- tara por occasião da sua entrada. A réplica ás ponderações do papa não era fácil, e a impressão que fizeram devia ser profunda. Naquelle diploma brilhavam, na parte relativa aos christãos-novos, a san razão e a firmeza. Ainda suppondo que o procedimento da cúria

negocio, e depois tanto lhe daa que a Inquisição fi- que aberta como serrada»: C. do bispo d' Angra a eirei de 7 de novembro de 1545, na G. 2, M. 2, N.^ 48, no Arch. Nac.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 245

tivesse na sua origem motivos mais ou me- nos ignóbeis, cumpre confessar que o breve de 22 de junho era, na substancia e na forma, digno do chefe da igreja. Attribuindo-o a ins- piração do cardeal da Silva, D. João iii, sem o querer nem saber, honrava o foragido pre- lado, que tão cordealmente aborrecia (1). As razões do papa quebravam os ânimos para se obstar seriamente ás averiguações que o núncio tinha missão de fazer, e a necessidade de transigir nesta parte devia tornar-se evi- dente. Naturalmente occorriam ainda outras considerações. Por uma parte não convinha suscitar novos conílictos que complicassem a questão, de modo que ella houvesse de ser levada ao concilio que ia proximamente reu- nir-se. Era uma das cousas que, como vimos, elrei mais temia. Por outro lado, ainda quan- do a questão não chegasse a esses termos, cumfwia evitar todos os incidentes que po- dessem impedir ou retardar as negociações i)pndentes na cúria.

(1) «Cujo estylo (o do breve de 22 de junho) pa- rece mais do bispo de Vizeu que dalgum seu of- ficial, ou ao menos que foi no fazer delle»: Minu- tas de cartas d'elrei a Simão da Veiga e a B. do Faria de setembro de 1545, na Gollecç. do Sr. I\(" reira, Quad. 4.

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Replicar ao breve de 22 de junho era, to- davia, indispensável ; porque o silencio im- portaria a acceitação das doutrinas nelle con- tidas ; mas parece que, sob a impressão das precedentes considerações, não se julgou op- portuno fazê-lo por escripto. Mandaram-se instrucções aos agentes em Roma, nas quaes se especificavam os termos em que haviam de fallar ao papa sobre aquelle delicado as- sumpto. Eram escacas na parte relativa aos christãos-novos. Limitava-se elrei á allegação mil vezes repetida da sinceridade das suas intenções, provada pelas perdas que lhe re- sultavam da perseguição dos hebreus ; defesa inepta, porque (ainda acreditando que nesse procedimento não houvesse a idéa de que um dia se [estabeleceriam definitivamente os confiscos, e portanto não se immolassem a previsões de cubica os interesses então actuais do paiz, nessa epocha, como em todas, eram vulgares os exemplos de se preferir a satis- fação das próprias paixões e caprichos aos mais subidos interesses.

No que as instrucções se dilatavam era na (piestão do bispo de Viseu. Estranhava-se, e com razão, que o papa fingisse ignorar os queixumes fundados ou infundados que havia contra elle. Recordavam-se os factos que ti-

flISTORIA DA INQUISIÇÃO 247

nham passado, e as instancias tantas vezes feitas para obter o castigo daquelle grande criminoso. Recommendava-se, depois, aos agentes que increpassem seriamente o car- deal Farnese da sua intimidade com D. Mi- guel da Silva, e que lhe pedissem não quizes- se escandalisar elrei a ponto que d'ahi resul- tassem consequências desagradáveis. Por obscuras e tortuosas que fossem as phrases das mstrucções, essas phrases envolviam ameaças mais ou menos disfarçadas, Adver- tia-se especialmente a Balthasar de Faria que, se o papa ou qualquer outro falasse na questão das rendas do bispado de Viseu, de- clarasse categoricamente que nunca se havia de consentir que, directa ou indirectamente» estas fossem parar ás mãos do bispo, certifi- cando que se conservariam em escrupuloso deposito, para serem empregadas do modo mais conveniente em serviço de Deus. Preve- nindo, emfim, a possibilidade de Simão da Veiga ter partido para Sicilia, auctorisa- va-se Balthasar de Faria para dar cumpri- mento por si áquellas instrucções (1).

(1) Ibid. A carta expedida a B. de Faria, aucto- risando-o para abrir as cartas dirigidas a elle e ao seu collega, e para dar execução ás ordens d'elrei.

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As matérias relativas ao tribunal da ca- minhavam em Roma com extrema lentidão, como dissemos, depois da partida para Pa- lermo do agente extraordinário. Devia-se isto principalmente a um frade franciscano con- fessor do papa, que os hebreus portugueses tinham sabido converter em seu defensor (1; A promessa, porém, vinda de Lisboa, de se permittir a entrada a Montepoliziano, colloca- va a cúria romana na necessidade de também cumprir por sua parte a que fizera de con- ceder a bulia definitiva da Inquisição na for- ma em que se pedia, supposta a admissão do núncio. Effectivamente assegurou-se a Simão da Veiga antes de sair de Roma que se ia tractar sem detença do assumpto ; mas os embaraços começaram logo a surgir. Era o mais grave a ignorância em que se estava acerca do cumprimento das promessas d'el- rei. Achava-se Montepoliziano em Portugal? Eis o que se ignorava e que por muito tempo pe ignorou, visto ter-se verificado a sua en-

acha-se também na Corresp. Orig. de B, de Faria» f. 142. Ê datada de 28 de setembro.

(1) C. de Simão da Veiga a elrei, de Roma, a 28 de abril de 1546, na G. 13, M. 8, N.o 6, Doe. 5.«, no Arch. Nac.

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trada em setembro de 1545. Depois de sabido o facto, sobreveio nova difficuldade. Para redigir a pretendida bulia, que tinha de substituir completamente a de J536, cujos ef leitos cessavam em 1546, eram precisas certas informações de Ricci, devendo estatuir- se de novo sobre todas as questões que o assumpto envolvia. Apertava Balthasar de Faria com os cardeaes De Crescentiis, Ar- dinghelo e Sfrondato, encarregados especial- mente do negocio : mostravam-ihe elles os maiores desejos ; não chegavam, porém, a conclusão alguma (1). Por outro ladojo agen- te d'elrei era obrigado a distrahir-se daquelle objecto com a questão do bispo de Viseu. D. João ni acceitara a proposta do papa para ser submettida essa interminável contenda

(1) Veja-se a carta particular de B. de Faria para Simão da Veiga, escripta de Roma para Pa- lermo a 30 de outubro de 1545, na Collecção do Sr. Moreira, Quad. 2, ad Jin. Esta carta é um do- cumento curioso por se encontrarem nella vesti- gios de que Miguel Angelo trabalhava então num quadro para Portugal, e que, como em gerai cos- tumam os artistas, não era demasiado pontual. aMichael Angelo mente todo o possível co a cousa de nosa seniiora da misericórdia. Parece-me que quer dinheiro. Eilho de dar por concluir coele.»

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a deus negociadores, que eram o novo nún- cio e o bispo de Coimbra, Fr. João Soares ; mas, apesar disso, a lucta de enredos a tal propósito continuava na corte pontifícia com a mesma actividade (1). Assim, passados al- guns mezes, Simão da Veiga, voltando a Ro- ma (fevereiro de 1546), achou tudo a ponto de se concluir, segundo affirmavam Santa- fiore e o mesmo papa e, até, conforme cria Balthasar de Faria, mas, na realidade, no mesmo estado em que o deixara. A falta de cartas de Ricci, dizia-se, era o único obstáculo á redacção da nova bulia ; mas este era in- superável. Debalde o activo agente inculcava ao pontifice que se illudiam os seus compro- missos com este pretexto ; debalde pintava a Farnese o descontentamento d'elrei e recor- dava a Santafiore o que por seu próprio pu- nho escrevera para Portugal. Nada conseguia em definitiva, senão boas palavras, e descu- lMÍr pelos seus informadores secretos que estava sendo procurador dos christãos-novos o confessor do papa (2). Se na importância que se ligava ás com-

(l)Ibid.

(2) C. de Simão da Veiga a elrei de 28 de abril de 1546. i. cit.

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municações do arcebispo sypontino havia boa fé, ignoramo-lo. O que é certo é que as opi- niões de Ricci e os factos communicados por elle não deviam contribuir demasiado para o desenlace final da contenda, attendendo ao que se passava em Portugal. O representante do pontifice, ao passo que propalava a idéa de que conviria admittir um novo perdão ge- ral para os crimes de heresia, apertava nas suas insistências para que lhe deixassem exa- minar os processos, tanto julgados como pendentes. Resistiam os inquisidores, e recu- sava positivamente elrei, com o pretexto ou fundamento de que esse dilatado exame eter- nisaria a situação provisória do negocio. Por fim, conveio Ricci em limitar as suas averi- guações a cinco causas que apontou. Foram os respectivos processos revistos em repeti- das conferencias, a que assistiam, por uma parte o infante e vários membros do tribunal, e por outra o núncio e os seus auditores, A acreditarmos as memorias favoráveis á In- quisição, o arcebispo sypontino declarou a elrei que ficava satisfeito com o exame, e que achava regulares os processos ; mas estas mesmas memorias nos dizem que os pedira depois para segundo exame ; que effectiva- menie se lhe deram, e que, todavia, fulminara

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excommunhões contra os notários do tribu- nal da por Ih*os não haverem entregado (1). Esta narrativa contradictoria e pueril, que, a ser verdadeira, significaria que Ricci era de- mente, está confirmando o facto que se deduz das representações dos christãos-novos, subs- tanciadas no antecedente livro, e do qual ain- da hoje se estão descubrindo vestígios nos archivos da Inquisição ; isto é, que onde e quando convinha, se truncavam os autos, ou eram supprimidas as peças importantes dos processos (2). E\ em nosso entender, este procedimento que se busca encubrir nessa narrativa tão pouco digna de credito. Prova- velmente o núncio, bem informado pelos christãos-novos, tinha pedido cinco proces- sos dos mais monstruosos, que os inquisido- res lhe apresentaram viciados, de modo que do exame nada podesse resultar contra elles. Pedindo-os para novo exame, devia estar

(1) Instrucç. ou Memor. na Collecç. de S. Vi- cente, vol. 3, foi. 144.

(2) Acham-se nos immensos archivos da Inqui- sição, reunidos na Torre do Tombo, processos di- vididos em duas, três ou quatro partes, cozidas cada uma sobre si, com differente numeração, o que ás vezes torna difficil a reunião desses diver- sos fragmentos.

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advertido pelos interessados dos documentos ou actas que ahi faltavam. Eis o motivo das excommuniiões que nos parece mais provável. Fosse, porém, qual fosse a causa daquelle procedimento, é fácil imaginar qual seria o despeito de D. João ni e dos inquisidores á vista de tanta ousadia. Se pelo passado se houvesse de calcular o futuro, era inevitável um acto de vigor da parte delrei. Ricci fizera por arbítrio próprio mais offensiva aggressâo do que a do breve suspensivo de 22 de setem- bro, e a retaliação cumpria que fosse violenta. Todavia o monarcha limitou-se a reprehender o núncio, que, segundo se diz, respondeu de modo pouco satisfactorio, e a escrever para Roma o mesmo conto ridiculo acerca dos cinco processos que se espalhara em Portu- gal, concluindo pela repetição das supplicas a favor do estabelecimento definitivo do tribunal da e de plena liberdade para os inquisido- res. Pedia-se ao mesmo tempo que por uma vez acabassem as concessões de juizes espe- ciaes e a intervenção dos núncios nas maté- rias da Inquisição. Estas supplicas eram esto- fadas com as considerações que se repetiam havia dez annos, e com todas as phrases pias e sentidos queixumes com que se costuma- vam adornar as communicações officiaes diri-

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gidas á curia romana sobre aquelle assum- pto (1). Excesso singular de paciência, que indica não ter sido o procedimento do arce- bispo sypontino tão desarrazoado como se pretendia inculcar.

No mesmo dia em que se davam a Baltha- sar de Faria instrucções a este respeito, expe- diam-se-lhe outras acerca da questão do bispo de Viseu, que explicam sobejamente a impen- sada moderação d'elrei. Depois de tantos annos de lucta, este comprehendera, em fim, o que ainda hoje mais de um estado catholico pa- rece ou ignorar ou esquecer. Aos governos íortes e honestos, que sabem manter a digni- dade do seu paiz e o próprio direito, é fácil reprimir pela energia as tendências sempre abusivas da curia romana: mas aos governos fracos não resta outra escolha senão a de sa- ciar-lhe a cubica pela corrupção, ou a de cur- var a cabeça diante das suas pretensões. D. João in preferiu a corrupção. Tinha larga experiência do que era Roma, e que podia ser franca, e quasi que diríamos brutalmente, cor- ruptor. Farnese, o neto e ministro de Paulo hi, não estava saciado com as grossas sommas remettidas a Balthasar de Faria. Cumpria dar-

(i; C. d'elrei a B. de Faria de 20 de fevereiro de 1546, na Correspond. Orig., f. 164.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 255

se-lhe mais. As rendas ordinárias do bispado de Viseu e dos benefícios que desfructara o cardeal da Silva eram avultadas. Ordenou, portanto, elrei ao seu agente que offerecesse directamente ao papa a administração daquelle bispado e daquelles benefícios para Farnese. Era o preço que offerecia pela concessão de- finitiva da Inquisição, mas devia accrescen- tar-se na veniaga a recusa de um perdão geral, que se dizia estarem a ponto de obter os christãos-novos, em narmonia com o parecer de Ricci. Nesta parte ordenava que se fizessem as mais vivas instancias, mas advertia que, se o papa insistisse naquella idéa, nem por isso se deixasse de concluir a transacção (1). O expediente era hábil : Farnese' convertia-se as- sim de protector de D. Miguel em seu emulo, e de affeiçoado á causa dos hebreus em adver- sário resoluto delia. Na idade de vinte seis annos, nessa epocha de paixões ardentes, a perspectiva de uma rica prelazia eáe pingues beneficios, accumulados á pensão que des- fruçtava em Portugal, devia acabar de abrir os.

(1) C. de B. de Faria de 20|de fevereiro de 1546, na Corresp. Orig., f. 167. Esta carta, da mesma data da antecedente, admiravelmente categórica e precisa, ó um dos documentos mais hediondos no meio desta serie de lorpesas.

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olhos ao moço ministro sobre o serviço que a Inquisição fazia a Deus e sobre a legitimidade do implacável ódio que D. João m votara ao seu antigo escrivão da puridade. Abandonar o systema de corrupções mais ou menos obs- curas ou subalternas, para corromper directa- mente, c de^ um modo amplamente generoso, ojgoverno pontifício, era caminhar com segu- rança á conclusão da longa lucta emprehen- dida para firmar em Portugal a Inqmsição, resolvendo-se ao mesmo tempo o problema da completa ruma de D. Miguel da Silva. Mas cumpria não enfraquecer este grande meio com as inúteis pretensões de nobre altivez, que o breve de 22 de junho provava ter per- dido a sua antiga efficacia para com o papa. D. João III não agradecera a concessão da di- gnidade cardinalicia fdta ao infante D. Henri- que. Era o que decentemente podia fazer, visto subsistirem os mesmos motivos que outr'ora o haviam levado a rejeitar uma offerta aná- loga. Tinha-se irritado o pontifice com seme- lhante procedimento, e Simão da Veiga com- municou para Lisboa qual fora o profundo desgosto que o facto causara (1). A commu-

(i; Carta de S. da Veiga, na G. 13, M. 8, N.« 6^ Doe 5.

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nicação, porém, era inútil: o despeito delrei passara. Balthasar de Faria recebia pouco de- pois ordem para apresentar a Paulo iii uma carta do seu soberano, em que este agradecia dO supremo pastor aquella demonstração de oenevolencia e em que se fingia completamente esquecido dos descontentamentos passados (1). Tudo isto era necessário para contrastar b resoluta parcialidade de Ricci a favor dos christãos-novos. Se o Quncio era pago para seguir este systema, cumpre confessar que procedia como honrado obreiro. Usando de linguagem firme, posto que moderada, elrei intimara ao arcebispo que, visto estar habili- tado para dar a sua sanctidade as informações que lhe haviam sido commettidas acerca da Inquisição e dos inquisidores, suspendesse qualquer procedimento ulterior nas matérias pertencentes áquelle tribunal, até receber novas instrucções do pontifica Evitavam-se assim as collisões em Lisboa; não se obstava, porém, a que essas informações fossem altamente des- favoráveis aos inquisidores, o que atenuaria mais ou menos o eífeito do vantajoso negocio proposto ao papa e a seu neto Farnese. Fana

(1) C. d'elrei a B. de Fana de 6 de maio de 1545.

TOMO III 17

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era por isso encarregado de apresentar a Paulo III uma carta recheiada de queixas con- tra o seu núncio e de ponderar, tanto ao avô como ao neto, a necessidade de porem termo áquella tão protrahida questão (1).

O estado das cousas em Roma justificava estas precauções. Tinha-se ahi cerrado a porta a todos os debates com a resolução de espe- rar as informações de Ricci. Delias se affir- mava depender tudo, porque se ignoravam ainda as generosas propostas d'elrei. No meio destas tréguas forçadas, os christãos-novos continuavam a impetrar breves a favor de in- dividuos presos pela Inquisição, que sollicita- vam serem tirados das garras dos inquisidores e julgados por juizes apostólicos especiaes. Eram estes breves que não deixavam um mo- mento de repouso a Balthasar de Faria. Pre- tendia elle que, assim como se entendera ser conveniente sobrestar na questão geral, até se conhecer o resultado do inquérito do núncio, assim também cumpria não a prejudicar por actos tendentes a deprimir a força moral dos inquisidores. Foi no meio destas luctas obs- curas que se passaram os primeiros mezes de

(1) C. d'elrei a B. de Faria do mesmo dia, na Cor- resp. Orig., f. 1 .

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 259

1546. Logrou, porém, quasi sempre o agente obstar a que o ouro dos mais opulentos chris- tãos-novos os posesse a salvo, a elles ou aos seus apaniguados, da sorte commum da raça hebréa (1).

O que Balthasar de Fana especialmente re- commendava para Portugal era que se empre- gassem todos os meios, inclusivamente as ameaças, para obter de Ricci informações fa- voráveis. O inconveniente não estava em que do inquérito resultasse um ou outro facto de abuso de auctoridade da parte deste ou daquelle inquisidor: estava em pintar o núncio as ten- dências, o systema e o proceder em geral da Inquisição como apaixonados e injustos. Cus- tasse o que custasse, era preciso que elle, além de dar informação favorável, se não limi- tasse a termos vagos sobre poder-se tolerar a existência do tribunal da fé; cumpria que affir- masse a sua necessidade como instituição pro- fícua á religião, e que o caracter e mais dotes dos seus ministros os habilitavam para exer- cerem dignamente as funcções de inquisidores. Sem isto, suppunha elle, esta longa e tediosa contenda teria, a bem dizer, de passar de novo

(1) C. de B. de Fana a eirei de 25 de março de 1546, na G. 2, M. 5, N.o 45.

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pelas phases anteriores logo que expirassem os dez annos a que se limitavam os eífeitos da bulia constitutiva de 1536 (1). Os receios do agente português provam, todavia, que na con- junctura em que escrevera as precedentes pon- derações ainda não havia recebido a carta d'elrei em que se lhe ordenava fizesse ao papa as vantajosas oífertas que deviam reverter em beneficio do cardeal Farnese. Se assim não fosse, tinha bastante experiência das cousas de Roma para appreciar toda a efficacia da- quelie alvitre e modificar profundamente os lemores que o assaltavam.

Os documentos relativos aos successos dos meiadosde 1546 são escaços; mas a preceden- te narrativa explica de sobejo os acontecimen- tos dessa epocha. As communicações da corte de Lisboa nos primeiros mezes deste anno ti- nham sido dirigidas a Balthasar de Faria, provavelmente porque se ignorava ainda a vol- ta de Simão da Veiga a Roma. Entretanto este desde que alli chegara tinha empregado, como vimos, todos os esforços possiveis para con- clmr a sua missão. O único obstáculo appa- rente era, conforme também temos visto, a tardança das informações de Montepoliziano.

Cl) íbiá.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 261

Appareceram, emfim, essas informações, e a cúria romana, privada daquelle ultimo pretexto das suas longas tergiversações, vio-se obrigada a dar uma solução definitiva.

Mas o que os procuradores dos conversos esperavam, e Balthasar de Faria receiava (1), verificou-se, não sabemos até que ponto. As informações de Ricci não eram, de certo, excessivamente favoráveis á Inquisição. Se acreditássemos o que elle próprio escrevia a um intimo amigo, não fizera nisso senão se- guir as instrucções que a tal respeito se lhe mandavam de Roma (2). Ahi os agentes dos christãos-novos ainda tinham bastantes re- cursos e protectores para obterem que não se dessem secretamenta essas instrucções, mas que cambem o papa fizesse demonstra- ções publicas de que não havia abandonado inteiramente a sua causa. Deu-as, de feito, Paulo íii, mandando expedir uma bulia para prorogar por mais um anno as disposições

(1) C. de B. de Faria a elrei de 6 de abril de 1546, na G. 2, M. 5, N.« 23.

(2) Ibid. Que as informações de Ricci tinham sido más, deduz-se claramente da carta de B. de Fa- ria de 12 de dezembro de 1546, que adiante havemos de citar.

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da de 23 de maio de 1536. em virtude das quaes o confisco dos bens dos réus de ju- daísmo tinha ficado suspenso por dez annos Esta prorogação era necessária, dizia o pon- lifice, para dar tempo a colherem-se o reste das informações que Montepoliziano estava encarregado de colligir (1). A astúcia romana saía assim vantajosamente de um mau passo. Concedendo ao rei a Inquisição na forma pre- tendida, apesar das informações alcança- das, mostrava-lhe uma condescendência digna de (ser correspondida com a realisação das oíTertas relativas aos benefícios de D. Miguel da Silva. Essas mesmas informações, porém, habilitavam-no para mostrar certa sollicitude pelos interesses dos christãos-novos e para não ceder no ponto do perdão, que Montepo- liziano tinha o cuidado de espalhar ser indis- pensável, e a que das cartas dirigidas a Bal- thasar de Faria se deprehende que o próprio D. João III não tinha inteira esperança de obstar. O preço deste perdão, que de certo não era negociado gratuitamente, podia assim conciliar-se com as generosas propostas se- cretamente feitas pelo monarcha.

(1) Bulia de 22 de agosto de 1546. Maç. 15 de Bulias N.» 18, no Arch. Nac.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 263

Foi O qu^" se fez. Simão da Veiga partiu de Roma com a final resolução sobre o as- sumpto aos fins de setembro ou principios de outubro (4). Quando, porém, atravessava a França, adoeceu e veio a morrer em Avinhão. Um creado seu trouxe a noticia a Lisboa e junctamente os despachos de que elle era por- tador. Estes despachos continham uma espé- cie de ultimatum da corte de Roma. O papa, concedendo o estabelecimento da Inquisição conforme os principios que geralmente regu- lavam aquella instituição, satisfazia aos arden- tes votos do rei de Portugal, até ahi tão viva- mente contrariados; na doçura, porém, de um desejo satisfeito misturara o absintho. O perdão geral aos réus de judaismo acompa- nhava a concessão, e procurava-se evitar, nas condições com que elle se devia applicar, que os inquisidores o tornassem illusorio. Protes- taBdo sempre que não estavam auctorisados para virem a accordo sobre o definitivo esta- belecimento do tribunal da com aqueltes restricçôes, Simão da Veiga e o seu collega, convencidos da inutilidade de novas insistên- cias, só tinham, todavia, acceitado a resohi-

(4) C. do cardeal Ca-rpi á eérei de 13 de «rtubro cte 1546, na Cdilecc. do Sr. Moreira, Quad. ti.

264 HISTORIA ÍNQUISIÇAO

ção pontifícia pare a transmiUirem ao seu go verno, partindo com ella o agente extraordi nario a dar. emfim, conta a elrei de bom, posto que imperfeito, resultado do sua demo rada missão (1).

Apesar de Faria ler sido auctorisado para ceder no ponto do perdão geral, uma vez que o papa e seu neto vendessem pelas rendas dos benefícios de D Miguel da Silva a con- cessão do tribunal da em toda a plenitude, os despachos trazidos pelo familiar de Simão da Veiga excitaram a cólera verdadeira ou fingida d^elrei. Ricci recebeu uma communi- cação redigida em termos acres, na qual s^ repetiam os usuaes queixumes contra as con descendências de Roma para com os chris- tãos-novos, e se respondia com explicitas exi- gências ao presupposto ultimatum do papa. Pretendia-se que a nova bulia da instituição permanente do tribunal da revogasse todas as exempções e breves de perdões mdivi- duaes, concedendo-se aos inquisidores os po- deres e privilégios que elles pediam em cer-

(1) Não podemos descubrir os despachos trazidos por Simão da Veiga ; mas os documentos subse- quentes esclarecem sufficien temente esta phase da negociação.

HISTORIA DA INQUISIÇA(. 265

tos apontamentos junctos áquella nota. se poderia tractar de perdão, se este se referisse unicamente a individuos de raça hebréa, ex- cluindo quaesquer outros réus de judaísmo. Todos os confessos e convictos deviam abju- rar solemnemente antes de se lhes applicar aquella graça para serem punidos como re- lapsos se reincidissem Quanto aos presos, contra os quaes não havia prova plena, mas indicios, deviam estes abjurar em audiên- cia particular dos inquisidores, sujeitando-se ãs penitencias que lhes fossem impostas, mas podendo ser mettidos de novo em processo, se apparecessem provas ulteriores contra el- les. Evitariam as consequências desse facto, se em tempo legal viessem confessar seus er- ros e abjurá-los. deixando eirei ao papa deci- dir se estes taes, reincidindo, deveriam ser tractados come relapsos A mesma doutrine se estabelecia acerca dos levemente suspeitos, mas presos, com a excepção de serem ao emtanto soltos sem abjuração nem peniten- cias. Os indivíduos culpados ou simplesmente indiciados nos registos e processos da Inqui- sição, mas contra os quaes não se houvesse ainda procedido, obteriam perdão vindo se- cretamente pedi-lo dentro do termo marcado. Deixava-se neste caso lambem ao papa re-

266 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

solver-se, cahindo posteriormente em erro de fé, seriam considerados ou não como relap- sos. Todos os individuos comprehendidos nas precedentes categorias que no praso assigna- lado não sollicitassem o perdão não o pode- riam obter depois, e seriam exciuidos delle todos os negativos, isto é, os que negassem o delicto, ainda depois de provado judicial- mente, e os confitentes contumazes, isto é, os que, sectários sinceros da lei de Moysés, nos cárceres, nos tormentos, e ante o prospecto de cruel supplicio confessassem nobremente a própria crença. Elrei concluía declarando qne estava prompto a abster-se dos confiscos por mais três annos, como em 1536 se abstivera por dez (1).

Estas resoluções definitivas íoram trans- mittidas a Balthasar de Faria, não para que as apresentasse officialmente ao pontifiee, mas para que tivesse conhecimento delias. Di- rigindo-se ao supremo pastor por intervenção do núncio, elrei dava ao seu ministro em Roma aquella demonstracção de desgosto pelo modo altamente inconveniente por que se houvera no desfecho da negociação, cujo

(1) C. d'elrei a B. de Faria de 4 de dezembro de 1546, na Corresp. Orig., f. 220.

qiSTORIA DA INQUISIÇÃO 267

progresso lhe ordenava observasse sem nella intervir de outro modo (1). Suspeitamos, to- davia, que a carta dirigida ao agente em Roma não tinha na realidade o valor que fingia ter. Que elrei estivesse descontente com o incom- pleto da concessão e que os inquisidores lhe excitassem o animo para não admittir o per- dão, senão em termos taes que elles podes- sem illudi-lo, é assas crivei ; mas também é crivei que essa carta fosse redigida para ser- vir as indiscrições que se costumavam orde- nar aos agentes em Roma, quando elrei que- ria indirectamente assustar a cúria com as suas cóleras, que podiam nem sempre ser vens e pueris. Concebe-se que D. João iii se houvesse arrependido da vaga auctorisação que dera a Faria para transigir na matéria do perdão : não se comprehendem, porém, tão rigorosas demonstrações de despeito por elle haver eífectiyamente transigido nessa parte, se nellas não virmos o pensamento re- servado de illudir a cúria.

O que, porém, parece poder-se affirmar com certeza, é que, recebendo os despachos dados a Simão da Veiga, elrei mostrava não estar longe de acceitar o seu conteúdo. Fora,

(1) Ibid.

268 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

pelo menos, disto que o núncio informara a sua corte. Tinha-se reunido em Lisboa uma juncta de theologos, onde, segundo Ricci di- zia, se forcejava para que as resoluções do papa quanto ao perdão não fossem acceitas Persuadia- se, porém, o núncio de que elrei saberia resistir a pretensões exaggeradas, em- bora se houvesse queixado de que o papa nunca lhe fizesse uma concessão ampla e em tudo conforme a seus desejos. A communica- ção que depois recebeu veio desenganá-lo em breve de que se illudira. Entretanto, apesar das esperanças do núncio, a sua carta fizera mau effeito em Roma. Espantavam-se todos de que os parciaes da Inquisição ainda não estivessem satisfeitos. Alguns cardeaes che- garam a proromper em invectivas. «Que que- rem os inquisidores ? diziam elles. Que- rem carne ? » Ponderavam que, se o perdão servisse de emenda aos christãos-novos, eram almas que se ganhavam : se não servisse, fá- cil sería depois processá-los e puni-los. O papa segundo os avisos occultos dados a Bal- thasar de Faria, affirmara, num momento de irritação, que procederia do modo que julgava opportuno, quer elrei o quizesse quer não. Era este sentir da cúria que o agente português communicava ao seu soberano pouco antes de

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 269

receber severas reprehensões por ter cedido, sem ultrapassar as anteriores instrucções, num ponto em que a pertinácia, visto o es- tado dos ânimos, podia comprometter tudo (1). Um facto singular, occorrido por aquelle tempo, nos mostra como, vacillante ante as pretensões extremas dos parciaes da intole- rância e as ponderações do núncio, D. João iii buscava, bem que tarde, algum alvitre pru- dente para sair das difficuldades que lhe sus- citava Q lucta de encontradas paixões e de oppostos interesses, sem, todavia, arriscar de Qovo o muito que emfim ganhara. Talvez o juadro que o seu agente lhe desenhava do péssimo effeito que produzira na cúria ro- mana a resistência a uma parte das recentes resoluções pontifícias contribuisse para o facto a que nos referimos, ou, talvez, no momento de triumphar, lhe surgisse na consciência uma voz de remorso. Fosse o que fosse, um raio fugitivo de cordura pareceu alumiar as trevas daquella alma. Entre os christãos-novos mais qualificados, havia quatro, cujos nomes igno-

(1) C. de B. de Faria a elrei de 12 de dezembro de 1545, na G. ::;, M 2, 56. «Cardeal ouve que disse: que querem os inquisidores? Querem carne? Ibid.

270 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ramos, os quaes, ao passo que exerciam grande influencia na gente da sua raça, me- reciam também a confiança do principe. Cha- mou-os elrei e ordenou-lhes que lhe redigis- sem uma exposição sobre os meios que se poderiam empregar com vantagem para tran- quillisar os conversos e reduzi-los a submet- terem-se ao tribunal da fé, abandonando um systema de resistência, fatal para elles, dam- Qoso para o reino, e útil á cubica insaciá- vel de Roma. D. João iii prohibia, comtudo, a esses homens que consultassem a matéria com os da sua nação. Era o juizo delles que exclusivamente queria conhecer (1). Deram- !h*o. Em primeiro logar criam necessário ac- ceitar-se com sinceridade o perdão geral quanto ao passado, que se dizia ter-se obtido do papa, e em segundo logar que os rigores da Inquisição fossem modificados em tudo aquillo que parecia ou excesso de severidade oa offensa de justiça. Assim, cumpria que aos réus se communicassem os nomes dos

(1) Doe. da G. 2, M. 1, N.» 18, no Arch. Nac O parecer dos quatro christãos-novos não tem data nem assignatura, mas vê-se claramente do seu conteúdo que é dos fins de 1546 ou dos princípios de 1547.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 271

accusadores e das testemunhas, declarando-se não-poderosos os christãos-novos, para isso se conciliar com as leis canónicas. Não seria, quanto a elles, senão declarar um facto sa- bido de todos. Nunca, diziam os quatro he- breus, durante mais de dez annos, uma única testemunha de accusação contra os conver- sos fora victima da vingança dos réus. Era prova da timidez da raça proscripta o proce- dimento de Francisco Gil, que conduzira, só- sinho, de Traz-os-Montes um grande numero de presos, fazendo-lhes pelo caminho innu- meras atrocidades, sem que nenhum ousasse resistir-lhe. Lembravam o assassinio que este mesmo homem commettera em Lisboa, sem que d'ahi lhe resultasse o menor perigo, e que, quando saíam do reino, na occasião do embarque bastava um individuo para roubar vinte. Ponderavam a elrei que era impossivel tranquillisarem-se os seus súbditos de origem hebréa emquanto nelles fossem reputados cri- mes actos que noutros nem peccados veniaes seriam, e emquanto se admittissem a teste^ munhar nos processos da Inquisição pessoas da mais baixa plebe, dessa plebe que os mettera á espada, e para quem era um espec- táculo delicioso vê-los estorcer nas chammas do supplicio.

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Reflectiam também os quatro conversos nos tristes resultados de processar e condem- nar réus por confissões e denuncias dos seus companheiros d'infortunio. Lembravam os ef- feitos moraes da violência dos tractos, do ter- ror antecipado dos tormentos, da esperança do perdão, das promessas illusorias que se faziam, de todas as artes diabólicas com que se buscava que os próprios presos fossem virtualmente os algozes uns dos outros. Com destreza, davam a entender que muitos des- ses depoimentos eram forjados; porque, di- ziam elles, não alcançavam como alguns que francamente se haviam declarado judeus e subido ao cadafalso impenitentes, deixavam depoimentos (aliás impossiveis de arrancar a quem estava resolvido a morrer) em conse- quência dos quaes as suas familias e os seus parentes e amigos vinham a ser também sa- crificados. Que taes expedientes não eram precisos para se descubrirem os culpados provava-se com mais de quinhentos indiví- duos encarcerados naquella conjunctura por denuncias de christãos-velhos e de conversos que se achavam no goso da sua plena liber- dade. Mostravam a necessidade de fazer com que a abolição dos confiscos se convertesse em realidade, e que as prisões não fossem

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 273

segredos horríveis como eram as chamadas covas da Inquisição de Évora. Na forma de processar os culpados notavam especialmen- te o admittirem-se denuncias e depoimentos de escravos, o que tornava intolerável a situa- ção das familias de raça hebréa, que se viam servos dos seus próprios servos, não haven- do, aliás, creados livres que quizessem servi- las, e não se atrevendo a punir um escravo com medo de cruéis vinganças, favorecidas pelo carinho com que eram tractados os que iam delatar seus senhores. Sollicitando remé- dio para os desconcertos que enumeravam, os quatro hebreus, cuja linguagem era a de homens sinceramente convertidos e que pa- recia não temerem a Inquisição nem desejar que fosse abolida, recordavam a elrei que es- se remédio estava em manter as promessas solemnes feitas aos conversos por D. Manuel e por elle próprio, promessas que as actuaes tyrannias formalmente desmentiam. Não se li- mitavam, porém, a pedir para os da nação aquillo que se podia reputar de rigorosa jus- tiça; pediam também misericórdia. Conside- ravam esse meio como o mais efficaz para reconduzir á estrada do chnstianismo os que delia se haviam desviado. Devia-se, na opi- nião delles, conceder o perdão a todos os

TOMO III 18

274 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

sentenceiados, não sendo relapsos, que se mostrassem arrependidos, ainda mesmo nos degraus do patibulo, embora esse arrependi- mento fosse inspirado pelo horror da mor- te e não por uma conversão sincera. Aponta- vam muitos abusos que havia na acceitação de denuncias, principalmente de denuncias sobre factos practicados muitos annos antes, na forma das capturas, na ordem do proces- so, e ainda na espécie de correições que pelo reino faziam os inquisidores, um dos quaes, em Trancoso, obrigara a fugirem, dentro de dous ou três dias, cento e setenta chefes de familia, pela maior parte abastados merca- dores. Concluíam os quatro conversos por al- gumas reflexões cuja gravidade desejamos que o leitor apprecie por si mesmo. Transcre- veremos em substancia as principaes, redu- zindo-as. para as tornar claras, á linguagem moderna.

«Senhor diziam elles não promulgue vossa alteza leis, nem tolere estatutos ou re- gimentos de corporações em que se faça uma selecção odiosa entre christãos-velhos e chris- tãos-novos. Actualmente, embora muitos des- tes últimos tenham capacidade sobeja, não os admittem, nem nas misericórdias, nem nas confrarias nem sequer entre os mesteres das

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 275

cidades e villas. Mancebos valentes e robus- tos que vão alistar-se para as guerras da ín- dia, rejeitam-nos, cubrindo-os de affrontas; e, todavia, não consta que os que foram an- tes practicassem nenhum acto vil. Rogam a homens incapazes que acceitem cargos pú- blicos, desprezando os mais hábeis, pelo sangue que lhes corre nas veias, e a alguns que anteriormente os adquiriram, procuram exclui-los delles com o pretexto de raça. Os homens que estimam h honra preferem por ISSO abandonar o paiz. Se lhes dessem paz, ticariam os que ainda restam e que são o maior numero, voltariam os que andam er- rantes por Galliza e Castella, e amda muitos dos que se estabeleceram em Flandres, em França e em Itália, regressando á pátria, vi- nam assentar aqui de novo casas de com- mercio e restaurar o trafico amortecido. Com esses favores, não ficará menos temida a In- quisição, nem os que delinquirem contra a evitarão o castigo. Que mais vigilante senti- nella do que o odio popular? Tumultos, sub- levações, escândalos diários practicados con- tra os conversos completam nas ruas e pra- ças as representações feitas em cortes com elles. O povo pensa em persegui-los e em mettê-los debaixo dos pés. Não faltarão aun-

276 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ca testemunhas que sirvam para condemnar os verdadeiros réus, no meio da malevolencia do vulgo e num paiz onde as leis prohibem as devassas geraes pela tendência que o po- vo tem para jurar falso. Toda a indulgência parece pouca, tractando-se de individuos col- locados em tal situação. Antes deixar impu- ne um criminoso do que punir um innocente. As leis da igreja e as da sociedade dissimu- lam muitas vezes pequenos males para obviar a outros maiores Deve seguir-se este exem- plo. Nem se alleguem os rigores da inquisi ção de Castella. Os portugueses têem maior resolução para abandonarem a pátria, e estão de sobreaviso, justamente pelo exemplo do que viram naquelle paiz Prohibir-lhes a saída é inútil. A experiência tem ensinado com que facilidade abandonam bens e tudo, com que temeridade affrontam quaesquer perigos, pa- ra deixar a terra natal. Sem moderação e to- lerância, bem poucos ficarão no reino. Depois, em Castella não os maltractavam, não os en- vileciam antes de serem declarados réus. Lá, o povo não lhes mostrava igual ódio; não fa- zia assuadas para os matar. Lá, gosavam das mesmas honras que os christãos-velhos; eram regedores das terras, e a simples injuria de se lhes chamar judeus ou tornadiços punia-se

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 277

com severidade. Desse modo arriscavam-se aos perigos da Inquisição. E, ainda assim, quantos não saíram de Hespanha? Foram, a bem dizer, innumeraveis, que estão espalha- dos por todo o mundo. E, todavia, dava-se uma differença: hoje os que saem de Portu- ga) são acolhidos nos diversos paizes chris- tãos com a melhor vontade, e protegidos com singulares privilégios, o que d'antes não cre- mos que succedesse. Eis o que pensamos, senhor Mande vossa alteza examinar o nosso voto, e Deus illumine o seu coração para es- colher o que for mais acertado».

Os precedentes conselhos e reflexões são obviamente sensatos. A razão, a justiça, a hu- manidade e a boa politica parece terem-nos inspirado. Ouvidos, porém, sobre elles os fau- tores da Inquisição ou os próprios inquisido- res (1), foram achados quasi inteiramente inad- missiveis. Era natural. E o mais é, que a im- pugnação parece ás vezes concludente, par- tindo das doutrinas juridicas então recebidas Até certo ponto, os aggravos enumerados na

(1) A analyse e refutação da consulta dos chris- tãos-novos acha-se na G. 2, M. 11, N.o 21. Tem por fora em letra coeva uma nota que diz serem apon- tamentos do celebre inquisidor João de Mello.

278 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

consulta eram infundados, admittida a dou- trina de que a igreja ou o estado tinham o direito de intervenção nas crenças dos indi- viduos, e de que a violência e a crueldade po- diam ser um meio de salvação. Assim, parte dos males que resultavam da existência do tribunal da fé, derivando de idéas falsas, seria injustiça attribui-los á v^ontade dos homens. Não succedia o mesmo quanto a certa ordem de factos. Propunha, por exemplo, a consulta que não se prendesse nem processasse nin- guém por delações ou testemunhos de presos^ e que bastassem á intolerância as denuncias feitas por christãos-velhos e por conversos no uso da sua liberdade; dava-se em prova de que este meio racionai era sufficiente o esta- rem encarcerados e processados, em conse- quência de taes denuncias, mais de quinhen- tas pessoas, e ponderava-se que o ódio po- pular seria sobejo para promover accusações de tal ordem. Não negavam estes factos os inquisidores, mas recorriam á consideração de que, sendo o judaisar am crime occulto^ os réus presos podiam saber quem eram os seus co-réus, como se os tormentos e os terrores empregados para fazer falar as vi- ctimas e obrigá-las a inventar cúmplices fos- sem factos indifferentes. O correctivo para

HISTORIA DA INQUISIÇÃC 279

isso e 8 garantia para os culpados que offe- reciam era 8 própria subtileza e integridade no discriminar depoimentos de ta) ordem. Quanto ás prisões feitas em virtude de dela- ções de christãos-velhos. affirmavam que es- sas delações appareciam a principio, quan- do se estabelecia de novo & Inquisição em qualquer districto. e que depois cessavam; defesa pueril porque nada mais natural do que cevarem-se desde logo todos os ódios accumu lados, perseguirem-se de chofre todos os homens impopulares, quando, em qualquer logar, se offerecesse o meio de satisfazer as vinganças pessoaes e as malevolencias da praça publica. Esperar o contrario é que se- ria absurdo. Confessando as propensões do vulgo para jurar falso, oppunham factos a factos, citando processos em que os conver- sos tinham corrompido as testemunhas em seu favor, como se isso não fosse mais uma prova de que a plebe podia ser corrompida também contra elles, e tanto mais que os no- mes de accusadores e de testemunhas fica- vam secretos. Este ponto, porém, de ignora- rem os réus os nomes dos que os culpavam era um dos que os inquisidores reputavam inseparavelmente ligados á existência do tri- bunal, d'onde resultava manterem tenazmente

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a doutrina de que se deviam considerar in- distinctamente como pessoas poderosas os shristãos-novos, esses tiomens sobre quem pesava o rancor popular, a perseguição faná- tica e cubiçosa do rei e de seus irmãos, e a crueldade omnipotente da maior parte do cle- ro secular e regular; homens poderosos, que, aterrados, pensavam em fugir do remo, e contra cuja saída se Lomavam, por apuro de barbaridade, severas providencias, homens poderosos, em summa, que tremiam, e é cla- ro que deviam tremer, não ante qualquer individuo da plebe, mas também ante os pró- prios escravos, quando eram assas abastados para recorrerem a esse único meio de terem servidores domésticos, situação que ninguém da raça chamada pura acceitaria em relação a uma íamilia de conversos. Aos factos pú- blicos e sabidos que os consultores offere- ciam em prova da timidez da sua nação con- trapunham os inquisidores exemplos de vin- ganças individuaes, tomadas por parentes ou amigos de uma ou de outra victima, negando, nesta parte, as affirmativas demasiado abso- lutas dos quatro conversos. Mas suppondo-os verdadeiros, que provariam taes exemplos? Provariam a necessidade de declarar podero- sos todos os habitantes do paiz, para em ne-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 281

ahum processo crime se revelarem ao réu os iiomes do accusador e das testemunhas de accusação. Que sangue vertido de homem não pôde clamar por vingança e achar coração e braço de pae ou de filho, de irmão ou de ami- go, para castigar o assassínio legal, sobretu- do quando, pervertidas as idéas a sociedade applaude actos odiosos, em vez de os con- demnar, despertando o instincto bárbaro do desaggravo pessoal? Propunham os consul- tores que aos criminosos não relapsos se perdoasse ainda depois de entregues ao bra- ço secular, sem que se apurassem os quila- tes da espontaneidade do seu arrependimento. Era am ponto em que também os inquisido- res não convinham, com o fundamento de que, sem o exame da sinceridade dos arre- pendidos, continuando a ser occuitamente ju- deus, dar-se-hia o desacato de frequentarem os sacramentos. Elles, que tanto fiavam de si para affirmarem que sabiam sempre atinar com a verdade, no meio de testemunhos sus- peitos e através de um processo monstruoso, não sabiam como acautelar a perpetração de um sacrilégio pelo réu salvo da morte. A fo- gueira resumia o seu systema preventivo. Em summa, não havia em iodo o papel dos qua- \ro hebreus um imico ponto em que os inqui-

282 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

sidores concordassem plenamente, e se algu- ma cousa concediam era com restricçôes taes, que annullavam a concessão. Para dar uma idéa do seu modo de discorrer, transcrevere- mos também aqui a parte do parecer em que rebatiam a proposta da suppressão dos con- fiscos, «Este apontamento diziam elles não é fundado. Ao menos, não deviam pedir bens para quem mereceu perdê-los. Seria tam- oem inconvenientissimo dá-los a seus filhos e representantes. Os réus esforçar-se-hão as- sim por salvar estes e encubrir-lhes as cul- pas, visto que, por meio delles, conservarão as próprias fazendas, arriscando-se e prefe- rindo tudo 3 denunciarem o judaismo e os erros dos seus próximos herdeiros». Ponde- ração inepta, porque, na hypothese da pena capital não tinha applicação alguma, e era justamente a esta que sempre acompanhava o confisco. O inconveniente verdadeiro con- sistia em deixarem de espoliar as victimas. Entretanto, com certas restricçôes, os inqui- sidores toleravam que se concedesse este fa- vor por algum tempo (1).

As razões dos inquisidores, ou antes a sua pertinácia e os seus meios de influencia, eram

(1) Doe. da G. 2, M. 1, N.«21.

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poderoso obstáculo ao transitório appetite de moderação e cordura que turbara o animo, friamente fanático, do monarcha, A esperança de obter, se não tudo, ao menos melhores condições quanto ao perdão, renascera tam- bém nessa conjunctura com a acquisição de um novo e importante agente. Era este um camareiro valido do papa, chamado Estevam dei Búfalo, o qual chegara a Lisboa nos fins de 1546. trazendo o barrete de cardeal para o infante D. Henriqua Os ardentes fautores da Inquisição tinham-se desde logo apodera- do desse homem . tinham-no lisongeiado, e, provavelmente, corrompido com ouro ou com promessas. Partindo para a Itália nos princi- pios de 1547. Estevam dei Búfalo promettera pintar com vivas cores ao pontifice as vanta- gens da Inquisição e desfazer como calum- niosas as accusações dirigidas contra os in- quisidores, resolvendo assim por uma vez o papa a acquiescer mteiramente aos desejos da corte de Portugal. Suspeitoso, porém, como a experiência o devia ter tornado, da lealdade romana, D. João ni. escrevendo a Balthasar de Faria, recommendava-lhe que espiasse os passos de Estevam dei Búfalo, verificando com dissimulação por que modo cumpria as suas magnificas promessas, mas asseguran-

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do-0 ao mesmo tempo da plena confiança que nelle depositava o monarcha (1).

A verdade é que, no essencial, a questão do definitivo estabelecimento da Inquisição estava resolvida, e que o debate se reduzia ao maior ou menor grau de oppressão que tinha de pesar sobre os christão-novos. Os inquisi- dores desejavam obter a extrema liberdade para o seu terrível poder, e Roma parecia va- cillante em abandonar inteiramente á feroci- dade do fanatismo homens que haviam com- prado por alto preço a sua protecção, tantas vezes estéril. não havia quem se lembrasse das máximas de tolerância da nossa idade média, ainda tão eloquentemente defendidas nos conselhos de D. João ii e de D. Manuel. Agora, como vimos da consulta dos quatro christãos-novos, a raça hebréa, a gente da nação, pobres estrangeiros no seio da pátria, contentava-se com algumas garantias de re- gularidade e de justiça nas praxes do tribu- nal da fé. Nos documentos desapparecem gradualmente todos os vestigios dos enérgi- cos esforços, dos enredos hábeis, dos sacrifi- cios pecuniários feitos por tantos annos em

(1) C. d'elrei a B. de Faria de 22 de janeiro de 1547, na Corresp. Orig., f. 230.

HISTORIA DA ÍNQUISIÇÃO 285

Roma. Tudo se reduz a sollicitarem que o perdão, quanto ao passado, não seja absolu- tamente illusorio. E' o desalento das victimas que cruzam os braços, resignadas na sua su- prema affíicção. Acaso a noticia da veniaga proposta pelo rei, e de cuja acceitação pelo pontifice os factos ulteriores nos dão irrefra- gavel testemunho, fora mal guardada, e os christãos-novos haviam avaliado, talvez, esse pacto de injustiça e de sangue como um golpe irreparável. De feito, podiam elles as- segurar ao joven cardeal Farnese, ao neto querido de Paulo iii, uma pensão vitalícia igual á somma annual que em seu beneficio elrei queria distrahir dos redditos da igreja portuguesa? E, ainda suppondo que podes- sem, por um grande sacrifício, offerecer igual ou maior pensão, qual era a garantia da sua perpetuidade? De um lado estava um con- tracto sobre solidas hypothecas e a que ha- viam de servir de titulo bulias pontifícias v actos do poder real: do outro podia haver convenções occultas com uma raça avara e perseguida . convenções cujo cumprimento ficaria dependente da lealdade e dos incertos recursos de milhares de indivíduos. A esco- lha não era duvidosa. Exigir que a familia Farnese sacrificasse interesses gravissimos e

286 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

seguros aos preceitos do evangelho e ás leis da humanidade era exigir demasiado Na verdade, o pontifice declara solemnemente que, se abandonasse os christãos-novos aos furores da Inquisição, Deus buscaria um dia as manchas do sangue das victimas, tanto nas mãos do rei de Portugal como nas delle, mas isso eram phrases vans que haviam es- quecido. A raça hebréa fora, a finai, achada mais leve na balança da justiça de Roma, e por isso era condemnada, A discussão, numa ou noutra particularidade do negocio, signi- ficava apenas a necessidade de guardar cer- tas formulas convencionaes de decência, ou era, talvez, uma destas transacções com o remorso, que se fazem para illudir a cons- ciência, a qual nem sempre a suprema cor rupção alcança reduzir ao silencio. Na rea- lidade, porém, todas essas disputas, mais ou menos insignificantes, não alteravam essen- cialmente o definitivo resultado.

LIVRO X

LIVRO X

Ultimas resoluções do papa sobre o perdão dos christãos-novos e organisação definitiva do tribu- nal da fé, que Balthasar de Faria acceita ad refe- rendum. Instrucção de Farnese ao núncio Ricci acerca da inteiJigencia daquellas resoluções e acerca do preço da concessão. Pouco satisfeito das restricções que ainda se lhe impunham, el- rei revalida a lei de 1535, prohibindo à gente da nação a saída do reino, e communica ao seu agente em Roma alterações que acceita. Faria abstem-se de propor estas ultimas e insiste na concessão pura e simples. Motivos que para isso havia. A corte de Roma resolve-se a enviar a Portugal o cavalleiro Ugolino com as bulias e breves redigidos na forma das decisões toma- das. Instrucções secretas que elle recebe. Mú- tuos receios das duas cortes. Procedimento en- contrado de Faria em Roma e de Ricci era Lis- boa.—O bispo do Porto D. Fr. Balthasar Limpo em Itália. Intervenção deste no negocio do tri- bunal da fé. Temor que o prelado português incute pela audácia da sua linguagem. A cúria cede gradualmente.— Partida de Ugolino para i^isboa. Diplomas pontifícios trazidos por elle.

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A Inquisição é instituída na sua íbrma mais completa pela bulia de 16 de julho de 1547.— Termina-se a questão das rendas de D. Miguel da Silva, e a administração da diocese de Viseu é entregue a Famese.— Calculo incompleto do que a Inquisição custou ao paiz. Situação e proce- dimento do cardeal de Viseu.— Idéa rápida da ul- terior historia da Inquisição Testemunho insus- peito do bispo de Chisamo. Epilogo

Tal era o estado a que as cousas tinham chegado nos primeiros mezes de 1547 O drama precipitava-se evidentemente para o desenlace. Em abril, os cardeaes encarregados de tractar aquelle difficil assumpo tomaram, emfim, um accordo, que Balthasar de Faria, cansado de longos debates, entendeu dever communicar a elrei como derradeira resolu- ção do pontifice. Esta decisão satisfazia em grande parte ás ultimas proposições feitas por intervenção do núncio. O perdão seria applicado aos réus convictos, que, confes- sando os seus erros, os abjurassem solemne- mente, pelo que ficariam soltos e livres sem penitencia alguma. Não era, porém, uma amnistia completa, porque o delicio não es- quecia de todo : novos actos de judaismo collocariam desde logo o réu perdoado na condição de relapso ou reincidente. Os que

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na conjunctura do perdão se achassem nesta categoria seriam penitenciados a arbi- trio dos inquisidores, não podendo, todavia, ser relaxados á cúria secular ; isto é, ficariam salvos da pena ultima, que em regra se im- punha aos relapsos. Excluiam-se do beneficio do perdão: 1.°, todos os deliquentes que não fossem de raça hebréa; 2.*, todos os confi- tentes, contumazes no erro; 3.**, todos os que, julgados e sentenceiados a penas tempora- nas, andassem cumprindo sentença. Tal se- ria, em substancia, a matéria da bulia do per- dão. Acompanhá-la-hia um breve, pelo qual se revogariam de golpe todos os que se ha- viam concedido a quaesquer indivíduos, ou para os exemptar de serem mettidos em pro- cesso, ou para os subtrahir á jurisdicção dos inquisidores, dando-lhes juizes apostólicos es- peciaes. Roma tinha havido, durante vinte an- nos, sommas avultadas pela venda desses breves ; mas fazendo aquella espécie de ban- carrota de misericórdia, ainda mostrava uns restos de boa consciência: a revogação não se estendia aos breves concedidos aos pro- curadores que defendiam na corte pontifícia a causa dos christãos-novos ou aos seus pa- rentes que residiam em Portugal. Batretanto, a excepção não promettia demasiada segu-

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rança aos favorecidos. Uma carta, dirigida officialmente a elrei por Santafiore, em nome do papa, modificaria aquella excepção. O pon- tífice mantê-la-hia emquanto o exceptuado procedesse bem, e o exceptuado procederia bem emquanto elrei não representasse ao papa que procedia mal. Supposta semelhante queixa, o respectivo breve de exempção seria revogado. Finalmente, dirigir- se-hia a elrei ou- tro breve, não preceptivo, para que fosse per- mittida durante um anno a saída do reino aos christãos-novos que delle quizessem ausen- tar-se, sem os prenderem ou metterem em processo emquanto durasse aquelle praso, e para que podessem levar o que possuiam, não sendo cousas cuja exportação fosse prohi- bida. Neste ponto, os agentes da raça votada ao extermínio tinham tirado do excesso do desalento energia para um derradeiro esforço. Tinham supplicado e clamado que se dei- xasse aos seus infelizes committentes ao me- nos a liberdade do desterro voluntário. Obser- vavam que, de outro modo, o perdão seria perfeitamente illusorio; porque os perdoados poderiam ser presos, apenas soltos, ou por novas denuncias, ou por simples suspeições de recentes delictos, que, suppondo-se pro- vados, os levariam immediatamente á fogueira

HISTORIA DA INQUíSIÇÃO 293

como relapsos. Pediam, pois, que lhes fosse permittido fugir, não se procedendo contra elles durante um certo praso, sem o que tam- bém essa permissão seria inútil. Tão justifi- cada parecera a supplica, que Paulo m não se atrevera a desattendê-la inteiramente, e por isso se devia expedir aquelle breve. Mas, suppostos o animo implacável d elrei e a in- flexibilidade dos inquisidores, as disposições desse breve, privadas de caracter preceptivo, eram bem frágil garantia. Entretanto, como se isso não bastasse, as simples rogativas do papa ainda eram modificadas pelo mesmo meio por que se modificara a exempção dos procuradores dos christãos-novos em Roma. Santafiore escreveria outra carta a elrei em que se daria uma interpretação mais restricta ás sollicitações do pontifice. Deviam estas en- tender-se como relativas aos suspeitos ou accusados de delictos occultos e não quanto áquelles cujos actos heréticos fossem públi- cos e notórios, contra os quaes se procede- ria, dando depois conta ao papa. Exigir-se-hia, além disso, da gente da nação uma fiança de quarenta a cincoenta mil ducados, pela qual se obrigassem em geral os christãos-novos a que nenhum dos que obtivessem a permissão de sair do reino se acolheria a terra de infiéis.

294 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

O preço que dessa somma se havia de dedu- zir por cada contravenção, deixava o papa a elrei determiná-lo ; mas a sua applicação ha- via de ser para as obras de S. Pedro em Roma. Era uma applicação que aplanava todas as difficuldades, e Faria chegara facil- mente a esse accordo (1).

Ao passo que o agente português commu- nicava a D. João iii o estado do negocio, Far- nese communicava-o igualmente a Ricci, ex- pondo-lhe os motivos e a significação das ul- timas resoluções, e habilitando-o assim para satisfazer a quaesquer reparos e para obviar a interpretações menos exactas, que podes- sem falseiar as intenções do pontifice. O ponto que elle reputava, com razão, mais grave era o da liberdade que se pedia para os chris- tãos-novos de saírem do reino por espaço de um anno, tomando-se as providencias para que esta concessão não fosse sophismada. A certeza, dizia o cardeal ministro, que sua sanctidade tinha de que elrei nunca impedira

(1) C. de B. de Faria a elrei de 3 de maio de 1547, (ca qual fiança se aplicase polas obras de S. Pedro: que com isto lhes armei; cpie d'outro modo nunca fora possivel»: Ibid.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 295

essa saída, conforme elle próprio affirmava. e por consequência a esperança de que acce- deria facilmente a semelhante condição, fora um dos principaes motivos que o haviam movido a conceder a Inquisição em toda sue plenitude. Aquella providencia era da mais alta justiça, visto que cessavam todos os fa- vores e exempções concedidos até ahi á gente hebréa, e que o tribunal da ia pesar sobre ella todo o seu rigor. A própria reputação do rei e dos inquisidores ganhava com tal con- cessão, porque, de outro modo, poder-se-hia dizer que os fins occultos de tanto zelo vi- nham a ser somente despojar os christão-no- vos dos bens e da vida, e não manter o reino illeso de heresias. As intenções do papa a este respeito eram decisivas. O preferir-se a formula de as manifestar em breve separado, e em forma de exhortação, fora porque o agente português o exigira, como demons- tração de confiança em elrei e com a pro- messa de que effectivamente se daria licença para sair do reino a quem quer que a pe- disse, não se podendo recorrer a nenhum pretexto para a denegar, nem sequer ao de estar o individuo que a pretendesse indiciado de heresia occulta. Assim, os que se au- sentassem não fariam damno, e os que ex-

296 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

pontaneamente ficassem poderiam ser casti- gados, em passando o anno, se delinquissem, ou ainda dentro do anno, se perpetrassem al- gum delicto contra a publico e escanda- loso. No ponto que particularmente lhe inte- ressava, Farnese advertia o núncio de que o papa conviera em o encarregar a elle cardeal- ministro da administração do bispado de Vi- seu e em provê-lo nos benefícios de D. Mi- guel da Silva, sobre o que iam ser expedidas as bulias e os mais despachos necessários; mas prevenia-o de que sua sanctidade tinha applicado todos os fructos e rendas, até ahi sequestrados, á fabrica de S. Pedro, fazendo assim o gosto a elrei de não ir nem um ceitil parar ás mãos do cardeal da Silva, e de se dar a essas avultadas sommas uma applica- ção inteiramente pia, desprezada, aliás, a inau- dita pretensão do religioso manarcha, que suspirava por ser quinhoeiro naquelles des- pojos opímos. Bastava o que bastava. Muito fizera sua sanctidade em não pugnar pelas immunidades ecclesiasticas, mantendo os di- reitos de D. Miguel da Silva. Fazia o sacrifí- cio de ficar com tudo. Se elrei se mostrasse pertinaz em querer o seu quinhão, podia es- tar certo de que todo o negocio da Inquisição se transtornaria, o que seria pena, visto ha-

HISTORIA OA INQUISIÇÃO 297

verem chegado as cousas a termos tão plau- síveis (1).

Não achou, porém, D. João iii esses termos oão vantajosos, quando soube do ultimo ac- cordo. Se o papa não queria perder um real do preço do sangue dos christãos-novos e da vingança implacável contra D. Miguel da Sil- va, também elle pela sua parte não estava muito inclinado a acceitar concessões incom- pletas e limitações que diminuiam o valor in- trinseco do género que comprava. A primeira resposta que deu ás communicações que se lhe faziam, por via tanto do núncio como de Balthasar de Faria, foi revalidar por mais três

(1) Lettera ai nunzio di Portogallo, na Symmicta. vol. 29, f. 75. Para que ninguém suspeite que subs- tanciamos essa incrível carta inexactamente, trans- creveremos aqui os seus últimos períodos ; «non lasciarô etiam daggiungere come sua beatitudine na concesso et applicato alia fabrica di S. Pietro tutti li fruti passati delle chiese et beneficii sopra- detti dei tempo che sua altezza gli ha fatti pigliare, acciochê non solo se li satisfaccia in non darli a esso Viseu, ma etiam in convertirli in uso pio, per- che per lasciarne una parte per distribuire di costa, secondo domandava sua altezza, non c'é stato or- dine ottenerlo da sua santità, parendoli d'haversi por troppo lasciato andare nelle altre cose, in modo che se si fosse voluto per la parti di sua altezza

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annos a iei de 1535, que prohibia a todos os christãos-novos a saída do reino sem ex- pressa licença regia, ou sem darem fiança de quinhentos cruzados, pelo menos (1). Mandou depois escrever para Roma uma carta severa ao seu agente por ter admittido naquella for- ma a conclusão do negocio. Ahi, analysando- se o perdão, mostravam-se os inconvenientes de se deixarem ir soltos e livres os que con- fessassem e abjurassem seus erros, sem se- rem doutrinados e penitenciados espiritual- mente. Faziam-se altas queixas de que os que

star pertinace in questo, si sarebbe perturbato tutto il resto delia spedizione, la quale per la grazia de Iddto, é condotta a quel buono porto, etc.» O haver- si pur troppo lasciato andare nelle altre cose ex- plica-se por uma passagem anterior da carta, não menos singular, em que Farnese allega o sacrifício que o papa fazia em lhe metter na bolça os rendi- mentos do bispado de Viseu e dos outros benefícios do infeliz D. Miguel da Silva. Tinha consentido nisso, dizia o neto, para contentar elrei, posto que non si satisfaceva ai \debtto delia liberta ecclesias- tica, e deWhonore di questa sede, nondimeno per levare, quanto a se, matéria de mala satisfazione, et quanto a sua altezza carico, ha Jinamente acon- sentito, .etc^

(1) Lei de 15 de julho de 1547, em Figueiredo, Sy- nops. Chronol., T. i, pag. 401.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 299

estavam relapsos ficassem exemplos do castigo civil, o que nem no tempo de Cle- mente vil se fizera. Ponderava-se a necessi- dade que havia de se declarar que os presos. os suspeitos, e os que estavam accusados em juizo deveriam abjurar também, vista a suspeição vehemente, e indicava-se a não me- nor necessidade de se ordenarem reconcilia- ções secretas para os que se sentissem cul- pados, a fim de gosarem do perdão. Recor- dava-se a Balthasar de Faria que era com estas prevenções que se conviera em admittir aquelle perdão, quando o papa, tendo suspen- dido a auctoridade dos inquisidores, parecia inclinado a não ceder sem esse acto de cle- mência. Taes haviam sido as instrucções que recebera naquella conjunctura e que não de- veria ter esquecido. Repellia-se igualmente a idéa de não se haverem de syndicar durante um anno os crimes occultos de judaismo e de se dar conhecimento á cúria romana dos processos por crimes públicos antes da sen- tença final. Estas dilações não faziam senão escandalisar o povo e annullar os salutares effeitos do castigo. Rejeitava-se, ainda com maior energia, a idéa do breve exhortatorio para se deixarem os christãos-novos sair li- vremente do reino durante um anno. Era ma-

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teria que se havia debatido largamente em Portugal numa juncta de theologos e juriscon- sultos, os quaes haviam resolvido negativa- mente a questão. O arbitrio da fiança geral, no entender da corte de Lisboa, era cousa inexequível, além de que nenhum proveito d'ahi vinha nem ao rei nem ao reino. Tudo, pois, quanto nas resoluções pontifícias relati- vas ás ultimas propostas enviadas para Roma desdizia destas devia rejeitar-se; e quando, em ultimo caso, o papa recusasse formal- mente mudar de resolução, ordenava-se a Balthasar de Faria que cedesse em tudo, me- nos em se conceder o anno de espera para a Inquisição proceder contra os delinquentes occultos, Supposto fazer-se uma excepção a favor dos procuradores dos christãos-novos e das suas famílias na revogação geral dos bre- ves de exempção, cumpria também que se declarassem especificadamente 03 nomes de todos os individuos a quem a excepção era applicavel, para que não succedesse aprovei- tarem-se muitos indevidamente dessa vanta- gem (1).

Das cartas tanto de Farnese para Ricci,

(1) G. d'elrei a B. de Faria de 22 de julho, na Cori-esp. Orig., f. 246 e segg.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 301

3omo d'elrei para Faria, conhece-se evidente- mente que a ultima esperança dos hebreus portugueses consistia em abandonarem a pa- iria, num novo sxodo, como o do Egypto, de- senganados já de que não lhes restava outro meio de evitar a perseguição implacável do Pharaoh christão. A resolução em que esta- vam não a escondiam, affirmando publica- mente que nem um ficaria em Portugal (1), imprudência grave, a que, talvez, os excitava o excesso da desesperação, ou o terem no- ticia, provavelmente pelo núncio, de que o papa, concedendo o estabelecimento definitivo da Inquisição, lhes facilitava a saída do reino. Na realidade, o breve que se referia a este assumpto, puramente exhortatorio, estava lon- ge de ser na apparencia garantia sufficiente ; mas da carta de Farnese a Ricci conhece-se que havia a intenção de se lhe dar um valor mais positivo. A idéa reservada que estava, digamos assim, atraz delle, como veremos em breve, faria com que Roma o mantivesse com mais energia do que se fosse preceptivo. Por outra parte, é evidente que D. João iii receia va não ter meios para obstar á fuga dos conver- sos. Numa epocha em que era cem vezes mais

(1) Ibid.

302 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

faci) do que hoje esquivar-se o individuo á vigilância da auctoridade e em que a policia interna e a dos portos maritimos e fronteiras quasi que não existia, nem sempre seria fácil obstar á saída occulta de individuos dispostos a tentar tudo para salvarem as vidas. A difíi- culdade, porém, subiria de ponto, se durante um anno ficassem reduzidos á inacção os olhos perspicazes dos inquisidores e as firmes garras dos seus agentes. Na verdade, a lei de 15 de julho, que renovava por três annos 0 de 1535 sobre a saída do reino dos hebreus convertidos, declarava crime a fuga occulta ; mas nem num paiz profundamente corrom- pido se devia contar demasiado com a mcor- ruptibilidade dos magistrados e officiaes pú- blicos, nem a lei serviria de nada para os que podessem e quizessem perder a fiança de qui- nhentos cruzados, mediante a qual, todos os hebreus um pouco abastados poderiam aban- donar o reino com pretextos commerciaes. A longa lucta que se havia sustentado, a victo- ria que se podia dizer estava alcançada, o preço por que se tinha obtido, tudo ficava em grande parte inutilisado. Sem victimas, sem cárceres atulhados, sem autos de fé, a Inqui- sição era uma puerilidade. A phrase enérgica dos cardeaes acerca dos desejos dos inquisi-

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dores portugueses era uma terrível verdade: queriam carne As riquezas dos hebreus po- diam locupletar os ministros e agentes do tribunal ou os cofres régios, pelos sequestros e confiscos dos bens dos que se ausentas- sem . mas aos echos das masmorras fallece- riam os gemidos, ás fogueiras o alimento, aos ódios profundos o espectáculo de variadas agonias, á íiypocrisia os mais favoráveis en- sejos para simular zelo religioso. Em tudo se podiò ceder, menos em consentir a livre saída dos christãos-novos, concedendo para isso, depois do perdão, o longo praso de um anno, em que a Inquisição ficaria inerte. Nesta con- dição estava principalmente o veneno. Sem ella, era fácil illudir o indulto : com ella tudo ficava perdido. Por certo, pertencia exclusiva- mente ao rei manter a prohibição da saída do reino aos christãos-novos , mas também per- tencia exclusivamente ao papa, estabelecendo a Inquisição com a maior latitude, prohibir que ella funccionasse por certo penodo. Nesta parte. pois. estava a difficuldade No fim da carta e Balthasar de Fana indica va-se-lhe. dada a hypothese de se conservar firme o papa em todas as condições que estabelecera. o ultimo meio a que devia recorrer. Referia- se-lhe, em substancia, o que resultara da con-

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sulta dos quatro conversos, da qual anterior- mente dêmos particularisada noticia. Elrei estava resolvido a annuir em parte a essa con- sulta, mantendo por mais dez annos a exem- pção dos confiscos e tolerando que se esta- tuisse preceptivamente a revelação dos nomes dos delatores e das testemunhas de accusa- çao aos réus não poderosos. Convinha igual- mente em que se admittisse a reconciliação dos relaxados ao braço secular, não depois de entregues aos magistrados civis, como os consultores propunham, mas antes daquelle acto. Supposto este accordo, nem o papa de- via extranhar que elle tivesse revalidado a lei de 1535, nem insistir nas suas resoluções Propunha aquellas vantagens para os conver SOS como compensação, uma vez que fossem supprimidas as condições respectivas desti- nadas a embaraçar a livre acção do tribunal da fé. Era a ultima concessão que estava re- solvido a fazer ao pontifice (1).

Esta concessão, porém, era am erro poli- tico em tal conjunctura. Não desvendava os intuitos dos inquisidores, o preferirem a tudo não deixar escapar as victimas, justifi- cando os que em Roma os accusavam de de-

(l)Ibid.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 305

voradores de carne humana, mas também provava que a firmeza que até ahi se osten- tara não era tão inteira e incontrastavel como a linguagem adoptada recentemente pela corte de Lisboa parecia indicá-lo. Balthasar de Faria, tantas vezes taxado de falta de per- severança, mostrou nesta conjunctura mais tacto que os acérrimos fautores da Inquisi- ção. Dissimulou as instrucções que recebera e continuou a insistir na manutenção das ba- ses que aceitara, escrevendo a elrei para o persuadir de quanto eram inconvenientes as novas propostas. Ajuda va-o a manter na sua persistência um passo imprudente que dera a cúria romana. Segundo parece, os agentes dos hebreus portugueses tinham obtido um salvo-conducto geral para estes serem admit- lidos nos estados da igreja (1). Descuberta a

(1) Cartas de B. de Faria a elrei na G. 2, M. 5, N.° 46 e N." 64, que adiante havemos de citar. Não apparece a correspondência de Faria desde maio até outubro de 1547. Entretanto, das cartas deste ultimo mez e de novembro do mesmo anno vê-se que escrevera mais de uma vez a elrei nesse inter- médio, e que remettera copia de um brece de salvo- conducto affrontoso para Porugal, concedido aos christãos-novos. Descubrindo a existência desse di- ploma occulto, fizera grande rumor em Roma. Um

TOMO III SO

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existência deste diploma secreto, Faria quei- xou-se altamente, não da concessão, mas também da forma delia, porque os fundamen tos do breve eram injuriosos para o governo português. Fossem quaes fossem os motivos pelos quaes aquelle diploma se redigira na chancellarla romana, occorreu desde logo o pensamento de que o salvo-conducto e a in- sistência para que se permittisse a livre saída dos christãos-novos durante um anno tinha mutua correlação. Assim, a questão tomava outra face, e as bases de um accordo que elle acceitara e a favor das quaes insistira com o seu governo, tornavam-se inacceitaveis. Sem o descubrimento do salvo-conducto, e prevalecendo a resolução do papa sobre a fa- culdade da expatria ção para a gente da raça hebréa, D. João iii, que comprara por tão alto preço a Inquisição na sua mais completa

breve de saivo-conducto não podia servir senão para os christãos-novos portugueses serem rece- bidos sem gravame nos estados do papa. Prova- velmente, no preambulo do breve havia algumas phrases duras contra os inquisidores que queriam carne. Da carta do bispo do Porto de 22 de novem- bro, que adiante havemos de aproveitar, se tam- bém qual era o salvo-conducto a que se referia o agente português.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 307

forma, teria feito uma acquisição quasi inútil e ficaria, a bem dizer, burlado em tudo, me- nos na vingança contra o velho cardeal da Silva, que Farnese atirava rindo ás garras do tigre coroado. Dir-se-hia que Roma adoptava, em conjunctura infinitamente mais opportuna, d politica que noutro logar vimos ter adopta- do Carlos v, e da qual era seu instrumento na corte do cunfiado o infante D. Luiz (1). Offerecendo um asylo aos hebreus fugitivos, o governo pontifício achava mais um meio de se locupletar com os despojos de Portugal. A existência da Inquisição romana não obs- tava a que fossem tolerados nos domínios da Igreja os que faziam profissão publica de ju- daismo, e os hebreus portugueses que ainda guardassem intacta no coração a crença de seus pães alcançariam na Itália a liberdade e a segurança que não encontravam na pátria, levando para alli todos os cabedaes que po- dessem salvar.

Faria mostrara- se altamente escandalisado com aquelle acto de evidente dobrez e enche- ra Roma dos seus clamores, tanto contra um procedimento que denunciava intenções re- servadas, como por causa das expressões in-

(1) Vide ante pag. 19.

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convenientes do breve. Não houve remédio senão applacá-io para salvar, quando mais não fosse, as apparencias de desinteresse. Proposeram-lhe que de três partidos se es- colhesse um : ou que mandasse eirei ao papa um alvará secreto em que concedesse por mais dez annos a suspensão dos confiscos, mantendo a prohibição da saída dos hebreus; ou que se permittisse esta, tomando-se as precauções que se julgassem convenientes para que não se acolhessem [a terras de in- fiéis, e ficando para o fisco os proventos das penas impostas aos infractores ; ou, final- mente, que se deixassem sair, tirando-lhes os filhos. O agente português conhecia, porém, que a minima hesitação lhe faria perder a vantajosa situação que a imprudência ou a corrupção da chancellaria apostólica lhe pro- porcionara, e todos os três arbitrios foram formalmente rejeitados. Faria não tinha outra resposta senão que, deixando-se tudo á cle- mência d^elrei, elle saberia ser amplamente generoso, mas que impor-lhe a generosidade era cousa que não se podia acceitar (1). A' vista desta inflexibilidade, a cúria roma-

(1) C. de B. de Faria a elrei de 17 de outubro de áe 1547, na G. 2, M. 5, N. 46.

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na desauctorisada pelo seu procedimento dú- plice, que o agente português não se esquecia nunca de lhe recordar, resolveu-se a expedir nm commissario que trouxesse a Portugal as bulias defiinitivas da Inquisição e do perdão, e os mais diplomas e cartas, que, segundo anteriormente vimos, deviam completar ou modificar as disposições daquellas bulias. Era uma espécie de appelação que se fazia do agente diplomático para o soberano. O caval- leiro Ugolino, sobrinho do fallecido cardeal Santiquatro, foi escolhido por mensageiro da- quelles despachos. Posto que, na apparencia, o papa insistisse nas suas ultimas resoluções, a realidade era que CJgolino trazia instrucções secretas para fechar os olhos, presupposto o caso de elrei não attender ás restricções que se lhe impunham ou ás concessões que se lhe pediam nas cartas que acompanhavam as bulias. Communicando a D. João iii esta cir- cumstancia, que occultamente lhe havia sido revelada por Santafiore e pelo próprio Ugo- lino, Balthasar de Faria lembrava que seria prudente, no que tocava á prohibição da saí- da dos hebreus, não fazer demasiado ruído com a repulsa, ruído em que Paulo iii veria uma intenção de acinte e menoscabo. Devia elrei contentar-se com a promulgação da lei

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de 15 de julho e com empregar a máxima vi- gilância para que os christãos-novos não po- dessem fugir, Ugoiino trazia um breve em que auclorisava a apprehensão dos bens da- quelles que tentassem acolher-se a terras de infiéis. Com este breve podia-se fazer tudo, e até obrigar a voltarem muitos dos que anda- vam ausentes. De resto, Faria aconselhava que elrei fizesse espontaneamente e como pura mercê as concessões que, como transac- ção, se lhe haviam mandado fazer a elle Desvantajosas a esta íuz, desde que se tor- nassem voluntárias não serviriam para aquietar os christãos-novos, mas também con- ciliariam a estima publica ao soberano, que assim se mostrava indulgente (1).

Nas questões politicas entre dous gover- nos, a pertinácia das mutuas pretensões, p não raro as exaggerações de amor próprio suscitam a cada passo incidentes que au- gmentam as difficuldades com que os nego- ciadores têem de luctar e demoram o ac- cordo, ás vezes pouco difficil, na matéria essencial. Naquella conjunctura, porém, o incidente que veio pôr novos estorvos a um negocio que parecia terminado nasceu de uma

(1) Ibid.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 311

causa singular ; a mesma de que Faria tirara vantagens para obter um resultado com que elle próprio não contava inteiramente. Esta causa era o medo. A cúria romana, colhiida numa deslealdade, e presa pela transacção feita entre o rei de Portugal e o papa em be- neficio de Farnese, resolvera sacrificar com- pletamente os malfadados hebreus. Enviando os breves e cartas destinados a protegê-los no primeiro Ímpeto da perseguição, mas re- commendando ao mesmo tempo ao seu agente que não curasse de saber se o rei fazia ou não caso delles, cria salvar as ap- parencias e desonerar-se da própria respon- sabilidade moral, deixando-a a D. João iii. Importava-lhe pouco o julgamento dAquelle que nu o coração do homem. Corrompida e mundana, bastava-lhe que o mundo a absol- vesse. O essencial era não arriscar uma tão excellente veniaga. Se, porém, havia temores em Roma, também em Portugal não faltavam entre os fautores implacáveis da Inquisição. Vimos porque. Eram esses temores que tinham inspirado as ultimas instrucções a Balthasar de Faria, o qual, mais experiente e mais desassombrado, lhes medira o alcance e soubera evitar as suas consequências. Mas o medo não fora em Lisboa corrigido pela

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cordura de alguém, como o tinha sido em Roma. O núncio não somente descubrira que se trepidava ; obtivera, até, que se lhe com- municassem as novas concessões que elrei estava resolvido a fazer em tudo, comtanto que se abandonasse a idéa de íacilitar. pela immunidade temporária, â fuga dos chris- tãos-novos momentaneamente libertados. E* fácil de conjecturar se Ricci se apressaria a transmittir para Roma o que se sabia acerca do sobresalto em que ficara a corte fradesca de D. João in (1). Os effeitos das communi- cações do núncio experimentou-os desde logo Faria. No dia seguinte áquelle em que chegou um estafeta com as cartas de Montepoliziano devia o cavalleiro Ugolino partir para Portu- gal ; mas suspendeu- se immediatamente a sua partida, visto que elrei vacillara. Não se enganava o núncio, asseverando que o exces- so da inflexibilidade, com que se buscava fosse resolvido a final o negocio dos chris- tãos-novos, provinha unicamente de Balthasar de Faria, que ultrapassara as suas ultimas

(1) Effecti vãmente das instrucções dadas depois ao cavalleiro Ugolino por Farnese, as quaes have- mos de aproveitar adiante, se que o núncio cora- municou tudo para Roma em carta de 21 de junho.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 313

instrucções. Deu-se então a entender ao agen- te português que o papa sabia tudo, e que attenta a sua pertinácia, em vez de se tractar com elle a conclusão do negocio, seria Ricci incumbido de o terminar em Lisboa. Tinha Faria prevenido eirei, e por isso dissimu- lou, mantendo-se firme nas suas ultimas de- clarações. Os factos subsequentes vieram ainda uma vez provar que a energia e a fir- meza são as armas de mais fina tempera para domar as pretensões ou desbaratar as astúcias da cúria romana (1).

Achava-se então em Roma um persona- gem que o leitor conhece de sobejo. Era o bispo do Porto, D. Fr. Balthasar Limpo. Tinha elle passado á Itália para assistir ao concilio, que então se continuava em Bolo- nha, depois de celebradas algumas sessões em Trento. No meio da corrupção geral, o caracter austero e o génio violento do pre- lado portuense faziam-no temer na cúria. O inquisidor Fr. Jorge de Sanctiago, que igual- mente fora enviado a Trento como theologo de D. João iii e que se achava casualmente na corte pontifícia quando as cartas de Ricci

(1) C. de B. de Faria a eirei de 17 de novem' ro de 1547, na G. 2, M. 5, N.o 64, no Arch. Nac.

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vieram complicar o negocio da Inquisição, di- rigiu-se a Bolonha e, pintando a D. Fr. Bal- thasar os novos obstáculos que o demónio parecia suscitar á final conclusão de um ne- gocio em que ambos tão vivamente se empe- nhavam, ponderou-lhe quanto seria conve- niente que elle corresse a auxiliar os esfor- ços do agente de elrei para se obter prompto e favorável desenlace. Estavam suspensos os trabalhos conciliares por disputas entre o papa e o imperador Carlos v, que protestava contra a mudança do concilio de Trento para aquella cidade. O bispo do Porto partiu, por- tanto, para Roma, onde, aliás, também o cha- mava o desejo de dizer duas verdades ao papa sobre as intrigas que se agitavam na assembléa de Bolonha (1).

(1) A narrativa deste e dos subsequentes §§ é ti- rada do documento citado na precedente nota, e da carta de D. Fr, Balthasar Limpo a D. João iii de 12 de novembro de 1547, que se acha na G. 2, M. 5, N.*» 37, no Arch. Nacional. D. Rodrigo da Cunha, na Historia Ecclesiastica de Braga, P. 2, G. 31, publicou uma carta attribuida a Gaspar Barreiros, de 22 de novembro de 1547, em que se contém uma narrativa dos successos occoridos em Roma nessa conjunctu- ra rekitivamente ao negocio da Inquisição, que. concordando em grande parte com os documentos

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 315

Que idéa se fazia em Roma do pensar do bispo do Porto e do seu caracter, vimo-lo noutra parte. No que essa appreciação parece ter sido menos exacta é no que dizia respeito á sua pouca ousadia. Se, como também vimos, recuava, e até se humilhava diante do perigo, quando os excessos do seu génio arrebatado encontravam resistência e o collocavam numa situação difficultosa, onde e quando o perigo material não existia, e elle sinceramente acre- ditava ter razão, D. Fr. Balthasar Limpo, longe de ser timido, era dotado de illimitada audácia. A libei-dade da sua linguagem, a se- veridade com que revocava os díscolos ao sentimento do dever, tinham-lhe dado certa importância entre os padres do concilio, o que talvez o illudia sobre a extensão da pro-

que vamos seguindo, se affasta delies em varias circumstancias. A carta de Barreiros foi communi- cada a Cunha por Lousada, que dizia tê-la copiado da Torre do Tombo. O que podemos asseverar é que hoje não se encontra alh tal carta. Não quere- mos dizer com isto que fosse inventada na sua in- tegra por aquelle celebre falsario. Entretanto, en- tendemos que se deve ler com cautela. Nós segui- mos as narrativas de Faria e de D. Fr. Balthasar Limpo, porque existem originaes, e porque são suf- ficientes para esclarecer os successos.

316 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

pria capacidade. O primeiro encontro com o papa foi tempestuoso, apesar das demons- trações de aífecto com que o recebeu Pau- lo III, empenhado em conciliar os ânimos dos prelados estrangeiros no meio das suas dis- córdias com Carlos v sobre o logar onde se deviam celebrar as sessões do concilio. O prelado portuense, antes de entrar no as- sumpto especial que o trouxera a Roma, fa- iou asperamente ao pontifice nos negócios geraes da igreja. Humilhando-o primeiro num terreno em que toda a vantagem era sua, ti- rava d'ahi força moral para vencer as resis- tências nas menos justificadas pretensões acerca da Inquisição. Entendia elle, e era o que teria aconselhado, se, quando se tractava da celebração do concilio, estivesse em Roma, que este devia ter sido convocado para ventilar e resolver as questões de doutrina e condemnar as heresias que pull alavam na Europa, mas que a reforma disciplinar devia partir do papa e unicamente do papa. Quanto ao dogma, confiava no concilio: quanto á re- forma disciplinar, não. «O remédio da igreja, dizia o bispo, está em evacuar os maus hu- mores». Era preciso que o clero voltasse aos cânones apostólicos e aos conselhos dos sanctos- padres. Sem isso, o christianismo

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 317

perder-se-hia quasi irremediavelmente. Acon- selhava ao papa que se mostrasse grato a Deus pelos bens terrenos que lhe concedera, ao menos agora que tão poucos dias de vida lhe restavam, e que reformasse os costumes da igreja; porque Deus lhe retribuiria con- forme as suas obras. Lembrava-lhe que, se não o fizesse, talvez experimentasse a vin- gança divina nos próprios interesses tempo- raes. Era inevitável acudir á igreja. Se elle papa ou o seu successor o não fizessem, fá- lo-hiam os príncipes seculares: se o não fi- zessem estes, fá-lo-hia Deus. Rogava a sua sanctidade que interviesse com firmeza neste assumpto, recordando-se da gloria que tinha cabido a Innocencio iii pelo que fizera por occasião do terceiro concilio lateranense, e da infâmia que recahira sobre o procedimento de Leão X na conjunctura de um novo concilio geral de Latrão. O estado da igreja era into- lerável, e a reforma devia começar pela cúria romana, que era origem das desordens de toda a christandade. De que serviam as re- formações do concilio, se elle papa não lhe dera faculdade para as fazer em Roma? E ainda pelo que tocava ás outras igrejas, as- severa, como testemunha ocular, que não ha- via no concilio dez bispos que quizessem

318 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

essas reformas. Nada esperava daquella as- sembléa de prelados e theologos, nem cria que d'alli viesse remédio para acabarem as heresias; porque não era possivel chamar ao grémio catholico os dissidentes emquanto el- les contemplassem o espectáculo que lhes es- tava dando a igreja (1). Na matéria da Inqui- sição portuguesa, objecto principal da sua vinda a Roma, Fr. Balthasar Limpo repetia todos os logares communs que se reprodu- ziam havia dez annos por parte da corte de Portugal; mas chegou, finalmente, ao assum- pto capital da questão pendente, aos destinos do breve destinado a facilitar a saída do reino aos judeus portugueses. Affeiou em especial ao papa o acolhimento que estes achavam nos estados pontifícios. Saíam, ás claras e occultas, de Portugal, com o nome e caracter de cbristãos, trazendo comsigo seus filhos, para os quaes tinham acceitado voluntaria- mente o baptismo. Chegavam a Itália, declara- vam-se judeus e circumcidavam publicamente aquelles innocentes. Fazia-se isto, a bem di- zer, perante o papa e o concilio, ás portas de Bolonha e de Roma; fazia-se, porque sua san-

(1) C. de D. Fr. B. Limpo, 1. cit.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 319

ctidade lhes dera um privilegio para ninguém os poder inquietar em Ancona por motivos de religião. Em tal estado de cousas era im- possivel querer elle que elrei lhes permittisse a livre saída do reino, para virem declarar-se iudeus nas terras da igreja, porque a corte de Roma ganhava com isso. Longe, pois, de empecer a Inquisição portuguesa, sua san- ctidade deveria generalisá-la nos próprios do- minios. Aconselhava isto em nome da reli- gião: exigia aquillo em nome do seu sobe- rano, e em recompensa dos serviços que ao christianismo tinha feito e estava fazendo o reino de Portugal (1).

A eloquência de D. Fr. Balthasar não pa- rece ter attrahido a attenção do pontifice, na segunda parte do seu discurso, do mesmo modo que a despertara nas questões geraes da igreja. Tinha ouvido tantas vezes repetir aquelles logares communs em abono da In- quisição, que os olhos se lhe cerravam som- nolentos no meio do enthusiasmo do antigo carmelita. Se este, porém, se calava, o papa, até ahi embalado por aquelle som monótono, despertava com o silencio e dizia-lhe que con-

(i) Ibid.

320 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

tinuasse (1). Mal podendo resistir, por fim, ao somno, Paulo iii ergueu-se e começou a pas- seiar pelo aposento. Redobrava o zelo do pre- lado. Faria estava presente, e é crivei que for- cejasse também por excitar o animo dormente do velho e aborrido pontifice. Emfim, este despediu-os com expressões corteses e com vagas promessas acerca da Inquisição, re- commendando ao bispo que repetisse o que lhe dissera sobre a reformação do clero aos cardeaes seus netos e que se recolhesse a Bolonha, confiando na sua sollicitude pelo bem da igreja universal (2).

Mas nem o prelado do Porto, nem Baltha- sar de Faria eram homens que se embalas- sem com vans palavras. O bispo não tardou a descubrir que, imbuido pelo cardeal De Grescentiis, o papa queria manter em grande parte o que resolvera acerca dos hebreus por- tugueses, acaso porque as ultimas informa- ções do núncio lhe faziam esperar que elrei se resignasse a acceitar essas resoluções. Oc- cultavam, porém, a Faria o propósito do pa-

(1) «E como elle tosquenejava eu me calava, e elle tornava a encommendar-me que fosse avante»: Ibid.

(2) Ibid.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 321

pa, o que indicava que não era uma simples astúcia a insinuação que lhe haviam feito de que prefeririam negociar por intervenção do núncio, se elle não descesse da sua pertiná- cia. D. Frei Balthasar dirigiu-se de novo ao Vaticano. Exigia do pontifice uma solução precisa, sem o que não voltaria a Bolonha. Era tão positiva a linguagem do carmelita, que Paulo iii teve de dar clara e terminante resposta. Foi esta que estava resolvido a con- ceder tanto quanto elrei quizesse, uma vez que se não negasse aos christãos-novos a li- berdade de saírem do reino, limitada pela promessa de não se acolherem a terra de in- fiéis, de que dariam fiança. O despeito do prelado suggeriu-lhe então phrases que, de certo, não peccavam por excesso de bran- dura. Aquella condição de darem fiança, que- rendo sair do reino, era uma burla. Que mon- ta, dizia elle, irem para terras de infiéis ou para Itália ! Vem circumcidar-se a Ancona, a Ferrara ou a Veneza, e d'aqui passam para a Turquia. Têem privilegio pontificio para nin- guém lhes perguntar se porventura são ju- deus : não trazem sequer signaes que os dis- tingam, e vão livremente celebrar o seu culto nas synagogas. Ponderava quão gi"ande nu- mero delles as frequentavam, uns baptisados

TOMO III 21

322 HISTORIA D.i INQUISIÇÃO

em Portugal na infância, outros condemnados á pena ultima e queimados em estatua por judaisarem. Com a liberdade que se lhes que- ria dar, todos os christãos-novos portugueses poderiam ser judeus á sua vontade, sem um pôr em terra de infiéis. Nunca, porém, elrei acceitaria tal situação ; nem haveria theologo, ou sequer simples christão, que para isso o aconselhasse. Em vez de tentar pôr a salvo os judeus portugueses, o papa de- via multiplicar as Inquisições nos seus esta- dos, e punir não os herejes lutheranos que os inficionavam, mas também os réus de ju- daísmo que se acolhiam á Itália (1).

Provavelmente no meio do seu discurso o intolerante prelado deixara transparecer al- guma allusão ao preço por que elrei com- prara as complacências que exigia do papa. Este, pelo menos, respondendo ao bispo, con- fessou os favores que ultimamente recebera do monarcha nas mercês feitas a Farnese e a Santafiore, que de facto estava exercendo o pingue cargo de protector de Portugal ; mas limitou-se a dizer-lhe que tractasse o negocio com De Crescentiis, dando a entender que tudo se faria como elle sollicitava.

(1) Ibid.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 323

De feito, ajudado por Farnese e por Bal- thasar de Faria, o bispo chegou a obter do cardeal De Crescentiis que cedesse na ques- t-50 capital da livre saída dos christãos-novos. Se acreditássemos Faria, o prelado portuense mostrou-se então inclinado a admittir que, as- sentado este ponto, fossem os crimes de he- resia processados segundo as regras de di- reito commum, e não conforme os estylos e formulas especiaes da Inquisição. A sua igno- rância nas matérias jurídicas, de que dera tantos documentos como inquisidor, não lhe deixava alcançar as consequências de seme- lhante concessão. No entender do agente or- dinário, isso equivaleria a renovar todos os anteriores debates. Convcnceu-se D. Fr. Bal- thasar, e ambos accordes continuaram em manter as suas pretensões absolutas. A per- tinácia dos dous triumphou a final : successi- vamente foram supprimidas todas as limita- ções ao amplo exercício do poder concedido aos inquisidores. Teriam plena faculdade para prenderem os christãos-novos logo depois de perdoados, e de os processarem em confor- midade do absurdo systema dos tribunaes da fé, ao passo que a auctoridade civil poderia pôr quaesquer obstáculos á sua saída do rei- no, convertendo-se assim numa graça illuso-

324 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

ria a bulia do perdão. As únicas restricções que deviam manter-se consistiam na suspen- são dos confiscos por mais dez annos, e em não serem relaxados ao braço secular por um anno os réus de crime capital. Estas duas concessões eram, porém, daquellas que elrei espontaneamente admittira entre as que lhe haviam sido suggeridas na consulta dos qua- tro conversos (1).

Das correspondências do bispo do Porto e do agente ordinário vê-se que ambos elles buscavam attribuir-se a principal gloria do feliz desenlace daquelle espinhoso e tão dis- putado negocio, sem, todavia deixarem de elogiar-se mutuamente pelo seu zelo. A ver- dade é que, embora a longa experiência e os conhecimentos jurídicos tornassem Balthasar de Faria mais hábil negociador, o génio im- petuoso, a austeridade fanática e a situação especial do antigo carmelita foram que rom- peram por uma vez a rede das astúcias ro- manas. No estado vacillante em que se acha- vam as cousas do concilio, o que sobretudo o papa não queria era que D. Fr. Baltha- sar se retirasse para Bolonha descontente

(1) C. de B. de Fana a elrei de 17 de novembro de 1547, 1. cit. C. de D. Fr. B. Limpo cit.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 325

delle (1). Forçava-o isso a ceder ás suas vi- vas, ou antes rudes instancias, acerca da In- quisição portuguesa. Mas acima disso estava uma consideração de maior momento. O bis- po, que parece ter-se limitado nos seus deba- tes com o papa a allusões indirectas sobre o preço por elrei pagara as concessões que pe- dia, foi um pouco mais explicito com o car- deal De Crescentiis e com o cavalleiro Ugo- lino, fazendo-lhes perceber que o negocio de Farnese não chegaria jamais a conclusão de- finitiva emquanto a ella não chegasse igual- mente o assumpto da Inquisição. Para resis- tir a um argumento tão peremptório não havia arma que valesse no arsenal das subtilezas de Roma (2).

(1) «e porque lhe eu dizia que me queria partir, e elles desejavam muito que eu tosse ao concilio. me disse o cardeal Crescencio «o papa não quer que vades d'aqui descontente»: Ibid.

(2) (algumas vezes dei a entender ao cardeal Crescencio e ao cavaleiro Golino, creado de Farnés, que vai, que não cuidasse ninguém que se avião dacabar as cousas do cardeal Farnés nos negócios de Viseu com ficarem por acabar as da Inquisição, que eram de Deus e d'E]Rei nosso Senhor; e quem fosse sem ellas irem acabadas, hia gastar di- nheiro e tempo em vam»: Ibid.

326 HISTORIA Da inquisição

Assim se immergia no horisonte a ultima iuz de esperança dos desditosos hebreus. No- ticiando a elrei a próxima partida de Ugolino e a feliz solução do negocio, Faria inculcava com arte a conveniência da moderação. Mos- trava quão pouco valiam certas particulari- dades da bulia de perdão a que em Lisboa se dava grande importância, e sobre que se haviam feito recommendações pueris: talvez eram o não se terem auctorisado os inquisi- dores para darem penitencias espirituaes aos que pela bulia ficavam perdoados, o eximir os relapsos de serem entregues, por aquella vez, á cúria secular, e não se mandarem ab- jurar os vehemente suspeitos, nem fazer re- conciliações secretas a quaesquer outras pes- soas que quizessem aproveitar-se do beneficio do perdão geral Tudo isso importava pou- quissimo, visto que, relapsos ou não relapsos, processados ou não processados, suspeitos ou não suspeitos, todos ficavam, passada a van cerimonia do perdão, sujeitos á ilimi- tada auctoridade dos inquisidores, sem appe- lação, sem garantias, sem a esperança sequer de poderem declinar o foro do tribunal da fé, obtendo juizes apostólicos. A batalha estava completamente ganha desde que se decidira que as victimas não saíssem do reino, e que

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 327

OS algozes podessem exercer livre, plena e immediatamente seu officio. O agente adver- tia elrei dos inconvenientes que poderia tra- zer insistir-se em bagatellas e em vans subti- lezas, quando tudo quanto era essencial se tinha amplamente obtido, sem exceptuar a re- moção do núncio Montepoliziano que se mos- trara tão parcial dos christãos-novos, e que o papa promettia substituir (1).

Ao passo que D. Fr. Balthasar partia para Bolonha, saía de Roma para Lisboa, pelos fins de novembro (2), o cavalleiro João Ugo- lino com a bulia definitiva da Inquisição e mais diplomas concernentes a este objecto. Trazia igualmente poderes para convir no modo practico de se realisar a translação das rendas do bispado de Viseu e dos mais bene- ficios de D. Miguel da Silva para o antigo protector do infeliz prelado. Antes de partir João Ugolino recebeu do cardeal-ministro largas instrucções, tanto sobre um como so-

(1) C. de B. de Faria de 17 de novembro, 1. cil.

(2) Três cartas de Margarida d'Austria e dos cardeaes Farnese e Santafiore para a rainhia D. Ca- tharina trazidas por Ugolino (Collecç. do Sr. Mo- reira, Quad. 8> são datadas de 24 e 26 de novem- bro.

328 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

bre outro assumpto, Dividiam-se os diplomas pontifícios relativos ao negocio dos christãos- novos em duas categorias : uma dos cfue lhes eram, ou antes simulavam ser favoráveis : ou- tra dos que se referiam ao estabelecimento definitivo do tribunal da fé. Eram os primei- ros, além da bulia de perdão, um breve exi- mindo do confisco por dez annos os crimi- nosos sentenceiados; outro suspendendo por um anno a entrega ao braço secular dos réus de crime capital ; outro, emfim, dirigido a elrei para interpor a sua paternal sollicitude, a fim de que a Inquisição procedesse com brandura (1). Explicava-se, porém, nas ins- trucções a interpretação, na verdade dema- siado lata, que o papa queria se desse áquella vaga recommendação de benevolência. Tanto o commissario como o núncio deviam insistir com elrei para que acceitasse essa interpre- tação. Era, t=ob a forma exhortatoria, quasi o

(1) Instruzíone per li cavaJier Ugolino; Sym- micta, voi. 33, foi. 140 e segg. Acha-se uma versão portuguesa desta Instrucção na G. 2, M. 3, N.» 41, no Arch. Nac. É singular que de todos estes diplo- mas só se encontre na vasta coUecção de Bulias e Breves da Torre do Tombo o ultimo, dirigido a elrei : Breve Licet nos de 15 de novembro de 1547 no M

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 329

mesmo que anteriormente se exigira como condição (orçada. O papa desejava ardente- mente que se não prendessem durante o pri- meiro anno os réus de crimes occultos. Fica- va-lhe assim, a elle pontifice, alliviada a cons- ciência do remorso de ter submettido a raça hebréa a todos os rigores da Inquisição, ao passo que eirei tiraria dessa inesperada indul- gência grandes vantagens materiaes. Desejava também o papa que por algum tempo não usassem os inquisidores das faculdades da nova bulia em toda a sua plenitude, ou mais claro, que se procedesse nos crimes de he- resia como se estatuirá na bulia de 1536. conforme as regras do processo civil para os crimes communs. Na bulia de perdão estabe- lecia-se que os convictos e confitentes fizes- sem abjuração publica, e todavia desejava sua sanctidade que abjurassem perante um notário e algumas testemunhas, em vez de

7 de Buli. N.<» 3. De certo, era sobretudo aos chris- tãos-novos que importava promover a expedição daquelles diplomas, e vê-se da Instruzíone que Ugo- lino trazia ordem de os entregar aos chefes da na- ção, mas é incrível que não fossem transmittidos também a elrei. Quem sabe se esta falta corres- ponde a algum mysterio de iniquidade hoje desco- nhecido?

330 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

servirem de espectáculo ao povo num cada falso (1). Os diplomas relativos ao tribunal da eram a nova bulia orgânica, outra por que se annullavam e cassavam todas as exemp- ções, e um breve dirigido a elrei que devia servir de carta de crença ao cavalleiro Ugo- lino. Todos estes documentos, ignoramos por- que, vinham com antedata (2). Na bulia orgâ- nica, destinada a substituir a de 23 de maio de 1536, depois de um preambulo, onde se epitomava a historia das phases por que até ahi passara a Inquisição portuguesa desde a sua primeira fundação, alludia-se ao perdão geral que se acabava de conceder aos até en- tão culpados do crime de heresia. Depois desta prova de indulgência, o pontífice estava resolvido a proceder severamente. Para isso, abrogando a bulia de 1536, avocava a si to- dos os poderes conferidos por ella ou delia

(1) Inslruzione: Ibid.

(2) A bulia orgânica, que começa Meditatio cor- dis, é datada de 16 de julho de 1547 (M. 9 de Buli. N.o 11 e N.o 16, no Arch. Nac): a bulia Romanus Pontifex, em que se revogam as exempçôes, é da- tada de 15 do mesmo mez (M. 7 de Buli. N.» 21): fi- nalmente o breve Cúm saepiús, annunciando a elrei a remessa da bulia Meditatio cordis, é datado de 5 de julho (M. 7 de Buli. N « 6)

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 331

derivados, dando-os de novo ao infante car- deal D. Henrique e aos inquisidores seus de- legados. Supprimia todas as modificações e limitações até ahi impostas á Inquisição de Portugal e cassava sem excepção a auctori- dade concedida a qualquer delegado apostó- lico para conhecer de tal ou tal delicto contra a religião. A Inquisição, assim constituída, procederia em conformidade da jurisprudên- cia que geralmente regulava aquella institui- ção, e os inquisidores usariam de toda a ju- risdicção, preeminências e prerogativas que por direito, uso e costume pertenciam aos in- divíduos revestidos de semelhante dignidade, continuando e terminando todos os processos de heresia, sem exceptuar sequer os avoca- dos á cúria pontifícia. Concluía declarando ir- rito e nullo tudo quanto f)odesse contrariar as amplíssimas disposiçâes daquella bulia (1). Todavia, o próprio papa a limitara noutra bulia (que se fingia preceder aquella) desti- nada á revogação expressa dos breves de exempção, singulares ou collectivos, passados a favor da raça hebréa, mas em que se de- claravam exemptos da jurisdicção do Sancto-

(1) Bulia Medltatio cordi.% 1. cit.

332 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Officio OS procuradores e agentes dos chris- tãos-novos que estavam ou tinham estado em Roma tractando dos negócios communs e os individuos pertencentes ás familias dos mes- mos procuradores e agentes (1).

No breve dirigido a elrei em que se annun- ciava a expedição das precedentes bulias, e que era como a carta de crença do cava 11 eiró Ugoiino, resumia-se a matéria delias, manifes- tando ahi o papa os seus desejos e as suas esperanças de que a Inquisição, revestida de tão illimitados poderes, procedesse com a maior moderação. Esse breve era, porém, ao mesmo tempo um triste documento de impu- dência. Sobre o que elle mais se dilatava era acerca da questão das rendas da mitra de Viseu e dos benefícios de que fora espoliado D. Miguei da Silva. Como dissemos, João Ugoiino vinha auctorisado para reduzir a ef- feito aquelle ignóbil contracto, e não houvera sequer o pudor de annunciar isto num diplo- ma diverso. Conforme a opinião dos membros do sacro coUegio, os inquisidores queriam carne humana : a cúria subministrava-lh'a ; mas na carta de aviso certificava aos con>

(1) Bulia Rojnanus Pontifex, 1. cit

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 333

pradores que tinham de pagar á vista o preço da mercadoria (1).

Para sermos justos cumpre, todavia, con- fessar que se Roma levava a tal ponto as precauções commerciaes manifestava também os instinctos dessa generosidade honesta que para o negociante é uma parte do seu capi- tal. Nas instrucções a Ugolino, Farnese pro- hibia-lhe, não a elle, como também ao nún- cio e a qualquer ministro da nunciatura, que recebessem dos pobres christãos-novos cousa alguma, ou como dadiva, ou por outro qual- quer titulo (2). Como se a bulia do perdão fosse mais do que uma burla, o neto de Pau- lo III advertia o agente pontifício de que seu avô não quizera que em Roma se levasse aos interessados nem um ceitil por aquella mer- cê, quando, noutra conjunctura, seria graça essa para render bem vinte mil ducados ao pae commum dos fiéis (3).

A lucta estava concluída. A Inquisição, na

(1) Breve Cúm saepim, 1. cit.

(2) acosi da voi, quando sarete lá, e dai nunzio e suoi ministn si deve astenere d'accetare um soldo, sendovi oíferti in qualche modo: Instruzione, l. cit.

(3) «avvertendo sopro tutto, che siccome per Tas- soluzione e vénia predetta, per Ja quale sua santitá

334 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

plenitude do seu terrível poder, ia emfim apre- sentar-se rodeiada de instrumentos de marty- rio sobre um throno de cadáveres. Podia far- lar-se de carne humana, por nos servirmos do estylo pinturesco dos mesmos que lhe subministravam este repugnante alimento. A chegada de Ugolino a Lisboa e a publicação dos depachos que trazia eram a apotheose da intolerância. E todavia D. João iii e a sua corte fradesca não ficaram ainda plenamente satis- feitos. Avisando o seu agente em Roma da chegada do commissario pontifício, elrei de- clarava ter acceitado sem reserva as ultimas resoluções do papa ; mas advertia que, se não fosse o desejo de pôr termo a tão longa con- tenda, haveria ainda que replicar acerca do perdão, embora fosse o pontifice, e não elle, quem teria de dar contas a Deus do excesso de indulgência com que os christãos-novos eram tractados. Assim, o monarcha deplorava ainda esse transitório allivio que se concedia aos seus súbditos de raça hebréa e que se reduzia quasi unicamente a ficarem exemptos por um anno de serem relaxados ao braço

altre volte avrebbe possuto ca vare bens venti millia ducati, ha proibito quà espressamente che non si pigh un quattrino»: Ibid.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 335

secular, e de expirarem nas fogueiras os que nesse praso fossem sentenceiados por deli- dos de judaismo (1). Das cousas, porém, que por parte do papa se insinuavam, não como preconceito, mas como conselho, nenhuma era admittida. num ponto se consentia uma leve modificação. As abjurações dos réus que se iam pôr em liberdade, as quaes o papa desejava se fizessem sem estrondo e unica- mente perante um notário e poucas testemu- nhas, seriam feitas á porta da igreja do Hos- pital, situada em frente da praça mais fre- quentada de Lisboa, em vez de o serem num cadafalso publico para isso expressamente le- vantado. A indulgência regia reduzia-se, pois, a poupar as despezas da construcção de um tablado (2).

Pelo lado da corte de Roma o contracto acerca do sangue dos miseros hebreus estava honramente cumprido. R.estava receber o pre- ço. A mercadoria era excellente, por mais que

(1) «antes quis deixar de repricar naquillo de que sua santidade hade dar conta a Deus, por car- reguar somente sobre elle, que dilatar o serviço que a Nosso Senhor se faz com a Inquisição» : Minuta da Carta d'elrei a B. de Faria, sem data (primeiros mezes de 1548), na G. 2, M. 1, N.° 33, no Arch.Nac

(2) Ibid.

336 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

elrei a menoscabasse. Os defeitos que lhe pu- nha eram o desdenhar costumado de com- prador Roma sabia bem o que vendera. O cavalleiro Ugolino trazia as bulias, breves, instrucções e poderes necessários para liqui- dar o negocio do bispado de Viseu e dos ou- tros benefícios que pertenciam a D. Miguel da Silva. Em harmonia com as suas anterio- res declarações, o papa não cedia a elrei um ceitil das rendas passadas : tudo devia ir para Roma, salvo o que fosse indispensável para reparos da cathedral viseense. A vontade de satisfazer aos desejos d'elrei tinha-a o supre- mo pastor mostrado de sobejo calcando aos pés os cânones e considerando como vaga de certo modo a de Viseu, sem que o prelado legitimo resignasse ou fosse deposto, e sem sequer se falar nelle (1). Que sacrificasse as íeis da igreja e ao mesmo tempo avultadas sommas parecia pretensão excessiva. No que se convinha era em que o individuo que devia fazer na diocese portuguesa as vezes de pre-

(1) «dei quali (vescovato e benifizii) é falta la provisione in persona mia come vacanti certo modo, senza far menzione alcuiia dei cardinale di Silva, ne di sua resignazione, solo per compiacere a S. A. che i'a cosi de sidera to e ricerco»: Instruzione, 1. cit.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 337

lado estrangeiro e ausente fosse português e pago pelas rendas da mitra, e em que, pela morte de Farnese, não fossem os benefícios de D. Miguel, que passavam para elle, provido por nomeiação do papa (1).

Entretanto os ministros de D. João iii pro- curaram ainda salvar uma parte das grossas rendas do bispo foragido, accumuladas por todos esses annos durante os quaes pesara sobre ellas o sequestro. O bispo do Porto e Balthasar de Faria tinham sido demasiado fá- ceis em ceder á pertinácia da cúria romana nesta parte, e o agente ordinário, tão costu- mado a duras arguições, foi ainda mais uma vez reprehendido da sua imperdoável condes- cendência (2). Os debates sobre o assumpto com o procurador de Farnese protrahiram-se por alguns mezes ; mas Ugolino, embora de antemão vendido a D. João iii (3) no que res- peitava á Inquisição, era, no que tocava aos

(1) Ibid. e C. de B. de Fana de 17 de novembro, 1. cit. Breve de 15 de julho no M. 7 de Buli. N.o 5, no Are. Nac.

(2) Minuta da C. a B. de Fana, etc, na G. 2, M. 2,N.^33.

(3) Vejam-se a este respeito as cartas do bispo do Porto e de Balthasar de Fana de 17 e de 22 de novembro anteriormente citadas

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interesses de seu amo, de inteira confiança para elle. Na verdade, essas rendas anteriores destinavam-se á fabrica de S. Pedro ; mas a fabrica de S. Pedro não era, as mais das ve- zes, senão um dos muitos pretextos de reli- gião ou de credulidade que Roma empregava para colorear as suas rapinas e corrupções, rapinas e corrupções que, na opinião D. Fr. Balthasar Limpo, obstavam invencivelmente a um accordo com os protestantes. Demais o cardeal era arcipreste da igreja de S. Pedro, e ministro omnipotente de seu avô. Nisto se diz tudo. Assim, em Lisboa considerava-se esta questão das rendas sequestradas como matéria de puro interesse particular de Far- nese (1).

A final, Ugolino e Ricci chegaram a ajustes definitivos com os ministros d'elrei, não sobre o destino das rendas accumuladas, mas também sobre o regimen futuio da diocese, cujo prelado era agora nominalmente o neto

(1) «e quanto aos socrestados (fructosj asentou-se que, tiradas as despesas, do que ficase levase sua alteza a quarta parte para se despender em obras pias, e as três partes levase Farnésy>: Instrucç. ou Memor. na Collecç. de S. Vicente, vol. 3, f. 14d, no Arch. Nac.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 339

de Paulo iii. A escolha da pessoa que em nome delle devia governar o bispado ficaria a elrei, e deduzir-se-hiam das rendas da mitra mil e quinhentos cruzados para a sua susten- tação e dos seus officiaes. Todos os mais redditos, fossem quaes fossem, dar-se-hiam ao cardeal-ministro. As conesias, benefícios e curatos, cujo provimento pertencesse ao pre- lado, seriam por elle conferidos a portu- gueses, mas poderia impor pensões modera- das nesses benefícios para dar aos seus fami- liares e creados. Os reparos futuros dos paços episcopaes fícaram a cargo de Farnese, sendo feitos todos os de que se carecesse naquella conjunctura pelas rendas jacentes. As com- mendas dos mosteiros de Sancto Thyrso, Nandim e S. Pedro das Águias, que haviam pertencido a D. Miguel, bem como o direito de apresentação das igrejas cujo padroado andava annexo á dignidade dos abbades com- mendatarios daquelles mosteiros, tudo passa- ria para o cardeal Farnese, com a condição de recahirem as nomeiações em portugueses, embora com a reserva de pensões para os clientes do cardeal. Dos fructos e rendas se- questradas pagar-se-hiam as dividas contrahi- das por D. Miguel da Silva legalmente, isto é, antes de banido. A quarta parte do remanes-

340 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

cente, deduzidos ainda desta quarta parte dous mil e quinhentos cruzados para Farnese, dei- xar-se-hia na mão d'elrei para as despezas das reparações e fabrica da cathedral de Vi- seu e para outras applicações necessárias. Emfim, o núncio e o bispo de Angra foram nomeiados para examinarem o estado do se- questro e para resolverem as questões sobre as dividas activas e passivas da mitra, reali- sando o accordo na sua parte económica, aliás confiada á gerência material do banqueiro Lucas Geraldo (1).

A Inquisição estava, pois, comprada e paga. A concessão fora completa : não admira que fosse cara. Não sabemos ao certo quaes eram naquella epocha os redditos da mitra de Vi- seu ; mas sabemos que, tractando-se por es- ses annos da erecção de novas sés em varias partes, como em Miranda, Leiria, Freixo, Portalegre, Vianna, Covilhan, Abrantes, das

(1) Três documentos originaes sobre este assum- pto se acham na CoUecção do Sr. Moreira (Quad. 9 in médio). São dous accordos assignados por Ugolino e por Montepoliziano a 24 de março de 1549, contendo o que fica substanciado neste §, e uma declaração de Lucas Geraldo, em que se obriga a pagar as dividas legalisadas de D. Miguel e a parte que devia ser posta a disposição d'elrei.

HISTORIA DA (NQUISIÇÃO 341

quaes algumas vieram effectivamente a eri- gir-se, nos cálculos que se faziam para esta- belecer as dotações das designadas dioceses procurava-se attingir sempre, e ainda ultra- passar a verba de quatro a cinco mil cruza- dos. Sabemos também que por aquella epo- cha o arcebispado de Braga e o bispado de Coimbra rendiam, cada um, acima de seis contos de réis, e o da Guarda excedia a seis mil cruzados (l). Não será exaggeração sup- por que a mitra de Viseu não fosse mais po- bre que a da Guarda. Os mosteiros de Santo Thyrso, de Nandim e de S. Pedro das Águias eram abastados, e não é provável que as me- sas abbaciaes dos três mosteiros produzis- sem pouco para o commendatario, que tam- bém tinha, como padroeiro de muitas paro- chias, apresentações rendosas. Assim, ficare-

(1) Estes algarismos são deduzidos de um calcu- lo sobre as pensões que pagavam diversos bispa- dos em 1244 (CoUecção do Sr. Moreira, Quad. 16, in fine) ; de outro calculo para estabelecer rendimen- tos convenientes para os novos bispados que se tractava de crear em 1548, e parte dos quaes ef- fectivamente se crearam (Dieta Collecção, Quad. 5, 13 6 14, passim) ; finalmente dos papeis relativos á erecção de Miranda e Leiria, e provimento de Bra- ga, Coimbra, etc. (Dieta Collecção, Quad. 18),

342 HISTORIA Da inquisição

mos provavelmente áquem da verdade, se reputarmos os rendimentos annuaes de que fora privado D. Miguel da Silva em oito mil cruzados, e portanto a importância total do sequestro em cincoenta mil. Deduzida a quarta parte (menos dous mil e quinhentos cruza- dos) para applicaçôes pias, o que restava para Farnese eram quarenta mil cruzados.

Annos depois, abriram-se negociações para cessar aquella espécie de episcopado nomi- nal do neto de Paulo iii, e para ser provido o bispado de Viseu de modo regular ; mas é obvio que nessas negociações, as quaes não cabe aqui historiar, o cardeal-ministro cederia de tudo, menos dos proventos materiaes que lhe resultavam de um direito indubitável. Es- ses proventos podiam ser substituidos, po- rém não recusados. Assim, um dos elementos indispensáveis, não para calcular, mas para conceber vagamente o que custou a Portugal a Inquisição, é o achar com alguma approxi- mação as sommas absorvidas por Alexandre Farnese. Viveu elle mais de quarenta annos depois de 1548, e ainda que não tenhamos provas directas de que continuasse a receber, senão os rendimentos da mitra viseense, ao menos o seu equivalente, também nos faltam provas do contrario, e o mais crivei é que o

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 343

governo português respeitasse o direito de um homem collocado em situação de o fazer valer. Desta hypothese, a única plausivel, re- sulta uma somma superior a trezentos e vinte mil cruzados. Na verdade, Farnese devia dei- xar annualmente mil e quinhentos para a administração da diocese ; mas isso era so- bradamente compensado pelo direito de im- por pensões nas conesias, benefícios e cura- tos de sua nomeiação, em proveito dos pró- prios apaniguados.

A mercê dos três mil e duzentos cruzados annuaes que Farnese recebia, deduzidos dos rendimentos das mitras de Braga e Coimbra, continuou a vigorar ao lado dos benefícios novamente adquiridos (1). Subsistindo durante os largos annos que ainda viveu o cardeal, aquella pensão representa uma quantia de mais de cento e vinte mil cruzados.

Só, portanto, o neto de Paulo iii auferia do estabelecimento definitivo da Inquisição em

(1) Consta isto positivamente da minuta das ins- irucQÕes dadas a Bailhasar de Faria em 1548, para requerer o provimento de vários bispados, annexa- <;ões, commendas e translações de diversos mostei- ros, fixação ou creação de pensões, ele. na Collec- çâo do Sr Moreira, Quad 17

344 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

dinheiro corrente e em titulo seguro para o receber successivamente, perto de meio mi- lhão de cruzados.

Isto era negociado num período assas curto e pago pelo vencedor na lucta. Mas quem pôde dizer hoje o que anteriormente haviam repartido com o cardeal-ministro Sinigaglia e Capodiferro, e o que elle obtivera, não dos agentes d'elrei, mas também e principalmente dos procuradores dos christãos-novos ? O calculo dos proventos destas transacções te- nebrosas seria hoje impossivel.

A differença do valor da moeda entre a primeira metade do século xvi e a primeira metade do século xix é como de 6 para 1. Assim, aquelle meio milhão de cruzados cor- responderia hoje (attendendo á diminuição gradual do valor dos metaes preciosos na segunda metade do século xvi, durante a qual uma parte dessa somma saiu para Roma gradativamente) a mais de dous milhões e meio da nossa moeda actual (1).

(1) Os economistas calculam a differença do va- lor da prata (que era a moeda geral) entre as duas epochas, como de um a seis. A do ouro é um pouco menor. A base adoptada para estes cálculos é o Dreço dos cereaes. Effectivamente, quando a fome

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 345

Tanto custou a victoria da intolerância, para corromper um homem, embora o mais importante na cúria romana pela sua situa- ção. Mas o que o calculo não abrange, e a imaginação pode vagamente figurar, é a som- ma total do que a astúcia romana soube ex- trahir, durante mais de vinte annos, das bol- ças dos christãos-novos, quando a plebe fa- nática, tendo por corypheus o rei, o clero hierarchico e os frades, se agitava furiosa contra uma porção notável dos cidadãos mais opulentos, laboriosos e pacíficos, que ti nham por defesa a protecção, tantas veze> inefificaz, que Roma lhes vendia tão caro, e que sabia negar-lhes com plausibilidade quan do o fanatismo e a hypocrisia pagavam me- lhor. Por grandes que fossem, porém, os sa- crifícios dos christãos-novos, os do rei eram maiores. Nada se podia comparar com o es- tabelecimento de pensões vitalicias, concedi-

ameaçava Portugal em 1545, e Simão da Veiga fo) enviado á Sicília a comprar trigo, fixou-se-lhe o máximo preço deste, posto em Lisboa, em 160 réis por alqueire. Hoje o de 960, seis vezes superior, se- ria alto, mas não excessivo em circumnstancias idênticas Os papeis relativos a esta missão de S da Veiga acham-se na Collecção do Sr. Moreira Quad. 2,

346 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

das aos cardeaes e ministros da cúria, que não era fácil corromper solida e permanente- mente com peitas limitadas. Nenhum, talvez, desses indivíduos que no decurso desta nar- rativa nos tem apparecido na cúria romana servindo com mais ou menos zelo a causa da Inquisição o fazia de graça. O celebre Santi- quatro do bispado de Lamego recebia uma pensão de mil e quinhentos cruzados, que hoje equivaleriam a nove mil. Um terço delia passou, por morte do zeloso protector de Portugal, para um sobrinho seu. A de Pier Domenico sobre as rendas do mosteiro de Travanca era mais modesta, porque não ex- cedia a sessente mil réis, acaso porque se achavam gravadas aquellas rendas com ou- tra pensão de cem mil réis destinada para um membro do sacro collegio menos influente que Santiquatro. Ainda depois de terminado o negocio da Inquisição, assegu^^ava elrei ao cardeal De Grescentiis mil cruzados annuaes nas commendas dos mosteiros de Tarouca e Geiça. Até, ás vezes, o pensionado tinha o direito de transmittir parte da sua pensão para um terceiro. Tal era o cardeal Farnese, que dos três mil e duzentos cruzados impos- tos nos redditos das mitras de Braga e Coim- bra podia fazer mercê de duzentos a quem

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 347

lhe aprouvesse (1). Por este modo, as forças económicas do reino, atenuadas diariamente pela expatriação ou pelo exterminio dos christãos-novos, eram-no também por esses dilatados sacrifícios de uma parte da renda da terra, que se ia consumir improductiva- mente fora do paiz.

Qual era a situação de D. Miguel da Silva depois do desfecho da sua causa e da causa dos hebreus portugueses, as quaes a força das circumstancias tornara communs ? E' uma pergunta que, sem duvida, o leitor nos fará. Essa situação era cruel. Mas o prelado devia Ler bastante orgulho para a supportar nobre- mente. Requeriam-no o pundonor da sua ra- ça, a illustração da sua intelligencia. os curtos horisontes do tumulo, a consciência de que sustentara braço a braço uma lucta de seis annos com o implacável filho de D. Manuel e de que tinha passado imperterrito no meio das aggressões de toda a ordem, desde a in- sinuação pérfida até a tentativa de assassinio ;

(1) Estes e outros factos análogos revelam-se in- cidentemente nas instrucções a Balthasar de Faria, sobre o provimento e erecção de vários bispados e annexações de mosteiros em 1548, ha pouco cita- das.

348 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

de que, emfim, cahia victima da transacção mais ignóbil que homens podiam conceber e effeituar. Pela energia moral, pela dignidade na extrema desventura, obteria sympathias, se não úteis, ao menos honrosas, e o espectá- culo da sua miséria, ao lado da opulência de Farnese, seria o processo e o castigo deste e do papa no tribunal de todas as consciências rectas.

Não succedeu assim. D. Miguel era homem da sua epocha. As cortes de Lisboa e de Ro- ma, que frequentara desde a mocidade, ti- nham-no educado pela norma commum. A ambição, a vaidade e o ódio haviam-lhe em- prestado a mascara de nobre altivez. Quando a esperança morreu a mascara cahiu, e appa- receu mais um desses Jobs de ordem moral, asquerosos, não no corpo, mas na alma, que constituiam a grande maioria dos homens públicos daquelle tempo. noutro logar vi- mos a que apuros chegara o foragido prelado pela difficuldade de receber soccorros pecu- niários de Portugal. Os dos christãos-novos iam escaceiando á medida que a influencia de D. Miguel diminuia. Chegara a termos taes, que o próprio Balthasar de Faria o reputava mais digno de compaixão do que de malevo- lencia. Com brutal graciosidade, o agente d'el-

HlSn-ORIA Da [NOUISIÇÃO 349

rei oDbervavb, ao coiicluii-se a compra da liiquisii;ão á custa delle, que o papa e seu ueto, depois de o escorcharem, curavam tanto da s>orle futura do pobre cardeal como se jiunca houveii» existido (1). Os últimos crea- dos do^ que trouxera de Portugal, perdida pai-a elle d derradeirti esperança de i'ecuperar as antigas rendas, abandonaram- no. Os des- gostob tinham ajudado os elíeitos dos annos, e a velhice e uma doença cruel, a gota, aca- brunhavam o altivo prelado. As dores e as lagrimas teciam os seus últimos dias (2).

Esta situação teria talvez inspirado a almas út outra tempera o pensamento criminoso do suicídio. Parece, porém, que o antigo bispo de Viseu ainda cria descortinar no horisonte a possibilidade de estancar no coi'ação de um rei devoto fel ahi accumulado por annos con- tra elle. Na desgraça extrema, até nisto se

(1) «depois que o pellaram oon se curam mais delle que se nunca nacera»: C. de B. de Faria de 17 de novembro de 1547, 1. cit.

(2) «Vendose sacudido de (da curia) e em des- graça de vossa alteza, me dizem pessoas que o sa- bem que chora como menino, falando em Portugal : anáa magro, envelhentado, e co a gota que lhe che- ga Já aos hombros»: Ibid.

350 HISTORIA DA 1\'OUISÍÇÃO

chega a acreditar. Dos christãOv=;-oovos nada havia a temer nem a esperar : a gente da no- ção assemelhava-se a um pouco de gado dis- perso, que os familiares dos inquisidores iam gradualmente arrebanhando no matadouro, para dalli se proverem os açougues de carne humana, que a hypocrisia se obrigara a sub- ministrar á intolerância. O velho prelado fez aos hebreus o que Farnese lhe fizera a elle. A differença estava em que o cardeal-ministro tinha-o vendido por um preço elevado, pago em boa moeda, e elle vendia os seus protegi- dos de tantos annos por uma esperança in- sensata. Que se retirasse da lucta, comprehen- de-se : a sua intiuencia para com aquelles que o haviam espoliado, a fim de se locuple- tarem a si, não devia ser demasiada, nem, que o fosse, havia influencia capaz de pôr obstáculos ao triumpho completo da Inquisi- ção ; mas repugna ver o soberbo prelado unir os seus insignificantes esforços aos do bispo do Porto e de Balthasar de Faria para apressar o desfecho daquelle drama ao mes- mo tempo torpe e horrível. Em mais de um logar das suas ultimas correspondências com elrei, elles mencionam os serviços de D. Mi- guel com expressões de uma compaixão in- sultuosa, expressões em que, aliás, transpa-

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 351

rece o temor de desagradarem ao vingativo monarcha por esses tristes elogios feitos ao homem que elle jurara perder. Assim como a dignidade altiva na desgraça é a maaifest^ção mais elevada da grandeza moral do homem, assim o aviltamento perante o que o fez des- graçado é a mais asquerosa hyperbole da abjecção. Tal era, naquella conjunctura, o pro- cedimento de D. Miguel da Silva. Não escon dia os seus desejos de se aproximar do bis- po do Porto, mas o bispo do Porto evitava o contacto do empestado politico. Ousado com o papa, increpando-o pela corrupção da igre- ja, o prelado portuense não queria practicar algum acto que significasse desapprovação das baixas vinganças de D. João iii, porque as consequências do descontentamente do rei podiam ser mais serias do que as do descon- tentamento do pontífice. O fanático não se es- quecia de que era cortezão (1). Entretanto, nas disputas entre o cardeal De Crescentiis e D. Fr. Balthasar, ou nos debates deste com Paulo III, D. Miguel, se porventura se achava

(l) aporque me pareceo que D. Miguel da Silva me queria falar, me guardei de todolos lugares onde nos podíamos encontrar/.: C. de D Fr. B, Lim- po a elrei de 22 de novembro, 1. cit

352 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

presente, collocava-se do lado dos procurado- res da Inquisição com o mesmo ardor com que outr'ora os combatera, e, não contente com isso, empregava esses restos da influen- cia que exercera em promover a prompta conclusão do negocio (1). Na opinião de Fa- ria, não era tanto a esperança de se rehabili- tar que o levava a assim preceder, como a de se lhe darem algumas tieguas na perseguição incessante que lhe fazia o monarcha (2). E^sa ultima baixeza seria nesse caso inspirada por um excesso de covardia.

Tal foi o desfecho dessa lucta de mais de vinte annos, cujas phases e peripécias nos proposemos narrar. Como noutro logar dis- semos, as famihas hebréas, que não poderam esquivar-se a uma situação intolerável fugindo de Poilugai, ainda, na successão dos tempos, mmè de uma vez ergueram as mãos suppli- canletj para o supremo pastor e fizeram rolar o ouro nos covis da corrupção humana ; ainda

(1) Ibid.

(2) «já que se nam espera remir pêra com V. A. ao menos querers'á co isso soster e honrar pêra que Dam o apicacem mais»: C. de B. de Pana de 17 de novembro, J. cit.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 353

mais de uma vez souberam despertar ou comprar a compaixão e o favor da corte pa- pal ; mas os resultados estavam longe de cor- responder aos esforços e aos sacrifícios. Podia por esse meio salvar-se algum raro individuo, ou retardar-se por alguns mezes a torrente impetuosa da intolerância ; mas o edifício da Inquisição ficava cada vez mais solido e o terror e o silencio que ella fazia em redor de si tornavam-se cada vez mais profundos. De- pois de 1548, posto que ás vezes parecesse renovar-se a lucta, esta não existia realmente. Era apenas, como observámos, o estrebu- xar, mais ou menos agitado, das victimas. A seguinte narrativa pôde dar-nos uma idéa da negra historia do tribunal da em 1561, de- pois da sua constituição definitiva.

Tinham passado doze annos, e era núncio em Portugal Prospero Santa-Croce, bispo de Chisamo. D. João iii morrera, e regia o paiz, na menoridade de D. Sebastão, a rainha D. Catharina. O infante D. Henrique continuava a presidir ao tremendo tribunal. Não era de- masiado o affecto entre a rainha e o cunhado ; mas quanto ás idéas de intolerância estavam accordes: pertenciam ambos á sua epocha. A corte de Roma achava-se na melhor har- monia com a de Lisboa, e o núncio recebera

TOMO Ut 23

354 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

instrucções para se amoldar em tudo aos in- tuitos do inquisidor geral. Os christãos-novos que não tinham logrado sair do paiz mal po- diam esperar favor efficaz da cúria, não por causa daquelie bom accordo, mas tam- bém porque a emigração occulta havia natu- ralmente levado para longes terras muitos dos mais opulentos e dos mais ousados. O excesso, porém, do padecer arranca ás vezes, ainda aos menos insofridos, queixumes inú- teis. A gente da nação, cujos males subiam de ponto, ergueu ainda uma vez os seus cla- mores até o sólio pontifício, occupado então pelo duro Pio iv. Apontavam na supplica as principaes tyrannias que supportavam : pren- diam-nos sem indicios sufficientes, retinham- nos nos cárceres annos e annos sem proces- so, e continuavam a queimá-los sem piedade, apesar de expirarem nas fogueiras como ver- dadeiros christãos, invocando o nome de Je- sus. Ordenou-se então ao bispo de Chisamo que verificasse até que ponto existiam aquel- les aggravos. Respondeu que effecti vãmente os christãos-novos eram, não presos, mas também postos a tormento sem sufficientes indicios. Tinha-se distinguido neste género de violências um homem de alta reputação litte- rariá, o celebre Oleastro, ou Fr. Jeronymo da

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 355

Azambuja (1), o qual, como inquisidor, dispu- tara a palma da crueldade a João de Mello. Os seus excessos haviam sido taes que o in- fante fora obrigado a demitti-lo. O próprio D. Henrique confessou ao núncio que Oleastro ultrapassara todas as metas da moderação. Não era menos exacto o que allegavam acerca do bárbaro systema de deixarem apodrecer nas masmorras, esquecidos até para os tra- ctos e para o supplicio, grande numero de indivíduos. Partiam os inqiasidores da idéa de que todos os que se prendiam não eram christãos senão no nome, e que por isso pouco importava impor-lhes a pena de longo e triste captiveiro, ainda antes de se lhes provar o crime de heresia. Finalmente, o bispo de Chi- samo concordava em que muitos dos quei- mados como judeus convictos morriam abra- çados com a cruz, dando todas as demons- trações de sincero christianismo ; mas obser- vava que, apesar disso, era indispensável continuar a queimar os réus sentenciados ;

(1) OJeastro, depois de ler voltado do concilio de Trento, foi nomeiado inquisidor de Évora em 1552, e transferido para a Inquisigáo de Lisboa em 1555: Sousa, De Orig. Inquisit., p. 20 e 24.

356 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

porque, se demonstrações taes podessem sal- vá-los nessa hora tremenda, recorreriam áquel- le expediente todos os verdadeiros herejes, e nenhum seria punido. A opinião do bispo de Chisamo era que não se tocasse neste assum- pto, ou, quando muito, que se insinuasse de algum modo suave ao cardeal inquisidor e ao poder civil que não seria talvez conveniente levar aquelles desgraçados até o grau de de- sesperação, lendo, aliás, provado os rigores presentes e passados que a crueldade não subministrava meios demasiado efficazes de conversão (1).

Taes eram os factos mais importantes que o núncio verificara; tal era a appreciação in- suspeita que delles fazia; taes as idéas de justiça daquella epocha. Nesses três factos capitães, manifestação completa das tendên- cias e do espirito da mais atroz, da mais anti-christan instituição que a maldade hu- mana pôde inventar, se resume a historia da

(1) Negoziato di Monsignore Prospero Santa- Croce, Vescovo di Chisamo in Spagna et in Porto- gsllo: Lettera aJ cardinalle Borromeo 23 maggio 1561: Collecçào GeraJ de Doe. de Roma, vol. 2, f. 372, na Biblioth. da Ajuda.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 357

Inquisição portuguesa : nas capturas arbi- trarias ; nos longos captiveiros sem processo ; nas fogueiras devorando promiscuamente o christão e o judeu por honra da inquisição e gloria de Deus. Eis o que se fizera antes de 1547; eis o que se fazia depois. Os escân- dalos especiaes num ou noutro caso, as es- poliações, as falsificações, as mentiras impu- dentes, os attentados contra os bons costu- mes, as hypocrisias insignes, as barbaridades occultas, as hecatombes publicas de victimas humanas não podiam ser diversos. O que, á vista dos documentos relativos a tempos pos- teriores, se poderia escrever acerca do tribu- nal da não passaria de reproducção das scenas repugnantes que delineiámos. e cuja continuação não interrompida o indisputável testemunho do bispo de Ghisamo nos attesta. Repetir isso tudo poderia ser um pasto para a curiosidade; não um estudo para o en- tendimento. As phases da lucta entre os fau- tores da Inquisição e as suas victimas na- quelles primeiros vinte annos, as peripécias dessa lucta, o espectáculo da gangrena mo- ral que tinha invadido a igreja e o estado, eis o que encerra profícuas licçôes para o pre- sente e para o futuro. Coordenar e expor es- sas graves licções foi o intuito deste livro;

358 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

cremos ler satisfeito ao nosso propósito. For- cejámos para que fossem mais os documen- tos do que nós quem falasse : também cre- mos tê-lo obtido. Nas ponderações que o as- sumpto exigia, ou para clareza da narrativa, ou para concatenação dos successos, buscá- mos ser justos com os oppressores e não nos deixarmos prevenir pelo dos opprimi- dos. Precavia-nos contra as fraquezas da com- paixão a baixeza dos últimos na desgraça : a extrema hediondez moral dos primeiros tem- perava-nos pelo asco quaesquer demasias de ódio. Na verdade, uma ou outra vez, o espec- táculo da suprema depravação humana, im- pondo silencio á voz iranquilla da razão his- tórica, impelliu-nos a traduzir num brado de indignação as repugnancias irreflexivas da consciência irritada. Mas este senão, se é se- não, nunca poderá evitá-lo mteiramente o his- toriador que conservar os sentimentos do ho- mem e tiver de estudar á luz dos documentos, infinitamente mais sinceros que os analystas, um ou diversos periodos da historia do sé- culo xvi, daquelle século corrupto e feroz, de que ainda hoje o absolutismo, ignorante do seu próprio passado, ousa gloriar-se, e que, tendo por inscripção no seu adito o nome obsceno do papa Alexandre vi, e por epita-

HISTORIA DA TVQUISIÇÃO 35^

phio em seu termo o terrível nome de Phi lippe II, pôde, em Portugal, tomar também para padrão que lhe assignale metade do curso o nome de um fanático, ruim de con- dição e inepto, chamado D. João iii.

FIM DO TOMO in E ULTIMO

APÊNDICES

POR

I. Nota à oitava edição definitiva

II. índice analítico de matérias

Mota h oitava edição defini ti

1

A História da Origem e Estabelecimenlo cln In rjuisição, de Herculano, é ainda hoje a última pa lavra sobre o assunto, a-pesar-dos anos que ja conta. Nela admiramos, a-par da linguagem vee- mente, o movimento e acção que fazem o drama da história; por isso ela é o que mais eloquente o au- tor escreveu no género. Circunstâncias da sua vida a fizeram assim. E' que esta obra é um desforço e é um libelo. Ele o confessa no prefácio da 3." edição da sua História de Portugal (I, p. 8, 7.* ed.): «Ao livro sem intenção politica (a História de Portu galj fiz seguir um que a linhar.

Herculano escreveu-o, pois, com paixão. Todavia, se foi severo, não foi mjuslo. A sua cólera era le- gítima. Adverários sem pejo feriram a sua alma, menoscabaram a sua sinceridade. Creu êle que prestava— e prestou e grande— um serviço ao país, escrevendo a sua verdadeira história, mas viu con- citada contra si a matilha dos que, sem ideal, ve- getavam no charco da vida parada da nação. E

364 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

9 ferida sangrou <iai o desalento 8 a quebra do seu plano Herculano queria levar a História de Por- tugal até 1580 (vê-se de uma carta sua publicada pelo Sr. Dr Fidelino de Figueiredo no Correio da Manhã de 11 de Setembro de 1922, e datada de 8 de Junho de 1850) : que grandioso monumento êle teria erguido às glórias nacionais se o tivesse realizado I E' um desserviço que devemos aos pretensos de- fensores da tradição.

Herculano não era lutador Outro teria ido buscar energias e incitamento a própria luta. Ele defendia d boa causa e a consciência que disso tinha devia fortalecer a sua vontade e couraçar a sua sensibi- lidade. Mas era irascível e tímido e, a-pesar dos in- centivos que sempre teve. sucumbiu ao escárneo da galeria. Aceitemos os homens como eles são, e não lhe façamos crime da sua fraqueza, como certa crítica contemporânea tem feito, afrontando a sua memória com ela, como se fora um labéu

Herculano vingou-se dos ataques dos reacioná- rios, seus inimigos, com a História da Inquisição: quis mostrar-lhes que o seu ídolo era feito de po- dridão. Foi, talvez, cruel, mas quem não quer ser lobo não lhe veste a pele, como diz o ditado; e, se a vingança é o manjar dos deuses, èle devia estar contente, porque o seu esforço não podia ser mais sangrento: o adversário saía da luta escor- rendo sangue e pus, e o seu gargalhar havia de acabar em grito de dor.

Eram, talvez, ainda os mesmos que poucos anos antes êle combatera com as armas na mão, durante as lutas liberais, e de quem dissera em 1833 :

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 365

Lavradores, zagaes, descem dos montes

Deixando terras, gados, Para as armas vestir, dos céus em nome.

Por phariseus chamados. De um Deus de paz hypocritas ministros

Os tristes enganaram :

Foram elles, não nós, que estas caveiras

Aos vermes consagraram.

Maldiclo sejas tu, monstro do inferno,

Que do Senhor no templo,

Junci.o da eterna cruz, ao crime incitas,

Dás do furor o exemplo!

í Poesias, p 121).

Concedamos, todavia, a parte da paixão: nem assim o deminuiremos, porque ela está mais na forma do que na doutrina. Herculano declama por vezes, como bom romântico que é: na violência das expressões que emprega devemos ver apenas ex- cesso e embriaguez do seu verbo que brota em ca- chão, aí como no Monge de Cister ou no Bobo. São as palavras ardentes de quem buscou a verdade e foi escarnecido ; de quem tendo combatido pela li- berdade a em perigo e por isso toma atitudes trágicas que traduz em linguagem veemente, acorde com elas. Mas o quadro de negras cores que éle mostra diante dos nossos olhos espantados é atroz- mente exacto e digno de reprovação incondicional : para tais crimes de humanidade não atenuantes e o mínimo dêlôs ainda é horrível e mesmo blas- femo porq^ie é a negação da piedade cristã. Quem disso duvidar leia, para se convencer, as palavras

366 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

insuspeitas do inquisidor de Lisboa, João de Melo (III, p. 190-194). >

Herculano documentou-se admiravelmente. Pas- ma ver a quantidade de materiais consultados por êle, em grande parle manuscritos. Muitos deles fo- ram publicados posteriormente na íntegra pela Aca- demia das Sciências no Corpo diplomático portu- guês, t. I-VI. Recentemente, também o Sr. João Lú- cio de Azevedo escreveu proficientemente, sobre um plano mais amplo que Herculano, a Historia dos christáos novos portugueses.

2.

Esta oitava edição definitiva foi feita segundo o critério adoptado no Eurico e na História de Por- tugal. E assim as considrações que se fizeram são aplicáveis aqui, em regra. As poucas divergên- cias que se dão agora procedem das épocas dife- rentes das últimas edições, das referidas obras, do tempo do autor. Para aquelas essas edições esta- vam muito próximas da sua morte. Não assim com a História da Inquisição; as suas últimas e segun- das edições foram: o volume 1 de 1864, o II de 1867 e o III de 1872, mas o I sem indicação de edição. Daqui algumas dificuldades: não Herculano mo- dificou a sua forma gráfica depois deste último ano, mas também a desse ano difere da dos anos ante- riores. Com o fim de estabelecer um texto uniforme, tomámos por norma a edição de 1872 e a ela referi- mos as outras. Foi isto mesmo que se fez nas edi- ções anteriores a esta oitava, mas arbitrariamente, muitas vezes Assim, nelas se escreve sempre : trez, auto-da-fé, pais, judaísmo, trazer, cair, baptizar etc..

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 367

que se não encontram nas edições do tempo de Her- culano Nesta nova edição não se fez assim, antes se procurou cuidadosamente para cada caso parti- cular determinar a íbrma mais constante de escre- ver do autor ; e, boa ou má, foi essa que se adoptou Este critério não é isento de erro e porventura te- remos errado algumas vezes. Quando os mesmos vocábulos são numerosos pode estabelecer-se regra com certa segurança, mas não o sendo é difícil di- zer com acerto qual a boa forma. No caso de dú- vida, preferimos manter as irregularidades de Her- culano a proceder por nosso arbítrio.

Em relação às novas edições das obras publi- cadas, acima referidas, as divergências gráficas são em pequeno número. Eis as principais: posto que, nomeiar e formas análogas, eirei, cahir, seria, sa- bia que na História de Portugal são: postogue, nomear, el-rei, cair, seria, sabia.

Quanto à pontuação, também nessas outras se inovou muitas vezes, adoptando-se quer uma pró- pria, quer a da primeira edição. Nós procedemos ao contrário, e mantivemos a das segundas edições, que é mais abundante e deve por isso representar emendas de Herculano.

Algumas emendas dignas de nota feitas nesta edição :

I, p. 6, i. Í9: perpetrando, mas practicando na !.• edição e perpetuando na 2.«. Assim emendado nas edições ante- riores à nossa.

1, p. 8, I. 11: indemnisação/wssíptf^ emendado em: indemnisaçáo impossível.

I

. p

17. 1. 20 28, l. 27

. p- . p . p-

40. l. 5 45. l. 21 64, 1. 2

368 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

eila devia ter ella dizia ter. intolerância material tolerância material. 5; Luiz XI Luiz ix.

reconhecendo restabelecendo, enxolução das duas ordens emu- lação das duas ordens.

, p. 72. 1. 8 . os sectários das duas grandes re- giões — os sectários das duas gran- des religiões.

. p. 73, i. 3: certos (/ra ws públicos —certos car- gos públicos.

, p 98, i. 21: falta; até o ultimo quartel do xv.

. p 263, 1. &; paizes inexperientes —ywí^es inex- perientes.

, p 318, 1. 21 : ao mesmo tempo pe^o mesmo tempo

, p. 59, 1. 4 : Clemente xvii Clemente vii.

, p. 114, 1. 10: belforinheiro bofarinheiro. As- sim emendado nas edições ante- riores à nossa.

, p. 203, 1. 23: evocasse —avocasse. Assim se a seguir.

, p. 215, 1. 14: não ousou dos largos poderes não usou dos largos poderes.

, p. 230, 1. 6 : desculpar o culpado descubrir o culpado.

, p. 278, nota : E também manho por duvyda que esa gente E também tenho por sem duvyda que esta gente

, p. 9, 1. 7 : não isento no isento.

, p. 96, 1. 12: falta: servissem.

HISTORIA UA INQUISIÇÃO 36y

Também as citações remissivas dentro da obra estão Iodas erradas na edição anterior a esta e emendamo-las nesta nossa.

Não emendámos, sem razão, Francês para Fran- cês. I. p. 94, 1. 1. As edições anteriores à nossa fizeram a emenda assim.

Deve emendar-se: Í481 a 1482 para 1481 e 1482, l. p. 122, \. 2; 25 de maio para 23 de maio, II, p. 227, 1. 23 ; 1536 para 1539, II, p. 283, nota 1 ; 16 de Julho para 16 de Junho, III, p. 229, nota ; 26 de Junho para 16 de Junho, III, p. 230, 1. 23, mas nas pp. 240, 244 e 246 Herculano escreveu 22. Foram lapsos da nossa revisão.

II índice analítico de matérias

Este mdice não e exaustivo . contém apenas a matéria principal do texto. Toda ela podia inserir-se nas duas rubricas Inquisição e Cristáos-novos. Isso, porém, seria pouco prático; por isso as desdobrá- mos sempre que foi possível. E' às vezes difícil discriminar a matéria de uma da da outra. A so- lução seria então incluí-la nas duas rubricas, mas não fizemos assim senão excepcionalmente para não avolumar demasiado este tomo.

Os termos e expressões registados conservam a ortografia de Herculano, mas na redacção empre- gámos a ortografia oficiai.

TOMO III 24

I

370 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Os algarismos romanos indicam o volume e os árabes a página dele.

agentes diplomáticos em Roma ; Francisco Botelho. V. Balthasar de Faria. V. Simão da Veiga. V.

V. embaixadores portugueses em Roma.

albigenses, dissidentes heréticos no sul da

França 1, 36 a 40

Alcáçova Carneiro (Pedro), v. Carneiro (Pe- dro de Alcáçova).

Alexandre iv, papa, estabelece a Inquisição

na França central I, 58

Almada (^lannel de), inquisidor da In- quisição de Lamego, pratica grandes violências contra os cristãos-novos. III, 135 a 142

Arbuès (Pedro de), inquisidor da Inquisição

de Saragoça, é assassinado I, 94

arrabi-mòr, alto funcionário da gente he-

breia I, 110 a 111

Ayres Vaz, médico e astrólogo favorecido do

núncio II, 246 a 247

acusado de heresia, é chamado ao tri- bunal da Inquisição para se defender, mas o núncio avoca a si o seu julga- mento II, 248 a 249

é preso à ordem do inquisidor de Lisboa

e daí conflito entre este e o nún- cio II, 249 a 250

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 371

O papa chama a si o julgamento do pro

cesso . . II, 272

o papa fá-lo seu clérigo familiar e co- mensal e por uma bula isenta do poder dos inquisidores todos os seus parentes e advogados 11, 373

Azambuja (Er. Jeronjnio da), mquisidor de Lisboa, distmgue-se nas violências contra os cristãos-novos III, 354 u 355

B

Botelho (Frauci8co), é mandado a Roma como agente tliplomálico em 1542 com as cartas dos cristãos-novos apreendidas em Arronches III, 68

desempenha-se habilmente da sua missão

junto do papa III, 71 a 73

breTes, de 17 de Outubro de 1532 que sus- pendeu a Inquisição 1, 317 a 318

de 18 de Dezembro de 1533 que suspen- deu a bula de perdão de 7 de Abril de 1533 II, 24 a 27

de 2 de Abril de 1534 que mandou man- ter a bula de perdão II, 35 e 52

de 26 de Julho de 1534 que mandou de

novo manter a bula de perdão.. II, 73 a 75

de 20 de Julho de 1535 que mandou anu- lar os eleitos da lei de 14 de Junho de 1532 contra os cristãos-novos.. II, 127 a 129

de 31 de Agosto de 1537 que mandou

cumprir o breve de 20 de Julho de 1535.... II, 216 a 218

372 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

de 10 de Março de 1540 que suspendeu

os efeitos da bula de 12 de Outubro de 1539 . II, 324 a 325

de 22 de Setembro de 1544 que mandou

suspender a Inquisição. ...... III, 214 a 215

de 16 de Junho de 1545 em que o papa

respondeu altivamente a D. João iii so- bre o negócio da Inquisição.. III, 226 a 229

Búfalo (Estevam dei), valido de Paulo iii, irouxe a Lisboa o barrete cardinalicio de D. Henrique III, 283

prometeu defender em Roma as vanta- gens da Inquisição portuguesa III, 283

bulas, de 17 de Dezembro de 1531 que ins- tituiu a Inquisição em Portugal. I, 277 a 284

de 7 de Abril de 1533 de perdão aos

cristãos-novos II, 9 a 20

de 12 de Outubro de 1535 que revalida e

amplia a bula de perdão II, 146 a 148

de 23 de Maio de 1536 que estabeleceu

definitivamente a Inquisição em Portu- gal, com restrições II, 182 a 188

de 12 de Outubro de 1539 a favor dos

cristãos-novos II, 280 a 284

de 22 de Agosto de 1546 que conce- deu o restabelecimento da Inquisição, mas também perdão geral por mais um ano aos réus de judaísmo III, 261 a 262

de 16 de Julho de 1547 que instituiu de- finitivamente a Inquisição portugue- sa III, 330 a 332

Búlgaro, v. Roberto Búlgaro.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 373

<^apodiferro, núncio enviado a Portugal para examinar se a bula de 23 de Maio de 1530 e as promessas de el-rei se cum- priam II. 205 a 210

sua corrupção a favor dos cristãos-no-

vos II, 222 a 224

hostilidades entre êle e o infante inqui-

sidor-mór II, 244 a 250

D. João III indignado pede a sua revoca-

ção II, 250 a 251

discussões violentas em Roma a respeito

dele e da Inquisição II, 253 a 267

vem a acordo com a corte portuguesa

sobre as duas décimas impostas nos bens da igreja II, 273 a 274

D. João III insiste na sua revocação a

Roma II, 275, 277, 270 e 298

Carneiro (Pedro de Alcáçova), ministro de D. João iii, sua grande actividade e superior inteligência I, 206 a 208

Chisamo (bispo de), v Sanéa-Croce (Pros- pero).

christãos-noTos. suas vantagens sobre os

Judeus I, 116

leis favoráveis a eles promulgadas por

D. Manuel I. 156 a 158

muitos tentam expatriar-se para fugirem

às perseguições . I, 160 a 163

manifestações populares contra

eles 1,164 a 168

matança deles de 1 5C>6 em Lisboa. I. 171a 178

374 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

providências protectoras e de tolerân- cia a favor deles depois da matança. 1, 182 a 184

confiados nestas demonstrações de be- nevolência esqueceram imprudentemente os perigos da sua permanência no reino I, 184 a 185

os anos de 1507 à morte de D. Manuel

foram de paz para eles e de esperanças que o passado não voltaria I, 185 a 189

desacatos de 1515 atribuídos a

eles 1, 192 a 193

todas as concessões de D. Manuel foram-

Ihes confirmadas por D. João iii I, 212

malevolências do povo contra eles nos

primeiros anos do novo reinado; suas causas I, 213 a 214

acusações dos procuradores do povo con- tra eles nas cortes de Tòrres-Novas de 1525.. I, 219 a 221

averiguações secretas feitas por Jorge

Temudo em 1524 contra os conversos

de Lisboa I, 222 a 229

Henrique Nunes, converso, agente dela- tor ao serviço de D. João iii contra os seus antigos correligionários I, 229 a 241

indícios externos pelos quais, segundo

êle, se podia conhecer o judaísmo dos conversos I, 238 a 241

ideas absurdas de Selaya, inquisidor de

Badajoz, sobre os conversos I, 246 a 247

desordens e perseguições contra eles em

Gouveia I, 248 a 257

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 375

perseguições contra eles em Oliven- ça '

Gil Vicente e o bispo de Silves condenam os excessos contra os conversos. 1, 259 a 264 bula de 17 de Dezembro de 1531 que ins- tituiu a Inquisição : suas provisões. 1, 277 a 284 lei de 14 de Junho de 1532 que regulou a sua aplicação e proibiu a sua saída

do reino. I> 289 a 295

terror que produziu entre eles. . I, 296 a 298 súplicas ao rei contra a erecção do novo

tribunal 1.298 a 299

excitações populares contra êles;scenas

anárquicas em Lamego I, 301 a 305

recorrem ao papa contra as violências de que são vitimas ; é enviado Duarte da Paz a Roma como procurador deles. 1, 305 a 307 os esforços de Duarte da Paz são coroa- dos de êxito: breve de 17 de Outubro de 1532 que suspende a Inquisição 1,314 a 315

e316 ^ 319

- depois destas vantagens, Duarte Paz trai os seus comitentes e congraça-se com D. João III ....I.321a 325

Clemente VII concede-lhes a bula de per- dão de 7 de Abril de 1533: suas disposi- ções e apreciações delas II, 9 a 20

- negociações em Marselha com o papa e os breves de 18 de Dezembro de 1533 ao núncio e a elrei que suspenderam os man- dados apostólicos II, 24 a 27

- breve de 2 de Abril de 1534 que mandou manter a bula de perdão II, 35 e 52

376 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Duarte da Paz denuncia a el-rei os con- versos que queriam fugir de Portugal e indica as medidas a tom.ar contra eles II, 62 a 64

não se cumpre a bula de perdão, antes se

perseguem os conversos por todo o reino II, 66 a 70

à vista do breve de 2 de Abril o núncio

mandou suspender a publicação e a exe- cução da bula de perdão II, 71

o silêncio na corte portuguesa é mal vis- to na cúria e Clemente VII manda pôr em vigor a bula de perdão pelo breve de 26 de Julho de 1534 II, 73 a 75

falecido Clemente VII, reatam-se as ne- gociações com a cúria, com a intervenção de Carlos V e mercê delas Paulo III man- dou suspender os efeitos dos breves do seu antecessor II, 80

novos debates sobre a bula de perdão e

bases oferecidas por el-rei para se che- gar a acordo II, 84 a 101

resoluções do papa sobre as modificações

do perdão e sobre o restabelecimento da Inquisição II, 102 a 104

D. Henrique de Meneses para se tomar

vingança dos manejos de Duarte da Paz aconselha a D. João III que persiga os chefes dos conversos que dão dinheiro aos seus agentes em Roma II, 105

para favorecer os conversos contra o

governo português, o papa revogou as concessões feitas a este e mandou pôr

»

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 377

em execução a bula de perdão e pedir a D. João III a revogação da lei de 14 de Junho de 1532 II. 116 a 119

acordo entre eles e o nduncio: prometem

ao papa certa quantia se êle conviesse

em aceder aos pedidos deles II, 120 a 122

à vista desta atitude do papa, D. João III

pensa em transigir com eles para que aceitem a Inquisição modificada. II, 125 a 126

como reacção contra eles revalida-se por

mais três anos a lei de 14 de Junho de 1532 II, 126 a 127

breve de 20 de Julho de 1535 que anulou

os efeitos desta lei II, 127 a 129

irritado com as resistências da corte

portuguesa, o papa revalida e amplia a bula de perdão com outra de 12 de Outu- bro de 1535 II, 146 a 148

tentativa de assassínio contra Duarte da

Paz.. II, 168 a 170

questões vergonhosas entre os conversos

e o núncio por motivos de contratos ve- nais II, 172 a 180

por não se cumprirem esses contratos, a

cúria atende os pedidos dos adversários dos conversos. II, 180 a 181

bula de 23 de Maio de 1536 que estabele- ceu definitivamente a Inquisição, com algumas restrições II, 182 a 188

as diligências e ponderações dos agentes

dos conversos em Roma contra a bula de 23 de Maio conseguem abalar o ânimo do papa II, 199 a 205

378 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

súplica dos conversos a el-rei contra a lei

de 14 de Junho de 1532, revalidada em 1535, mas baldadamente II, 210 a 212

atendendo os clamores dos conversos con- tra o não cumprimento do breve de 20 de Julho de 1535, o papa expediu um outro em 31 de Agosto de 1537 mandando que se cumprisse II, 216 a 218

corrupção do núncio Capodiferro a favor

dos conversos II, 222 a 224

discussões violentas e protraídas entre o

embaixador português e o papa a respei- to da Inquisição e ''■^ núncio II, 253 a 267

acordos entre os ciois sobre a matéria da

Inquisição e de protecção aos conver- sos II, 268 a 272

bula declaratória de 12 de Outubro de

1539 a (avor dos conversos II, 280 a 283

bula secreta de Paulo III pela qual fica- vam perpetuamente abolidos os confiscos nos crmes religiosos II 283

Duarte da Paz, agente dos conversos em

Roma, é substituído pelo doutor Diogo António II, 288

conselhos de Duarte da Paz dados ao papa

contra os conversos II, 291 a 294

Capodiferro deixa Portugal sem publicar

a bula declaratória que fica assim sem efeito II, 296 a 300

impugnações dos inquisidores à bula de- claratória II, 306 a 311

negociações entre o papa e o embaixador

português sobre o assunto da carta de

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 379

ei-rei a este queixando-se da vontade da cúria e das impugnações dos inquisido- res: scenas dramáticas entre os

dois II, 312 a 323

junta dos cardeais encarregados de exa- minar as réplicas do governo português: seu parecer II, 31 9 e 323

o embaixador português obtém do papa um breve que suspende os efeitos da bula declaratória, com condições.. II, 324 a 329

renova-se em Roma a questão de novo

núncio a enviar a Portugal para proteger

os conversos II, 348 a 359

acordo com a cúria para se adiar a

questão da nunciatura até que se sindi- casse do procedimento dos inquisidores. 11,362 a 363

D. Miguel da Silva liga-se com os conver- sos para combater a Inquisição.. II, 372 a 373

acusações contra eles remetidas para Ro- ma a Pier Domenico III, lia 12

para os favorecer, Paulo III, envia novo

núncio a Lisboa, Luís Lippomano. III, 13 a 15

instruções secretas que este trouxe para

desempenho da sua missão III, 16 a 33

cartas supostas ou verdadeiras do cardeal

da Silva e dos agentes dos conversos apreendidas em Arronches altamentecom- prometedoras para a cúria e para os conversos III, 56 a 64

como consequência, proíbe-se ao núncio

que entre em Portugal III, 65 a 66

mediação de Carlos V entre D. João III e

380 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

O papa para os Harmonizar nesta con- tenda. III, 57

Francisco Botelho é mandado a Roma

como agente diplomático com as cartas apreendidas IH, ^8

instruções que levava para esclarecer o

papa III, 68 a 69

Botelho desempenha-se habilmente da

sua missão junto do papa III. 71 a 73

o papa manda á Portugal Pier Domenico

para aplanar as dificuldades entre as duas cortes III, 73 a 74

o núncio é autorizado a entrarem Portu- gal, devendo abster-se de intervir nas questões dos conversos e do cardeal da Sil- va III, '4

a política da cúria torna-se menos favo- rável aos conversos porque ela pretende vantagens materiais da corte portuguesa, isto é uma pensão para o neto do papa im- posta nas rendas do mosteiro de Alco- baça III, 74 a 78

as dificuldades dos conversos cresceram

com a criação em Roma em 1542 de um tribunal da Inquisição III, 82 a 83

perseguição do seu procurador em Roma,

Diogo Fernandes Neto Ill, 87 a 89

leniam à força de dinheiro um esforço

supremo para se salvarem do grande pe- rigo que pendia sobre eles III, 100 a 108

a-par, acusações de atentados da Inquisi- ção e clamores públicos na cúria contra as suas violências ín> 109 a 112

I

I

HISTORIA DA [AQUISIÇÃO 381

O cardeal Parisio advoga calorosamente a

sua causa Ill, 112 a 113

fugindo à Inquisição, todos os conversos

que podem emigram Ill, 113 a 115

agravos dos conversos contra a Inquisi- ção expostos largamente num memorial

dirigido ao cardeal Farnese III, 116 a 124

persiguições populares contra os conver- sos em Lamego e Barcelos. . . Ili, 125 a 128 em vista das queixas incessantes dos con- versos contra os abusos da Inquisição, Paulo III resolveu intervir a favor deles e mandou novo núncio, Ricci.. III, 202 a 205 novas vantagens dos conversos : o breve de 22 de Setembro de 1544 suspendeu a

Inquisição III, 214 a 215 e 224

Paulo III no breve de 16 de Junho de 1545 justificou a suspensão da Inquisição com as violências praticadas contra os con- versos. III, 227 a 228

Ricci tomou a sua defesa contra a Inqui- sição III, 240 a 243

D. João III defende-se das suas acusações III, 246 parcialidade ostensiva de Racci a favor

deles. III, 251 a 252 e 257 a 260

pela bula de 22 de Agosto de 1546 é con- cedido perdão geral por mais um ano aos

réus de judaísmo III, 261 a 262

parecer notável de quatro conversos dado ael-rei sobre o modo de remover a resis- tência à Inquisição III, 269 a 277

OS' inquisidores rebatem os alvitres desse parecer III, 277 a 282

382 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

desânimo dos conversos na luta contra a

Inquisição 111, 284 a 286

últimas resoluções do papa sobre o per- dão do conversos. 111, 290 a 293

não satisfeito destas resoluções, D. João

111 proíbe por mais três anos a saída do reino dos conversos 111. 297 a 298

el-rei propõe alterações a essas resolu- ções do papa Ill, 298 a 304

salvo-conduto geral concedido pelo papa

aos conversos portugueses para serem admitidos nos estados da igreja 111, 305

bula de 16 de Julho de 1547 que instituiu

definitivamente a Inquisição e outros di- diplomas respeitantes aos conver- sos III, 328 a 335

v. Inquisição.

Cifuentes (conde de), embaixador em Roma de Carlos V, recebe ordens para favore- cer as pretensões de D, João 111 no as- sunto da Inquisição II, 78 a 79, 98 e 101

Clemente Vil, papa, instituiu a Inquisição

portuguesa em 17 de Desembro de 1531 I, 277

suspendeu este tribunal pelo breve de 17

de Outubro de 1532. .1. 317

concedeu aos cristãos-novos a bula de

perdão de 7 de Abril de 1533 II, 9 a 10

mandou manter a bula de perdão pelo

breve de 2 de Abril de 1534 11, 35 e 52

mandou pôr em vigor a bula de perdão

pelo breve de 26 de Julho de 1534 11, 78 a 75

Coimbra, abusos e excessos da sua Inquisi- ção Ill, 142 a 162

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 38^^

concílios, de Latrão, contra os hereges em

1179 I. 30 a 32

de Tolosa em 1229.... I, 37

de Narbona em 1235 contra os here- ges I, 47 a 49

de Béziers contra os hereges I, 51 a 54

confiscos, pena imposta pela lei de 14 de Ju- nho de 1532 aos cristáos-novos que sais- sem do reino ou enviassem os seus have- res para fora do país. .1, 290

diligências baldadas dos cristãos-novos

para obterem a revogoção destas disposi- ções I, 298 a 299

disposições da bula de perdão de 7 de

Abril de 1533 sobre os cristãos-novos II, 14

propostas de D. João III sobre a matéria II, 92

os agentes portugueses em Roma obtêm

do papa que seja de dez anos o prazo du- rante o qual se não farão II, 102, 106, 107 e 109

tentativa dos cristãos-novos junto do pa- pa para esse prazo ser de doze anos. . II, 122

é renovada por mais três anos a lei de 14

de Junho de 1532. II, 126

a bula de 23 de Maio de 1536 proíbe-os

durante dez anos II, 183

bula secreta de Paulo III a favor dos cris- tãos-novos pela qual ficavam perpetua- mente abolidos nos crimes religiosos. II, 283

D. João III promete ceder deles se fo- rem dados plenos poderes á Inquisi- lã©'. II, 303,313 e 314

o papa pede uma declaração oficial dessa

CôdêDcia U, 323

384 HiSlURlA DA INQUISIÇÃO

negociações sobre esta matéria entre o

papa e o embaixador português e breve que suspende a bula declaratória de 1539 se el-rei ceder na questão dos confis- cos.. . II, 324 a 331

negociações em Roma e solução de- les III, 94 a 95

bula de 22 de Agosto de 1546 que os proí- be por mais um ano aos réus de judais- mo III, 261 a 262

breve eximindo deles por dez anos os cri- minosos sentenciados III, 328

corteis, de Toledo de 1480 : disposições contra

os Judeus I, 80

de Tarazona : nova reforma da Inquisição

aragonesa I, 92

de 1475 : linguagem dos procuradores

das cidades e vilas contra os Judeus. . . I, 121

de 1481 e 1482 : mesma linguagem 1, 122 a 124

de 1490: mesma linguagem I, i25 a 128

de Tòrres-Novas em 1525: estado moral e

administrativo do reino I, 215 a 221

C^outialio (D. Fernando), bispo de Silves, desaconselha a D. Manuel as violências contra os Judeus I, 148 a 149

condena os excessos praticados contra os

cristãos-novos. . I, 261 a 264

1'rM» (Bernardo da), bispo de S. Tomé e rei- tor da Universidade, Inquisidor da Inqui- sição de Coimbra : inúmeras violências contra os cristãos-novos. Ill, 142 a 151

HISTORIA, DA INQUISIÇÃO 385

D

Diogo António (dontor), substitui Duarte da Paz como agente dos cnstãos-novos em Roma 11, 288

directório dos inquisidores, corpo de legis- lação civil 6 canónica da Inquisição. I, 65

Domenico (Pier), agente de D. João III em Roma, trabalha contra os cristãos-no- vos 111, 11 a 13

sua missão à corte portuguesa. . 111, 73 a 74

sua missão de el-rei para o papa 111, 79 a 80

Domingos de Gusmão, fundador da ordem

dos frades pregadores ou dominicanos 1, 35

dominicanos, ordem dos frades pregadores:

sua fundação I, 35

suas crueldades no sul da França e sua

expulsão em 1233 I, 45

favor do papa por eles para inquisido- res I, 45 a 47

Daarte da Paz, procurador dos cristáos-no-

vos em Roma I, 306 a 307

os seus esforços a favor dos cristãos-no-

vos são coroados de êxito e pelo breve de 17 de Outubro de 1532 o papa suspendeu a Inquisição I, 314 a 315 e 316 a 319

depois destas vantagens, trai os seus

comitentes e congraça-se com D. João

III 1, 321 a 325

denunciava a el-rei oscristãos-novosque

queriam fugir de Portugal e indicava as medidas a tomar contra êles 11. 62 a 64

nos debates sobre a bula de perdão pe-

TOMO III 25

386 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

rante a comissão nomeada por Paulo III era sempre ouvido com vantagem para

os conversos II, 98 a 99

tentativa de assassínio contra êle I, 168 a 170

compromissos de el-rei a favor dos seus

parentes II, 188

é substituído pelo doutor Diogo António II, 288

depois de substituído, continuou a traba- lhar contra os cristãos -novos e morreu muçulmano II, 289 a 296

embaixadores portugaeseii em Roma :

D. Mignel da Silva. v.

Brás IVeto. v

D. Martinho de Portugal, v.

D. Henrique de ITIemeses. v.

D. Pedro de Mascarenhas, v.

Cliristovam de Sousa. v.

V. agentes diplomáticos em Roma

Estaos (os), prisão da Inquisição de Lis- boa III, 189

Évora, abusos e excessos da sua Inquisi- ção líl, 174 a 178

Eymerieo (]Wi«olau), inquisidor no Aragão e

autor do «directório da Inquisição» I, 65 a 66

Faria (Balthasar de), agente diplomático de D. João in em Roma para o negócio da Inquisição III, 50 a 51

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 387

negociações em Roma sobre a atribuição

das rendas do bispado de Viseu III, 95 a 08

D. João III censura-o por ter anuido à re- messa do breve que suspendia a Inquisi- ção e pede-lhe explicações do seu proce- dimento III, 223

instruções da corte portuguesa para re- bater as acusações contidas no breve de 16 de Junho apresentado a D. João III peio núncio III, 246 a 247

demonstrações de desgosto que lhe diri- giu el-rei por ter anuido à bula de 22 de Agosto de 1546 III, 266

V. Inquisição depois de 1546.

Farnese (cardeal), D. João III escreve-lhe manifestando o seu desgosto pelo breve de 22 de Setembro de 1544 III, 25

resolução favorável da sua pretensão a

certos rendimentos prometidos por D. João III III. 232 a 234

instrução ao núncio Ricci sobre a signi- ficação das resoluções do papa a respeito do perdão aos cristàos-novos e aplicação das rendas do bispado de Viseu . . . III, 294 a 296

o papa encarrega-o da administração do

dito bispado III, 296 e 338 a 340

Fernandes (Diogo), procurador dos cristãos- novos em Roma depois de Diogo Antó- nio II, 352

tentativas de suborno do cardeal Parisio

e do próprio papa para o restabelecimen- to da nunciatura em Portugal II, 352

é perseguido, preso e condenado. Ill, 87 a 89

388 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Fernandes Neto (Diogo), v. Fernandes (Diogo).

Fernando e Isabel, impetram e obtêm do papa o estabelecimento definitivo da Inqui- sição em Espanha 1, 68 a 70 e 79 a 82

Firme-Fé, v. Nunes (Henrique).

rranciscanos, ordem dos fradres menores. I, 45

Friderico II, promulga leis de repressão das

heresias I, 38

GalTez (ChristoTam), inquisidor no Ara- gão I, 66

Ghinncci (Jeronymo), comissário de Paulo III para examinar a questão da Inquisi- ção portuguesa II, 83

debates com os embaixadores portugue- ses II, 84 a 101

é nomeado para examinar se a bula de 23

de Maio de 1536 devia ser modificada II, 205

Gil (Francisco), comissário da Inquisição, pratica inúmeras violências por todo o país III, 130 a 135

Gil Vicente, condena os exessos praticados

contra os cristáos-novos I, 259 a 260

Gomes Pinheiro (Rodrigo), comissário da Inquisição de Coimbra, pratica violências em Trancoso contra os cristãos-no- vos III, 155a 156

GooTeia: desordens e perseguições ali contra os cristãos-novos em 1528 e 1530 I,248a 257

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 389

Gregório IX, favor especial pelos dominica- nos na repressão das heresias. ... I, 45 a 47

Goilherme, bispo de Bruges, é contrário à

compulsão violenta contra os hereges. I, 37

Gusmão (Domingos de), v. Domingos de Gusmão.

H

Henriqne (infante D.)> irmão de D. João III, é nomeado inquisidor-mór na idade de 27

anos II, 234

hostilidades entre êle e o núncio. II, 249 a 250

contenda acerca da sua nomeação para

inquisidor-mór II, 256, 257, 258, 269, 271, 279, 301, 302, 304, 305, 314, 316, 321 a 322,

326 e 330

Henriques (^^uno), chefe dos cristãos-novos, procura dobrar o ânimo de D. João III a favor dos conversos por meio do infante

D. Luís . , II, 197 a 198

heresias, causas e efeitos no século XII. . . I, 29

providências contra elas tomadas por

Lúcio III I, 32 a 33

os Albigenses 1, 36 a 40

concílio provincial de Tolosa em 1229 con- tra elas I, 39

a corrupção e os abusos dos ministros da

igreja fazem-nas nascer por toda a parte

no século XIII I, 41a 44

390 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Igreja, sua disciplina primitiva no julgamen- to dos hereges I, 24 a 33

opiniões moderadas dos bispos... I, 26 a 30

providências tomadas contra os hereges

no concílio de Latrão I, 30 a 32

concílio provincial de Tolosa em 1229 a

suas resoluções I, 39

a corrupção e os abusos dos seus minis- tros fazem nascer as heresias por toda a parte no século XIII I, 41 a 44

V. Inquisição.

Innocencio III, papa, toma providências con- tra os hereges do sul da França. . I, 34 a 35

Inquisição fora de Portugal, seu estabele- cimento no sul da França em 1229 I, 39

sua acção nefasta no sul da França, na

Lombardia e no Aragão ..... I, 45 a 47

a sua acção é fortalecida no concílio nar-

bonense de 1235 I, 47 a 49

a sua acção no norte da França no tem- po de Roberto Búlgaro I, 50

regulamentos do concílio de Bêziers que

fortalecem o poder dela I, 51 a 54

os seus progressos no norte da Itália no

tempo de Inocêncio IV. I, 54

reacções gerais contra ela e vinganças

mútuas I, 55 a 58

estende o seu poder à França central no

tempo do papa Alexandre IV. ... . I, 58 a 59

modifica-se e modera-se na Itália..... I, 59

a sua decadência na França no século XVI, 60

HISTORIA Da inquisição 391

O seu desaparecimento em França no sé- culo XVI I, 61

os seus progressos no Aragão e em Cas- tela I, 61

não existiu no nosso país nos séculos XIII

e XIV, e no XV nominalmente. I, 62 a 65

excessos de intolerância no Aragão nos

séculos XIV e XV I, 65 a 66

sua instituição definitiva no fim do sécu- lo XV na Espanha I, 67 a 82

o seu estabelecimento em Sevilha 1, 82

resistências dos Judeus I, 82

atrocidades dos inquisidores de Sevi- lha I, 82 a 84

criação do cargo de inquisidor-mór em

Castela I, 90 e 91

Torquemada, 1.° inquisidor-mór, símbolo

de cruel intolerância 1, 90

as Instruções, 1.° código da Inquisição de

Espanha I, 92

é desdobrada em 4 tribunais: Sevilha, Córdova, Jaén e Ciudad-Real (depois

transferido para Toledo) I, 90 a 91

criação de outro tribunal em Saragoça I, 92 resistências nesta cidade ao novo tribu- nal e assassínio do seu inquisidor, Pedro

de Arbués I, 93

crueldades para vingar o seu assassí- nio I, 94 a 95

inúmeras vítimas em Sevilha e Ciudad- Real I, 96

pretende que se lhe entreguem os Judeus espanhóis refugiados em Portugal ... . I, 170

392 HISTORIA DA iNOUiSíÇÀO

Inqaisição em Portaçal, tentativas sem re suJtado para o seu estabelecimento em Portugal em 1515 I, 190 a 197

o seu estabelecimento no nosso país deve-

se ao fanatismo de D. João III I, 205 a 208

acção da Inquisição espanhola para isso

e o favor da rainha D. Catarina. . I, 241 a 247

D. João III, em 1531, impetra do papa Cle- mente VII o estabecimento dela em Por- tugal; instruções dadas ao embaixador português em Roma, Brás Neto. . I, 2ô4 a 268

dificuldades que o pedido encontrou na

cúria I, 271 a 276

bula de 17 de Dezembro de 1531 que a

instituiu em Portugal; suas provi- sões , I, 277 a 284

frei Diogo da Silva é nomeado inquisidor

geral I, 278

demora na execução desta bula e causas

disso I, 287 a 288

lei de 14 de Junho" de 1532 que regulou a

aplicação dela I, 289 a 295

terror produzido entre os cristâos-no-

vos I,296a 298

súplicas deles a el-rei para obstarem à

erecção do tribunal da I, 298 a 299

a publicação desta lei produziu a excita- ção popular contra os cristãos-novos; sce- nas anárquicas em Lamego. .... I, 301 a 305

o papa manda em 1532 o bispo de Siniga-

glia núncio a Portugal como fiscal do novo tribunal: seu carácter I, 308 a 313

D. João Ili manda também em 1532 a Ro-

HISTORIA Da inquisição 393

ma um novo agente, D. Martinho de Por- tugal, para combater ali a acção dos cris-

tãos-novos I, 308 a 309 e 319 a 321

o papa suspende-a pelo breve de 7 de Ou- tubro de 1532 I, 317 a 318

bula de perdão aos cristãos-novos de 7 de Abril de 1533: suas disposições e apre- ciação delas II, 9 a 20

memorial de D. João III ao papa para que se modifiquem algumas destas disposi- ções II, 21 a 23

negociações em Marselha com o papa e os breves de 18 de Dezembro ao núncio e a el-rei suspendendo a execução dos man- dados apostólicos II, 24 a 27

é enviado a Roma D. Henrique de Mene- ses como embaixador extraordinário pa- ra tratar o assunto: instruções que le- vava II, 27 a 33

breve de 2 de Abril de 1534 que mandou

manter a bula de perdão II, 35 e 52

novas tentativas e debates para demover o para da sua decisão, baldadamen-

te II, 35 a 58

nestas negociações D. Martinho de Por- tugal conluiu-se com o procurador dos

cristãos-novos II, 58 a 64

perseguições dos cristãos-novos por todo

o reino II, 66 a 70

à vista do breve de 2 de Abril o niíncio manda suspender a publicação e a execu- ção da bula de perdão . n, 71

o silêncio da corte portuguesa é mal visto

394 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

na cúria e o papa manda pôr em vigor a bula de perdão pelo breve de 26 de Julho de 1534 II, 73 a 75

morto Clemente VII, reatam-se as nego- ciações com a cúria com intervenção do embaixador de Carlos V e mercê delas Paulo III manda suspender es efeilos dos breves do seu antecessor, mas toma al- gumas providências a favor dos cristãos- novos ..... II, 80

o novo papa institui uma comissão que

estude as respostas de el-rei ao breve de

2 de Abril II. 81 e 83

o núncio entra em luta aberta com el-rei

que não quer cumprir os mandados apos- tólicos a favor dos cristãos-novos II, 82 a 83

novos debates sobre a bula de perdão e

bases oferecidas por el-rei para se chegar

a acordo II, 84 a 101

resoluções do papa sobre as modificações

do perdão e sobre o restabelecimento da Inquisição II, 102 a 104

D. Henrique de Meneses, para se tomar

vingança dos manejos de Duarte da Paz, aconselha a D. João III que persiga os chefes dos cristãos-novos que dão dinhei- ro aos seus agentes em Roma II, 105

Santiquarto, protector de Portugal, diz a el- rei as razões das restrições que o papa pu- sera ao funcionamento do novo tribunal II, 106

considerações e conselhos de D. Martinho

de Portugal a el-rei sobre a mesma ma- téria II, 107a 113

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 395

D, Henrique de Meneses: suas considera- ções e conselhos a el-rei sobre a mesma

matéria.... H, 113 a 115

breve de Paulo III a el-rei sobre a mesma

matéria II, llõ a 116

sabidas as violências e a vontade do governo português para com os conversos» o papa revogou as concessões feitas e mandou pôr em execução o breve de per- dão e pedir a D. João III a revogação da lei de 14 de Junho de 1532....... II, 116 a 119

à vista desta atitude do papa, D. João III pensa em transigir com os conversos para que aceitem a Inquisição modifica- da II, 125 a 126

como reacção a este pensamente, revali- da-se por mais três anos a lei de 14 de Ju- nho contra os cristãos-novos. .. II, 126 a 127 breve de 20 de Julho de 1535 que anula os

efeitos desta lei II, 127 a 129

novas tentativas da corte portuguesa jun- to da cúria para se chegar a acordo; ins- truções dadas aos seus agentes em

Roma II, 129 a 133

por sua vez o papa também parecia que- rer vir a acordo com a corte portuguesa; condições da sua proposta oficiosa II, 134 a 139 D. João III faz intervir na contenda Carlos V para dobrar o ânimo do papa II, 140 a 141 conselhos a el-rei e procedimento desleal de D. Martinho de Portugal qae por ambi- ção da púrpura protegia encubertamente 8 causa desconverses, II. 142a 145 e 148 a 149

396 HISTORIA DA ÍNQUÍSIÇÃO

irritado com as resistências da corte por- tuguesa, o papa revalida e amplia a bula de perdão com outra de 12 de Outubro de 1535. II, 146 a 148

as pretensões ocultas de D. Martinho são

desmascaradas e D, Hnrique de Meneses denuncia-o a el-rei II, 149 a 154

efeitos da bula de 12 de Outubro em Por- tugal e procedimento audaz do núncio para com el-rei II, 104 a 158

para obter a revogação desta bula, D.

João III recorre ao imperador Carlos V; negociações para isso II, 163 a 168 e 170 a 171

tentativa de assassínio contra Duarte da

Paz II, 168 a 170

questões vergonhosas entre os cristãos-

novos e o núncio por motivo de contrac- tos venais , II, 172 a 180

por não se cumprirem esses contractos a

cúria atende os pedidos dos adversários dos conversos II, 180 a 181

bula de 23 de Msio de 1536 que a estabe- leceu definitivamente em Portugal, com algumas restrições 11 182 a 188

são por ela criados quatro inquisidores e

um conselho geral II, 182 a 184

frei Diogo da Silva, bispo de Ceuta, inqui-

sidor-mór II. 188

monitôrio do inquisidor-mór acerca dos

crimes contra a fé. II, 190 a 191

edital de 30 dias para o chamado tempo de

graça II, 192 a 193

procedimento moderado do novo tribunal

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 397

Qos primeiros tempos da sua existên- cia..... II, 193 e 199

- as diligências e ponderações dos agentes dos conversos em Roma contra a bula de 23 de Maio conseguem abalar o ànimo do papa II, 199 a 205

- o papa nomeia os cardeais Ghinucci eJa- cobacio para examinarem se a bula de 23 de Maio devia ser modificada, os quais foram de opmião que sim II, 205

- em vista disto, o papa envia novo nún- cio, Capodiferro, a Portugal para exami- nar se a bula e as promessas de el-rei se cumpriam convenientemente II, 2U5 a 210

- súplica dos conversos a el-rei contra a lei de 14 de Junho de 1532 revalidada em 1535, mas baldadamente II, 210 a 212

- o negócio da concessão da Inquisição é novamente debatido em Roma, devendo el-rei mandar embaixador especial e dei- xar sair do reino quatro cristãos-novos para tratarem o assunto. ...... II, 212 a 213

- atendendo os clamores dos cristãos-novos contra o não cumprimento do breve de 20 de Julho de 1535, o papa expediu um ou- <.ro em 31 de Agosto de 1537 mandando

que se cumprisse II, 216 a 218

- motivos políticos de momento atenua- ram, de facto, o rigor desta providência. ".219 a 222

- corrupção do núncio, Capodiferrro, a fa- vor dos cristãos-novos II, 222 a 224

- enviatura de D. Pedro de Mascarenhas a

398 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Roma, como embaixador, para tratar os negócios deJa II, 225 a 228

~ escritos blasfemos afixados publicamente

em Lisboa e consequências do facto 11,228 a 233

o infante D. Henrique é nomeado inquisi-

dor-mór contra o direito canónico II, 234

~ negociações em Roma para alargar os

poderes dela II, 237 a 238

a corrupção da cúria II, 240 a 243

frei Joã© Soares, confessor de el-rei, é no- meado membro do conselho da Inquisição; seu carácter II, 244 a 24õ

é criada a Inquisição de Lisboa e nomea- do inquisidor dela João de Melo II, 245

hostilidades entre o inquisidor-mór e

Capodiferro porcausade Aires Vaz. 11,248 a 250

D, João III, indignado, pede a revocação

do núncio II, 250 a 251

discussões violentas e protraídas entre o

embaixador português e o papa acerca da Inquisição e do núncio II, 253 a 267

-■ acordos entre os dois sobre a matéria dela e de protecção aos cristãos-no- vos II, 268 a 272

Capodiferro vem a um acordo com a cor- te portuguesa sobre as duas décimas im- postas nos bens da igreja II, 273 a 274

- revocação de Capodiferro. . II, 275, 277 e 279

bula declaratória de 12 de Outubro de

1539 a favor dos cristãos-novos. II, 280 a 283

bula secreta pela qual ficavam perpetua- mente abolidos os confiscos nos crimes religiosos . II, 283

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 399

Duarte da Paz é substituído pelo doutor

Diogo António II, 288

conselhos de Duarte da Paz ao papn con- tra os cristãos-novos. II, 291 a 294

Capodiferro deixa Portugal sem publicar a bula declaratória que fica assim sem

efeito II, 296 a 300

carta notável de D. João III a D. Pedro de Mascarenhas sobre os negócios da Inqui- sição queixando-se da vontade da cú- ria e da oposição á escolha de seu irmão

para inquisidor-mór II, 302 a 305

impugnação dos inquisidores à bula de- claratória II, 306 a 311

negociações entre o papa e o embaixador português sobre o assunto da carta de el-rei e das impugnações dos inquisido- res; scenas dramáticas entre os

dois II, 312 a 323

junta dos cardeais encarregada de exami- nar as réplicas do governo português: o seu parecer foi que este declarasse oficial- mente ceder na questão dos confis- cos II, 319 e 323

negociações pelas quais o embaixador português obtém do papa um breve sus- pendendo os efeitos da bula declaratória com o compromisso de D. João III ceder

na questão dos confiscos II, 324 a 331

renova-se em Roma a questão do novo núncio a enviar a Portugal para proteger

os cristãos-novos II, 348 a 359

acordo com a cúria para se adiar a quês-

400 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

tão da nunciatura até que se sindicasse

do procedimento dos inquisidores. 11,362 a 363

rompimento com a cúria por causa da

elevação de D. Miguel da Silva a car- deal II, 366 a 367

D. Miguel da Silva liga-se com os cris-

tãos-novos para combater a Inquisi- ção II, 372 a 373

- são criados sucessivamente seis tribunais da (Lisboa, Évora, Coimbra, Porto, La- mego e Tomar) III, 8 a

Lippomano é enviado núncio a Lisboa

para tratar os negócios da Inquisição; instruções secretas II, 16 a 33

Baltasar de Faria é mandado a Roma

como agente diplomático para tratar os negócios dela III, 50 a 51

Paulo III cria um tribunal da em

Roma III, 82 a 83

agravos dos cristãos-novos contra a In- quisição expostos longamente num memo- rial dirigido a Farnese III, 116 a 124

abusos e excessos da Inquisição de La- mego III, 129 a 142

abusos e excessos da Inquisição de Coim- bra III,142a 162

abusos e excessos da Inquisição do

Porto Ill, 1 62 a 174

abusos 6 excessos da Inquisição de

Évora III, 174 a 178

abusos e excessos da Inquisição de Lis- boa III, 178 a 201

as prisões da Inquisição de Lisboa. III, 188 a 189

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 401

em vista destes abusos e excessos, Paulo

íii resolveu intervir a lavor dos crislâos- novos ..... III, 2u2 a 205

Ricci é enviado núncio a Lisboa para co- nhecer destes abusos e excessos III, 204

breve de 22 de Setembro de 1544 pelo qual

Paulo ni manda suspender a Inquisi- ção III, 214 a 215

é enviado a Roma um novo agente diplo- mático, Simão da Veiga, para tratar os negócios dela : instrugões III, 217 a 219

carta de D. João iii ao papa a queixar-se

do seu procedimento nos negócios dela III, 219 a 223

D. João III censura o seu agente em Roma,

Baltasar de Faria, por ter anuído à re- messa do breve que suspendeu a Inqui- sição lu, 223

expedientes emprega-los pela corte por- tuguesa para se conciliar os ânimos na cúria. III, 224 a 225

breve de 16 de Junho de 1545 em que o

papa responde com firmeza à carta de

D. João III III, 226 a 229

renovam-se negociações amigáveis sobre o estabelecimento da Inquisição, com a condição de Ricci ser autorizado a entrar

em Portugal Ill, 230

razões desta nova atitude da cúria.

m, 231 a 236

entrada do núncio Ricci em Portugal e condições impostas a isso. .... III, 237 a 240

Ricci apresenta a D. João iii o breve de TO.MO II i 26

402 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

16 de Junho e toma a defesa enérgica dos cristãos-novos III, 240 a 243

atitude frouxa de D. João iii perante esta

ousadia de Ricci, contrária às condições impostas III, 244 a 245

el-rei responde moderadamente ao breve

do papa III, 246 a 247

propostas e acordos ignóbeis em Roma

relativos ao negócio da Inquisição. III, 248 a 260

parcialidade ostensiva de Ricci a favor

dos conversos III, 251 a 252 e 257 a 260

bula de 22 de Agosto de 1546 que conce- deu o restabelecimento da Inquisição, mas também o perdão geral por mais um ano aos réus de judaísmo III, 261 a 262

esta decisão do papa descontentou el-rei

que mostrou o seu desagrado ao núncio e mandou demonstrações de censuras e novas instruções sobre o assunto a B. de Faria III, 264 a 269

parecer notável de quatro cristãos-novos

dado a el-rei sobre o modo de remover as resistências à Inquisição III, 269 a 277

os inquisidores rebatem os alvitr'5s desse

parecer III, 277 a 282

últimas resoluções do papa sobre o per- dão dos cristãos-novos III, 290 a 293

instrução de Farnese ao núncio sobre a

significação das últimas resoluções e apli- cação das rendas do bispado de Vi- seu.... m,294a 296

não satisfeito das resoluções do papa,

D. João III revalida por mais três anos a

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 403

jei de 1535 que proibia a saída do reino

aos crislãos-novos III, 297 a 298

el-rei propõe alterações a essas resolu- ções III, 298 a 304

o agente português em Roma não apre- senta essas alterações ao papa por serem inconvenientes e insiste na manutenção

das bases que havia aceitado III. 305

descobre-se a existência de um salvo- conduto geral para os cristãos-novos por- tugueses serem admitidos nos estados do

papa III, 305

o agente português vale-se desse docu- mento para fazer pressão sobre a cúria e obter dela o máximo de vantagens.

III, 306 a 308

perante a intransigência do agente portu- guês, a cúria resolve entender-se directa- mente com a corte portuguesa e manda

a ela o cavaleiro Ugolino III, 309 a 310

o núncio Ricci informa a cúria das ins- truções conciliatórias de D. João iii e por isso ela resiste à pressão exercida pelo

agente português III, 311 a 313

a intervenção audaciosa do bispo do Porto, D. Frei Baltasar Limpo, faz a cúria ceder

da sua pertinácia III, 313 a 327

bula de 16 de Julho de 1547 que institui definitivamente a Inquisição e outros di- plomas respeitantes a ela. ... . III, 328 a 335 cálculo incompleto do que a Inquisição

custou III, 340 a 347

passados anos, em 1561, o núncio, bispo

404 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

de Chisamo, pinta-a com negras cores , a intolerância não tinha peias III, 353 a 356

intuitos iionrados do autor na feitura deste

livro III, 357 a 359

V. Chrístãos-novos.

inquisidor-iuòr, cargo criado em 1 (82. . . i, 90

isiqaiSãdores*iuores cia Inquisição portu- guesa :

Frei Diogo da Silva. V.

Infante D. Heurque. V

inquisidores da fé, legados ao papa para

coniiecerem das heresias 1, 35 a 36

Isabel, V, Fernando e Isabel.

Jacobacio (cardeal), é nomeado para exa- minar se a bula de 23 de Maio de 1536 devia ser modificada: sua opinião favo- rável II, 205

João III (D.)» rei de Portugal, sua pouca inte- ligência e cultura; o seu fanatismo. 1, 204 a 205e 210

este espirito do rei, incitado peio clero,

explica o empenho dele no estabeleci- mento da Inquisição I, 205 a 208

conserva os conselheiros e ministros de

seu pai e com eles a sua política religiosa por algum tempo. I, 209 a 212

cortes de Tôrres-Novas de 1525: estado

moral e administrativo do reino. I, 215 a 221

seu papel no estabelecimento da Inquisi- ção, V. Inquisição.

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 405

fadens, sua situação em Espanha no fim do

século XV í, 7 1 a 73

os convertidos ao cristianismo cliama-

vam-se cnstãos-novos, conversos, confes- sos ou marranos I, 76

êxodo deles fugindo à Inquisição I. 85

recorrem ao papa que toma providencias

ilusórias I, 85 a 89

prevenções absurdas contra eles . l, 99 a 100

sua expulsão de Espanha l. 100 a 103

sua situação em Portugal no século

XV I, 108 a 117

malevolência do povo contra eles: mani- festações e causas dela I. 1 1 7 a 1 28

entrada dos Judeus espanhóis em Portu- gal e condições dela I, 129 a 134

muitos deles por falta de pagamento do

direito de entrada foram feitos escravos

e torturados I, 134 a 137

80 subir ao trono, D. Manuel favoreceu-os

e deu a liberdade a muitos escravizados I, 139

D. Manuel ordena a expulsão deles. 1, 140 a 143

muitos deles convertem-se ao cristianis- mo I, 146

D. Manuel manda que aos Judeus que se

expatriassem fossem tirados e baptizados

os filhos menores de 14 anos I, 149 a 154

conversão forçada deles I, 155

leis favoráveis aos conversos promulga- dos por D. Manuel I, 156 a 158

obstáculos postos à entrada em Portugal

dos Judeus espanhóis perseguidos pela inquisição I, 169

406 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

a Inquisição espanhola pretende que se

lhe entreguem os Judeus refugiados em Portugal ; oposição de D Manuel. .... 1. i70

Lamego, insultos e violências exercidas ali

em 1532 contra os cristãos-novos. . . .. 1, 304

abusos e excessos da sua Inquisi- ção... 111,129 a 142

Leão (Jorge), chefe dos cristãos-novos, pro cura dobrar o ânimo de D. João ui a favor dos conversos por meio do infante D. Luís II, 197 a 198

lilmpo (D. Fr. Kalthasar), bispo do Porto e inquisidor da sua Inquisição, exerce inú- meras violências contra os cristãos-no- vos.... III, 162 a 174

com a sua linguagem audaciosa ao papa

obriga-o a ceder da sua pertinácia a res- peito da Inquisição III, 313 a 327

Lippomano (Laíz), núncio de Paulo iii, é en- viado a Lisboa em 1542. . III, 13 a l5

instruções secretas que trouxe para des- empenho da sua missão . . III, 16 a 33

é-lhe proibida a entrada em Portu- gal III, 65 a ô6

é, emfim, autorizada a sua entrada.. . III. 74

seu procedimento conciliador em Lis- boa III, 81 a 82

manda cumprir as determinações do

breve de 22 de Dezembro de 1544 que suspendia a Inquisição. III, 215 a 216

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 407

Lisboa, abusos e excessos da sua Inquisi-

■^ão III, 178 a 201

Loyola (Iguacio tieí, escreveu a D. João iii a favor da entrada de Ricci em Portugal para assim terminar a contenda com a cúria III, 230

Lacero, inquisidor de Córdova, duro e san- guinário I, 230 a 232

Lacio III, papa, toma providências contra as

heresias I, 32 a 33

Laiz IX, rei de França, toma providências

40

Luiz A.íronso, agente diplomático enviado a Roma em 1531 para auxiliar o embaixa- dor Brás Neto na obtenção do estabeleci- cnenlo da Inquisição I. 277

M

91argalho (Pedro), portador a D. João III dos documentos do inquérito sobre a morte de Firme-fé . . . I, 243 a 244

marranos, v, Judeus.

>lartínho tle Portagal (D.), arcobispo do Funclial, é enviado a Roma por D. João III para combater a acção dos cristãos-no- vos contra a Inquisição I, 308 a 309 e 319 a 321

segundo êie, as negociações com a cúria

relativas à bula de perdão aos cristãos- novos sofreram com a intervenção de Carlos V II, 53 e 57 a 58

conluiu-se com o procurador dos cris-

lãos-novos nas negociações para a re-

408 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

vogação da bu]a de perdão aos conver- sos II, 58 a fi4

considerações e conselhos a el-rei sobre

as restrições de Paulo III ao funciona- mento da Inquisição II, 107 a 113

por ambição da púrpura protegia enco- bertamente a causa dos cristãos-no- vos II, 141 a 145 e 148 a 149

as suas pretensões ocultas são desmas- caradas e D. Henrique de Meneses denun- cia-o a el-rei II, 149 a 154

é chamado a Lisboa II, 164 a 165

I^f ascarenhas (O. Pedro), é enviado em 1537 como embaixador a Roma para tratar os negócios da Inquisição. II, 225 a 228

suas negociações para alargar os pode- res da Inquisição II, 237 a 238

seu carácter e dotes II, 239 a 240

informações sobre a corropção da cú- ria II, 240 a 243

discussões violentas e protraídas entre êle

e o papa a respeito da Inquisição e do núncio.. II, 253 a 267

acordos entre os dois sobre esta maté- ria II, 268 a 272

explica a el-rei as cousas em que teve de

ceder para ganhar alguma cousa em Roma II, 273 a 289

negociações sobre a mataria da bula de

12 de Outubro de 1539; scenas dramáti- cas entre os dois II, 312 a 323

obtém do papa um breve suspendendo os

efeifos da bula declaratória II, 324 a 329

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 409

sua partida para Portugal II. 329

Mello (Dr. João de), 1.° inquisidor da Inqui- sição de Lisboa II, 245

chama ao seu tribunal o médico Aires

Vaz, acusado de heresia . II, 24S

prende-o a-pesar-da oposição do nún- cio II, 249 a 250

pratica inúmeras violências contra os

cristãos-novos. III, 179 a 199

carta notável a el-rei em que descreve

um auto de III, 190 a 193

Hlenezes (D. Henrique de), embaixador ex- traordinário enviado a Roma para tratar os negócios da Inquisição. - . , II, 27 a 3'»

a-pesar-dos seus esforços, o papa mandou

manter a bula de perdão aos cristãos-no- vos de 2 de Abril de 1534 II, 35

novas tentativas e debates para demover

o papa da sua decisão, baldadamen-

te II, 35 a 58

suas considerações e conselhos a el-rei

sobre as restrições de Paulo III ao fun- cionamento da Inquisição II, 113 a 115

denuncia a el-rei o procedimento desleal

e as pretensões de D. Martinho de Portu- gal II, 149 a 15i

mooros, sua situação análoga à dos judeus I, 117

D. Manuel ordena a expulsão deles 1, 143 e 1 i7

N

STeto (Brás), embaixador de Portugal em Roma, pede ao papa o estabelecimento da

410 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Inquisição : instruções que ievou para isso I, 264 a 268

uilncios :

D. Martinho de Portagal v.

Sinigaglia. v

Capodiferro. v,

liipomano. v.

Ricci. V.

^anta-Croce. v

ícones (Henricane), cristão-novo, agente de- lator ao serviço de D, João III contra os seus antigos irmãos de crença 1, 229 a 241 o 243 a 244

O leastro, v, Azambuja (frei. Jeronijmo daj 01iT@iiça, perseguições ali contra os cristãos

novos 1, 257 a 258

papas que inttervêm oa tuquísição '

Clemente VH v

Paalo III. V

Parísio (cardeal), protector dos cnstàos-no-

vos em Roma .. H. i5'i

recebe avultadas quantias dos conver

SOS para obter o restabelecimento da nun- ciatura em Portugal II, 352

advoga calorosamente a causa dos con- versos na cúria III, 112 a 113

Paulo III, papa, o seu carácter pintado

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 411

pelo embaixador português em Roma

II, 76 a :8

manda suspender os efeitos dos breves de 2 de Abril e 26 de Juliio de 1534 de Cle- mente VII II, 80

manda estudar por uma comissão as res- postas de el-rei ao breve de 2 de Abril

de 1534 II, 81

resoluções dele sobre as modificações à bula de perdão e sobre o restabelecimen- to da Inquisição II, 102 a 104

breve a D. João III em que lhe explica as restrições que pôs ao funcionamento da

Inquisição II, 115 a 116

sabidas as violências e a vontade do governo portuíjuês para com os conver- sos, revogou as concessões feitas e man- dou pôr em execução a bula de perdão e pedir a D. João III a revogação da lei

de 14 de Junho de 1532 II, 116 a 119

breve de 20 de Julho de 1535 a favor dos

cristãos-novos. . . II, 127 a 129

promulga a bula de 12 de Outubro de 1535 revalidando e ampliando a de per- dão de 7 de Abril de 1532. .... II, 146 a 148 promulga a bula de 23 de Maio de 1536 que estabeleceu definitivamente a Inqui- sição em Portugal. II, 182 a 188

nomeia os cardiais Ghinucci e Jacobacio para examinarem se a bula de 23 de Maio

deve ser modificada II, 205

em vista dos clamores dos cristãos-no- vos contra a bula. envia novo núncio,

412 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Capodiferro, a Portugal para examinar se

ela se cumpria convenientemente 11,205 a 210

breve de 31 de Agosto de 1537 aiavor dos

procuradores dos conversos e da saída destes do reino III, 216 a 218

breve de 10 de Março de 1540 suspenden- do os efeitos da bula declaratória de 12 de Outubro de 1539 II, 324 a 325

cria cardeal in-petto D. Miguel da Silva

em 1539 II, 338

proclama-o publicamente cardeal II, 363

cria um tribunal da Inquisição em Roma

em 1542 III, 82 a 83

breve de 22 de Setembro de 1544 que

mandava suspender a Inquisição de Por- tugal. 111, 214

D. João III queixa-sedo seu procedimento

desfavorável á Inquisição III, 219 a 223

breve de 16 de Junho de 1545 em que res- ponde ás queixas de el-rei III, 226 a 229

D. João III pede-lhe que seja protector

de Portugal por morte de Santiqua- trc. III, 234 a 235

bula de 22 de Agosto de 1546 que concede

o perdão geral por mais um ano aos réus

de judaísmo III, 261 a 262

bula de 16 de Julho de 1547 que instituiu

definitivamente a Inquisição portu- guesa 1, 330 a 332

Pinheiro (Rodrigo Gomes), v Gomes Pi- nheiro (Fiodrigo).

Pires (Diogo)» hebreu português que em Roma

tinha grande acção no ânimo dos Pucci I, 272

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 41 0

Porto, abusos e excessos da sua inquisi- ção Til, 162 a 174

Portugal, seu estado económico e moral no reinado de D, João 111 1. 215 a 221 ; 11, 211, 303 . Ill, 34 a ^8

procuradores do« i:ri§lão6i>DOYOA em ilouta :

Duarte da Paz v

Dr. Diogo António, v

Diogo Fernandes Xeto. v

Pucci (António), v Santiquatro

(Lourenço), personagem muilo influente

na cúria, mostra-se algum tempo desfa- vorável ao pedido de D. João III, para o estabelecimento da Inquisição. I, 271 a 275

Quemadero, cadafalso de Sevilha onde eram

queimados os cristãos-novos 1. 84

reacção (a) no tempo de Herculano: seus pe- rigos para a liberdade I, 5 a 19

Ribeiro (D. Agostinho), bispo de Lamego,

inquisidor da sua Inquisição III, 135

RicenatI (.ferouyuio), v Capodiferro

Ricci de Z^SontepoUziano (João), v. Ricci (João).

Ricci (João), núncio de Paulo III enviado a Lisboa para conhecer dos abusos e exes- sos da Inquisição III, 204

D. João III proíl)e-lhe a entrada em Por- tugal III, 210 e 211

explicações e promessas dele. . III, 211

414 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

é-lhe permitida a entrada em Portugal de- baixo de certas condições que êle não aceita III, 212 a 214

é-lhe de novo proibida a entrada no reino

até explicações do papa sobre o breve de

22 de Setembro de 1544 III. 216

sua entrada em Portugal e condições im- postas . III, 237 a 240

toma a defesa enérgica dos cristãos-no-

vos Ill, 240 a 243

sua parcialidade ostensiva a favor de- les Ill, 251 a 252 e 257 a 260

Roberto Balgaro, suas violências no norte

da França I, 50

ílodrignes L.ncero (Diogo), v. Lucero.

íiodrignes Pinto (Diogo), português influen- te na cúria, conselhos que ao papa Paulo III para se chegar a acordo com a corte portuguesa sobre o estabelecimento da Inqnisição em Portugal 11. 135 a i38

li

íSanta-Croce (Prospero), bispo de Chisamo e núncio em Portugal em 1561, pinta a In- quisição com negras cores .... III, 353 a 356

Santafíore, escreveu a D. João III uma carta em que declarava em nome do papa que este estava disposto a atender os seus de- sejos, se a Ricci fosse consentida a en- trada em Portugal III, 23(.'

Santiqnatro (cardeal), protector de Portugal

na cúria I, 275 a 314

Historia da inquisição 4i5

diz a D. João III as razões das restrições

que o papa Paulo III pusera ao funciona- mento da Inquisição . .. II, 106

Hanto-Oficio, v. Inquisição.

Selaja, inquisidor de Badajoz, queixa-se a D. João III do asilo concedido a cristãos-novos castelhanos refugiados em Campo-Maior I, 245

suas ideas absurdas sobre os cristãos-no-

novos L 246 a 247

vSevsIha, é ali creada a Inquisição em 1480 I, 81

^il¥a (frei Diogo da), frade mínimo, é no- meado inquisidor da Inquisição de Por- tugal em 1531 I, 278

não aceita o cargo I, 315 a 316

Ijjspo de Ceuta, é nomeado inquisidor-mór

'■m 1536 II, 186 e 188

seu monitório acerca dos crimes religio- sos II, 190a 191

era tolerante e ponilerado II, 230 a 232

é substituído no cargo pelo infante D. Hen-

que II, 234

(D. Miguel da), embaixador em Roma,

pede, em nome de D. Manuel, a implanta- ção da Inquisição em Portugal , . I, 194 a 198

é eleito bispo de Viseu e nomeado escri- vão da puridade de D. João III ...... . II, 335

malevoiência de D. João III e da corte con- tra êle II, 336 a 337

Paulo III fá-lo cardeal in petto em 1537 II, 338

sua fuga para Roma II, 340

diligências baldadas para o fazer voltar

ao reino e tentativas de assassínio contra êle II, 340 e 348

416 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

é proclamado publicamente car- deal II, 363 a 364

carta de D. João III contra o novo cardeal:

el-rei priva-o de todos os cargos e direi- tos II, 364 a 365

seu manifesto em resposta à carta ré- gia II, 368 a 372

liga-se com os cristãos-novos, por ódio a

el-rei, para combater a Inquisição II, 372 a 373

esforços de D. João III para o castigar;

sua precária situação económica- III, 91 a 94

aplicação das rendas do seu bispado e

negociações vergonhosas entre as duas cortes III, 94 a 96

seus apuros pecuniários III, 99 a 100

a questão das rendas da sua diocese vol- ta a discutir-se e indispõe D. João III III, 115 a 116

termina-se esta questão; a administração

da diocese é entregue ao cardeal Farne-

se " III, 336 a 340

sua situação muito precária, e seu proce- dimento ulterior indigno. . 347 a 352

^iinonetta (Jacob), Paulo III encarrega-0 de examinar a questão da Inquisição por- tuguesa II, 83

debates com os embaixadores portugue- ses II, 84 a 101

vende-se a D. Pedro Mascarenhas para

favorecer as pretensões da corte portu- guesa II, 241 a 242

Sinigaglia (bispo de), é enviado a Portugal como núncio para fiscalizar a Inquisição

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 417

acabada de conceder a D. João III: seu ca- rácter. 1, 308 a 313

manda sobrestar na publicação da bula

de perdão aos cristãos-no vos II, 71

é reconduzido no cargo de núncio pelo

novo papa Paulo III . II, 81

luta aberta com el-rei que não quer cum- prir os mandados apostólicos a favor dos cristãos-novos II, 82 e 83

el-rei pede a sua revocação II, 82 e 94

informa o papa da vontade e das vio- lências do governo português para com os conversos II, 118 a 119

acordo entre êle e os cristãos-novos

que prometeram dar ao papa certa quan- tia se este conviesse em aceder aos pedi- dos deles II, 120 a 1 22

D. João III pede de novo a sua saída de

Portugal II, 129 a 130

seu procedimento audaz para com el-rei

antes e depois de promulgada a bula de 12 de Outubro de 1535 a favor dos cris- tãos-novos II, 155 e 158

questões vergonhosas entre êle e os con- versos por motivo de contractos ve- nais II, 172 a 180

é encarregado de subornar o secretário

particular de Paulo III para inclinar o ânimo do papa a favor dos conversos, junto do qual também trabalhou para o mesmo fim 11, 203 a 204

Sixto IV, papa, estabelece a Inquisição em

Espanha I^ 79

TOMO III £?

418 HISTORIA DA INQUISIÇÃO

Soares (frei João), confessor de el-rei, mem- bro do conselho da Inquisição. II, 244 a 245

i$outia (Ctiristovam de), sucessor de D. Pe- dro Mascarentias como embaixador em Roma II, 340

negociações com a cúria para obstar à

enviatura de novo núncio a Portu- gal 11,348 a 359

acordo com a cúria para se adiar a ques- tão da nunciatura ... II, 362 a 363

representações contra a proclamação pú- blica de cardeal de D. Miguel da Sil- va. II, 366 a 367

por falta das satisfações pedidas, abando- na a corte de Roma II, 367 a 368

stadings, seita herética na Alemanha . . l, 42

synodos, espécie de tribunais contra os he- reges antes da Inquisição I. 25

como funcionavam I, 25 a 26

Themndo (Jorge), procede a um mquérito por mandado de D. João III sobre o modo de viver dos cristãos-novos de Lisboa em 1524 I, 222 a 229

Tigcrio delia Ruvere (Marco), v Sinigaglia (bispo de)

tornadiços» Judeus conversos ou cristãos-no- vos 116

Torqaemada (frei Thomaz de), 1.° inqui- sidor-môr de Castela, símbolo de cruel íistolerância ^0

HISTORIvi D^ INQUISIÇÃO 419

alargamento das suas atribuirões a toda

a Espanha ..... I, 96

inúmeras vítimas da sua intolerância. I, 96 por ódio aos Judeus usa de insolência

para com os reis católicos I, 101

Ugolino (João), é decidido enviá-lo a Portu gal com a bula da Inquisição e do perdão geral III, 309

devia transigir em determinados casos;

instruções que trazia III, 309 a 310

parte, emfim, para Portugal com a bula

definitiva da Inquisição e outros diplomíis relativos ao assunto Hl, 327

Vbe (Dr. Gonçalo), inquisidor da Inquisição de Lamego, pratica grandes violências contra os cristãos-novos III 135 a 142

Veiga (Simão da), é enviado a Roma em 1545 com uma carta de el-rei ao papa so- bre a Inquisição III, 217

suas instruções III, 217 a 219

carta a el-rei sobre a renovação de ne- gociações amigáveis com a cúria se Ricci for autorizado a entrar em Portugal. III, 230

parte para Portugal com a última decisão

do papa a buJa de 22 de Agosto de 1546, mas morre em França III. 3^

Tifien (bispo de), v. Silva (D. Miquel).

índice

LIVRO vil

Multipiicação das Inquisições pelo reino.

Vantagens dos chrislãos-novos em Roma. Knviatura do núncio Lippo- mano, coadjutor de Bergamo. Instruc- çôes singulares. —A corte de D. João iii.

Estado moral e económico do reino naquella epocha. Cartas verdadeiras ou suppostas do cardeal da Silva e dos agentes dos christãos-novos apprehen- didas no Alemtejo. Prohibição ao nún- cio de transpor a fronteira. Fran- cisco Botelho mandado a Roma com as cartas apprehendidas, e tentativas de mediação de Carlos v. Explicações do papa, e missão extraordinária de Pier Domenico a Portugal. O nún- cio admittido no reino. Motivos para nova mudança de politica na cúria. A Inquisição estabelecida em Roma

Desvantagens dos christãos-novos

f»ag

422 HISTORIA L-A I )L'í?lÇÃO

e difficuldades que se lhes suscitam. Perseguição do procurador dos he- breus, Diogo Fernandes Neto. Situa- ção embaraçada de D. Miguel da Sil- va. — Negociações ulteriores. Caracter vergonhoso dessas negociações. Os hebreus portugueses preparam-se para tentar um esforço extremo contra a Inquisição t 101

JVRO VIU

Novos elementos de defesa preparados pelos agentes dos hebreus em Roma Clamores públicos na cúria. Collec- ção de documentos contra a Inquisi- ção. Memorial dirigido ao cardeal Far- nese. Perseguição popular contra os christãos-novos. Quadro dos abusos e excessos das diversas Inquisições de Portugal desde 1540 até 1544. Resolve- se o papa a intervir na questão do modo mais efficaz. Escolha de um novo núncio para substituir o bispo de Bergamo. A corte de Lisboa, instruída das disposições da cúria romana, pre- para-se para a contenda 1 05 a 209

LIVRO (X

Prohibe-se a entrada no reino ao núncio Ricci. Explicações e promessas deste. Dá-se-lhe a permissão de entrar, de-

HISTORIA DA INQ ISIÇÃO 423

Daixo de certas condições restrictas, que elJe não acceita. Breve de 22 de setembro de 1544 mandando suspen- der a Inquisição. Procedimento audaz do núncio Lippomano. Enviatura de Simão da Veiga a Roma. Carla d elrei a Paulo III. Suspeitas contra Baltha- sar de Faria. Expedientes para conci- liar os ânimos na cúria romana.— Breve de 16 de junho de 1545 em res- posta á carta d'eirei. Renovação das negociações amigáveis. Transacção. Entrada do núncio Ricci. Procedi- mento irritante deste em Lisboa. Apre- senta a elrei o breve de 16 de junho. Réplica frouxa áquelle singular do- cumento. — Novas phases da lucta. Propostas e accordos ignóbeis. Diffi- cuJdades procedidas da parcialidade ostensiva de Ricci a favor dos chris- tãos-novos. Resoluções apresentadas mutuamente pelas duas cortes acerca do estabelecimento definitivo da In- quisição. — Simão da Veiga parle para Portugal com a ultima decisão do pa- pa, e morre no caminho. Elrei re- cebe mal aquelia decisão, não na subs- tancia mas nos accidenles. Nota enér- gica ao núncio, e demonslrações de desgosto dirigidas a Balthasar de Fa- ria. — Parecer notável de quatro chris- tãos-novos dado a elrei sobre o modo de remover as resistências ao estabe-

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lecimento do tribunal da fé. Os inqui- sidores rebatem as propostas dos qua- tro hebreus. Probabilidades de um Iriumpho completo para os fautores da Inquisição 210 a 28tí

LIVRO X

Ultimas resoluções do papa sobre o per- dão dos christãos-novos e organisação definitiva do tribunal da fé, que Bal- thasar de Faria acceita ad referen- dum. Instrucção de Farnese ao núncio Ricci acerca da intelligencia daquellas resoluções e acerca do preço da con- cessão. — Pouco satisfeito das restric- ções que ainda se lhe impunham, elrei revalida a lei de 1535, prohibindo á gente da nação a saída do reino, e communica ao seu agente em Roma as alterações que acceita. Faria abs- tem-se de propor estas ultimas e in- siste na concessão pura e simples. Motivos que para isso havia. A corte de Roma resolve-se a enviar a Portu- gal o cavalleiro Ugolino com as bulias e breves redigidos na forma das deci- sões tomadas. Instrucções secretas que elle recebe. Mútuos receios das duas cortes. Procedimento encontrado de Faria em Roma e do núncio Ricci em Lisboa. O bispo do Porto D. Fr. Bal- thasar Limpo em Itália. Intervenção

HISTORIA DA INQUISIÇÃO 425

deste no negocio do tribunal da fé. Te- mor que o prelado português incute pela audácia da sua linguagem. A cú- ria cede gradualmente. Partida de Ugolino para Lisboa. Diplomas ponti- fícios trazidos por elle. A Inquisição é instituída na sua íbrma mais completa pela bulia de 16 de julho de 1547. Termina-se a questão das rendas de D. Miguel da Silva, e a administração da diocese de Viseu é entregue a Far- nese, Calculo incompleto do que a Inquisição custou ao paiz. Situação e procedimento do cardeal de Viseu.— Idéa rápida da ulterior historia da In- quisição. Testemunho insuspeito do

bispo de Chisamo. Epilogo 290 a 359

Nota à edição definitiva 363

índice analítico de matérias S69

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